Cobertura

Uma noite para os afetos

'Caetano Moreno Zeca Tom Veloso' foi apresentado pela primeira vez em Pernambuco, em show com formato minimalista, permeado de amor

TEXTO, FOTOS E VÍDEOS LUCIANA VERAS

10 de Janeiro de 2018

Caetano Veloso e os filhos em show no Teatro do RioMar

Caetano Veloso e os filhos em show no Teatro do RioMar

Foto Luciana Veras

Havia uma atmosfera de celebração na noite de terça (9/1), no Teatro RioMar, no shopping homônimo da Zona Sul recifense. Eram muitos os amigos que se viam pela primeira vez neste ano que mal engatinha, então os cumprimentos efusivos de “feliz 2018” e “que venha o Carnaval” se faziam ouvir enquanto andava a fila. Dentro do teatro, com seus mil lugares na plateia devidamente ocupados, o clima festivo se perpetuava: Sônia Braga circulava ao lado do cineasta Kleber Mendonça Filho, da produtora Emilie Lesclaux e de outros integrantes da equipe de Aquarius, o longa que levou o cinema pernambucano e a atriz brasileira ao Festival de Cannes de 2016; o apresentador Caio Braz trazia sua mãe, Lucinha Nunes, para comemorar aniversário... Casais de todas as configurações festejavam inícios e marcos de relacionamentos… Era, enfim, uma noite que teria, acima de tudo, o afeto como protagonista.

"Gente, espelho de estrelas, reflexo do esplendor, se as estrelas são tantas, só mesmo o amor." A frase de Gente, uma das composições entoadas pelo quarteto de musicistas e intérpretes, pode ser percebida como uma chave para apreciar o espetáculo Caetano Moreno Zeca Tom Veloso, apresentado pela primeira vez em Pernambuco. Caetano Veloso, ícone tropicalista, escritor, compositor exilado durante a ditadura e criticado por posicionamentos políticos recentes (ou pela falta deles), decidiu-se despir de qualquer aparato ou banda e viajar em turnê com seus três filhos. Se as estrelas são tantas, e é difícil enumerar a quantidade de estrelas a ilustrar a carreira de Caetano, só mesmo o amor para justificar um show em formato minimalista. Era uma reunião em família e a intimidade e o carinho transcendiam a ribalta e chegavam à plateia.



Que não seja camuflado o fato, óbvio, de que se trata de um espetáculo de requinte, minimalista porém sofisticado na sua paleta cenográfica e no jogo de luzes. E de que se trata de um espetáculo ensaiado, em que até mesmo os comentários que se encaixariam no jargão “de pai para filho” tendem a se repetir a cada cidade. OK, é uma turnê que precisa de público e de venda de ingressos para prosseguir. Mas, descontado todo esse arcabouço/marco identitário de indústria fonográfica, é, ainda assim, um espetáculo comovente.

Ternura talvez não seja lá um sentimento muito evocado neste Brasil que se prepara para um 2018 turbulento, a começar pelo julgamento de Lula em 24 de janeiro, em Porto Alegre. Há muita tensão no ar, há muita fragilidade nas relações, há muita agressividade e raiva em cena. Ontem, naquele teatro, com aqueles quatro homens de idades distintas em cima, tudo isso se escondeu nos escaninhos da memória coletiva.

O que ficou?

Ficou Trem das cores e Leãozinho, hits do Veloso pai, em delicados arranjos e comboio de vozes. O axé do Olodum em Deusa do amor, restaram as composições próprias de Tom, Zeca e Moreno acompanhadas por um pai não apenas orgulhoso, mas engenheiro daquela arquitetura sonora… Restou Gente, hino de esperança, sopro de Maiakóvski num país em que tantos voltaram a morrer de fome. Não foram poucas as lágrimas durante a execução desta música. Sobrou Alguém cantando, que vem lá de Bicho, de 1977, ano em que só Moreno era nascido, e sobrou também Canto do povo de um lugar, mais remota ainda, de 1975, quando Zeca e Tom não passavam de sonhos...



As canções eram interpretadas com um misto de apuro técnico e leveza de reunião familiar no terraço da casa de Santo Amaro da Purificação. Se Recônvexo era pura festa, Todo homem, letra e harmonia de Zeca, era pungência e reflexão. Se havia espaço para homenagear Dedé Gadelha e Paula Lavigne, as mães dos filhos de Caetano Veloso, também havia o cântico em tributo a dona Canô e uma ode de Boas vindas, escrita originalmente para Zeca e incluída no repertório de Circuladô (1991), que parecia resumir a vibração a tomar conta daquele espaço:

Venha conhecer a vida
Eu digo que ela é gostosa
Tem o sol e tem a lua
Tem o medo e tem a rosa
Eu digo que ela é gostosa
Tem a noite e tem o dia
A poesia e tem a prosa
Eu digo que ela é gostosa
Tem a morte e tem o amor
E tem o mote e tem a glosa

Um show que começa com Alegria, alegria com e emenda com O seu amor, clássico dos Doces Bárbaros que parece talhado para os efêmeros dias de hoje [“O seu amor/Ame-o e deixe-o livre para amar (…) O seu amor/ Ame-o e deixe-o ser o que ele é/Ser o que ele é], segue uma frequência afetiva e energética que possibilita idas e vindas ao som de Oração ao tempo, a explosão do por que cantar em Força estranha e a apoteose com um samba carioca, Tá escrito, cover da banda Revelação:

Erga essa cabeça

Mete o pé e vai na fé
Manda essa tristeza embora
Basta acreditar que um novo dia vai raiar
Sua hora vai chegar

Talvez Caetano Moreno Zeca Tom Veloso seja apenas uma jogada de marketing, talvez tenha sido um acaso feliz o espetáculo chegar ao Recife nos primeiros dias de um novo ano, talvez a plateia recifense estivesse, mesmo, disposta a acreditar, ainda que por duas horas, na transcendência artística e afetiva que aquele quarteto pudesse oferecer. Qualquer que seja a conclusão, foi uma noite em que se evidenciou e festejou qualquer maneira de amor e amar. Pais e filhos, homens e mulheres, ali não estavam a sós. Comungavam daquele afeto emanado do palco. Isso não foi pouco. E há de perdurar entre os felizardos que por ali estavam.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente.

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