Comentário

Cadengue, para que o antes não fique sem futuro

TEXTO Mateus Araújo

01 de Agosto de 2018

O diretor de teatro Antonio Cadengue, em 2012

O diretor de teatro Antonio Cadengue, em 2012

Foto Beto Figueiroa/Fliporto/Divulgação

Para que o antes não fique sem futuro e o agora não fique sem passado
Antonio Cadengue

Foi preciso ser pornográfico demais para subverter tamanha cafonice de uma burguesia afeita a “clássicos”; amar demais um ofício ao ponto de mergulhar na infinidade de sonhos; ser psicanalítico demais para teatralizar freudianamente a complexidade do corpo nu – real ou não. Se já padecemos com a caretice do tempo de hoje, padeceremos ainda mais sem Antonio Candegue, morto nesta quarta (1/8), aos 64 anos.

Candengue é parte fundamental da história do teatro brasileiro, e construiu a própria trajetória traçando sua terceira via nas montagens de obras que não dialogavam com a estética do teatro popular nordestino. Preferiu ser subversivo. Foi do Vivencial Diversiones ao Teatro de Amadores de Pernambuco, e nos fez ver, com sua precisão cênica, de Shakespare a Nelson Rodrigues, de Tchekov a Jean Genet, de Jorge de Andrade a João Silvério Trevisan. Entre elas, encenações memoráveis, como a premiada Senhora dos Afogados [leia nosso texto sobre a peça na edição de agosto de 2012], montada em 1993, pela Companhia Teatro de Seraphim. Munido de um espírito subversivo, Cadengue releu a obra de Nelson Rodrigues tirando-a do contexto carioca contemporâneo e colocando-a em um viés elisabetano. Essa opção foi tomada como chiste ao comentário pejorativo de uma funcionária do governo do Estado, que negou patrocínio à montagem do texto por se tratar, segundo ela, de um “autor pornográfico”. A mulher queria um “clássico”.

Poucas vezes na vida vi alguém tão apaixonado pelo teatro como Cadengue. Um homem aficionado pela “estetização da vida” através da arte, na “tentativa de construí-la [a estetização] como projeto ininterrupto de nossa contemporaneidade e mesmo sua transformação” (CADENGUE, 1992). Um homem para quem o teatro se transformou em “psicanálise cultural”, em que as máscaras (características e sinuosidades humanas) são sobrepostas a uma máscara (identidade), tal qual a essência da cultura brasileira – como escreveu Igor Silva, em pesquisa sobre o diretor.

Cadengue foi, indiscutivelmente, um professor. Inclusive meu, quando comecei a escrever crítica de teatro, no Recife, com apenas 20 anos. “Ninguém escreve crítica de teatro com menos de 30”, ouvi de uma colega de profissão, durante curso sobre Nelson Rodrigues, no Sesc Santo Amaro. Cadengue, que estava organizando o evento, retrucou dizendo que leituras são particulares e crítico se constrói com bagagem. Nunca foi fácil. Nem será. Escrevi asneiras, pensei errado, entendi tortuoso, mas não desisti.

A primeira grande responsabilidade de um menino de 20 anos foi, justamente, escrever sobre Vestígios, peça dirigida por ele, com texto de Aimar Labaki, em 2012. Cadengue abriu sua sala de ensaio para mim. Conversou por horas antes de mostrar as cenas. Uma entrevista que era basicamente uma aula sobre teatro. Quanta compreensão ele tinha sobre o que queria mostrar. Dois dias depois de a crítica ser publicada, me telefonou para agradecer a atenção, concordar com alguns pontos de vista e também discordar de outros.

Cadengue foi extremamente generoso comigo. E é disso que me recordo. Literato, sempre tinha indicações de livros teóricos sobre encenação. Atento, sempre esteve disponível para qualquer entrevista ou consulta.

Mas a memória mais marcante que guardo dele é sua entrega absoluta ao teatro. Incansável, se dedicou até os últimos minutos da vida para criar, com afinco e presteza, suas obras. Um diretor que imprimiu inúmeras leituras sobre os textos, buscou dialogar na cena com outras artes (a exemplo das estátuas gregas, de homens hermeticamente perfeitos, que serviam de inspiração para as marcações de suas peças), e não cansou, jamais, de mergulhar nos seus estudos.

Em seu Facebook, ao comentar a morte de Cadengue, o amigo dele e escritor João Silvério Trevisan disse que “o resto é silêncio no Recife”. Fica o silêncio e a caretice, sem Candegue.

Em tempo: este ano Cadengue lançou, pela Cepe Editora, o livro Reinaldo Oliveira: do bisturi ao palco.

Leia ainda sobre um dos últimos trabalhos do encenador, a peça Puro lixo.

MATEUS ARAÚJO é jornalista, pesquisador e crítico de teatro pernambucano. Atualmente, cursa mestrado em Artes Cênicas pela Unesp.

veja também

Tão próximos e tan lejos: o que nos impede de conhecer mais a música da Colômbia

Apontamentos para uma crítica náufraga

Karim AÏnouz coloca tempero brasileiro na realeza inglesa