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Contestação e muita pinta

'Puro Lixo', espetáculo escrito por Luís Reis e dirigido por Antonio Cadengue encerra a trilogia 'Transgressão em três atos' com homenagem ao grupo Vivencial

TEXTO Márcio Bastos

01 de Agosto de 2016

"Questões relativas à sexualidade, gênero, política e ao racismo foram discutidas pelos intérpretes e criadores, que utilizam o escracho como forma de sentir e pensar"

Foto Divulgação

[conteúdo da ed. 188 | agosto de 2016]

Um grupo de artistas, bichas loucas, libertárias, libertas, antiestablishment, não normativas, à (e da) margem, se tornou uma espécie de símbolo da potência do teatro e das vivências que não pedem desculpas para ser e existir. O Vivencial, que entre a década de 1970 e início dos anos 1980 surgiu como um vendaval na cultura pernambucana, é hoje parte indelével do espírito cênico do estado, reverberando seu atrevimento em jovens que nunca tiveram a oportunidade de experienciar a mixtura do Vivencial Diversiones, espaço de espetáculos seminal para os artistas que não se encaixavam na cultura oficial. É esse ethos das vivecas (artistas que integravam o grupo) que a peça Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade, dirigida por Antonio Cadengue e que estreia este mês, no Teatro Hermilo Borba Filho, busca homenagear.

Gestado em 1974, o Vivencial se constituiu, desde o início, uma experiência radicalmente à margem. Formado por indivíduos que viam suas experiências negadas pela sociedade, o grupo assumiu, até sua dissolução, em 1983, como parte de sua identidade, o que poderia ser estigma. Fez, do lixo, cenário e figurino; da “bichisse”, um modo de viver e representar. A sede do grupo, o Vivencial Diversiones, no Complexo de Salgadinho, em Olinda, à época uma das áreas mais perigosas do Recife, era reflexo dessa vivência na cara, coragem e purpurina. A infraestrutura refletia o pouco dinheiro e a vontade de fazer, mas logo se tornou point, como uma espécie de café-concerto, com apresentações musicais, teatrais, happenings e dublagens. Capitaneado por Guilherme Coelho, era um espaço para os excluídos e também um ponto de encontro inusitado em que a família tradicional recifense, heterossexual, tinha contato com aquelas “loucuras” de existências que, fora dali, eram por ela execradas. 

Ao vestir sua marginalidade como uma insígnia de orgulho, ao amplificar o arco-íris e se assumir cada vez mais queer, o Vivencial se transformou em algo maior do que o próprio grupo: virou um estilo de vida e de fazer teatro. Ainda que não seja de forma uníssona, sua influência, seus ecos, estão encravados no teatro pernambucano, principalmente nos setores que se propõem a caminhar mais à esquerda em relação ao mainstream

DOR, MAS COM FESTA
Última parte da trilogia Transgressão em três atos – projeto capitaneado por Stella Maris Saldanha, Alexandre Figueirôa e Cláudio Bezerra desde 2008, com foco, além das “vivecas”, no legado do Teatro Hermilo Borba Filho (THBF) e do Teatro Popular do Nordeste (TPN)  –, Puro Lixo… foge da tentativa de reviver a experiência do Vivencial. O autor do texto, Luís Augusto Reis, sabe que isso seria impossível, pois o grupo inseriu-se num momento específico da história do país, sob a repressão da ditadura militar e de outras experiências e costumes. Busca, antes de tudo, celebrar a experiência radicalmente transformadora e marginal que o grupo trouxe e representou.

“O projeto surgiu como um presente para mim. Cadengue me convidou para escrever a dramaturgia e me deu como referência alguns contos de João Silvério Trevisan, primeiro intelectual do Sudeste a notar a importância do Vivencial e entender que ali estava brotando uma experiência transformadora”, conta Luís. Os textos, porém, eram sombrios, permeados pela dor. Luís então propôs ao diretor outra visão mais próxima do espírito do grupo. “O Vivencial era pathos, tinha sofrimento, mas era principalmente festa, alegria. E é isso que buscamos resgatar”, explica. “Estar à margem pode ser uma vantagem: dá mais liberdade. E o Vivencial soube aproveitar isso”, completa.

Apesar da mudança de tom, foi em Trevisan que Luís buscou a espinha dorsal do texto. A partir da reportagem Vivencial Diversiones apresenta: Frangos falando para o mundo, escrita pelo paulista em 1979, para o jornal de guerrilha gay Lampião da Esquina, Reis procurou revisitar alguns procedimentos cênicos do coletivo, como a colagem de textos e referências à paródia, à antropofagia e à Tropicália  (ou Pernambucália, como definiu Jomard Muniz de Britto). O resultado é um texto que capta a atmosfera libertária do grupo, em uma sincera homenagem carregada de (ir)reverência.

A dramaturgia intercala trechos das observações de Trevisan, que relata uma noite no Diversiones, evidenciando o caráter humano dos personagens, assim como a importância do que era levado para a cena, que começava já nos bastidores. Isso porque o teatro do Vivencial era um teatro da verdade, ou melhor, das verdades de cada um que o compunha. Na escrita de Luís Reis, e sob a direção de Antonio Cadengue, esse é um aspecto que ganha relevância. Os atores dão nome aos personagens que interpretam, além de interagir com o público, um modus operandi comum ao icônico grupo, quebrando a passividade da plateia, provocando-a, fazendo-a ser parte da experiência cênica. 

Cadengue, especialmente, tem propriedade para falar do assunto. Além de ter dirigido dois espetáculos do grupo – Viúva, porém honesta (1977) e All star tapuias (1980) – dividiu a vida com uma figura seminal para o Vivencial, o cenógrafo Beto Diniz. É, portanto, um trabalho marcado pela memória afetiva. “É um projeto que tem mexido muito comigo. Tem sido um processo gostoso porque é, assim como no Vivencial, uma construção coletiva, de esforços mútuos, e essencialmente aberta à transformação. Queremos dar um olhar de dentro para fora, mais voltado para nossa interpretação do que foi aquela experiência do que sentenciar ‘é isso’”, aponta o diretor.

De fato, partes do texto foram reimaginadas ao longo do processo de ensaios. Questões relativas à sexualidade, gênero, política, ao racismo e às vivências dos não normativos foram discutidas pelos intérpretes e criadores, que utilizam o escracho, antes de tudo, como forma de fazer sentir e pensar. Nada ali está deslocado. O riso, o escárnio, a purpurina são ferramentas de protesto e contestação. A pinta é um manifesto político. Em tempos nos quais parece que é exigida uma opinião formada sobre tudo, de textões no Facebook, Cadengue, Reis e os atores parecem mais interessados em provocar, em instigar a desconstrução em busca de respostas que fujam do bom gosto, do bom senso e dos bons modos. 

Em cena, Stella Maris Saldanha, que participou também das duas outras montagens de Transgressão em três atosOs fuzis da senhora Carrar (2010) e Auto do salão do automóvel (2012); Gil Paz, Eduardo Filho, Marinho Falcão, Samuel Lira e Paulo Castelo Branco se entregam àquela atmosfera, incorporam a ideia transformadora alicerçada pelo grupo libertário. Atuam sem impostação, com desenvoltura e gingado, com uma alegria quase anárquica. Com elementos cênicos mínimos, o cenário remonta ao clima de cabaré do Diversiones.

Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade é um teatro que ressalta a joie de vivre, que é um hino à vida, ao amor e à capacidade de sobreviver, de ser um corpo presente, ainda que indesejado pelo sistema patriarcal, homofóbico, misógino e racista. É um lembrete de que o Vivencial será sempre necessário diante da opressão e de qualquer tentativa de minar os indivíduos de serem quem quiserem ser. 

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