"Gente, espelho de estrelas, reflexo do esplendor, se as estrelas são tantas, só mesmo o amor." A frase de Gente, uma das composições entoadas pelo quarteto de musicistas e intérpretes, pode ser percebida como uma chave para apreciar o espetáculo Caetano Moreno Zeca Tom Veloso, apresentado pela primeira vez em Pernambuco. Caetano Veloso, ícone tropicalista, escritor, compositor exilado durante a ditadura e criticado por posicionamentos políticos recentes (ou pela falta deles), decidiu-se despir de qualquer aparato ou banda e viajar em turnê com seus três filhos. Se as estrelas são tantas, e é difícil enumerar a quantidade de estrelas a ilustrar a carreira de Caetano, só mesmo o amor para justificar um show em formato minimalista. Era uma reunião em família e a intimidade e o carinho transcendiam a ribalta e chegavam à plateia.
Que não seja camuflado o fato, óbvio, de que se trata de um espetáculo de requinte, minimalista porém sofisticado na sua paleta cenográfica e no jogo de luzes. E de que se trata de um espetáculo ensaiado, em que até mesmo os comentários que se encaixariam no jargão “de pai para filho” tendem a se repetir a cada cidade. OK, é uma turnê que precisa de público e de venda de ingressos para prosseguir. Mas, descontado todo esse arcabouço/marco identitário de indústria fonográfica, é, ainda assim, um espetáculo comovente.
Ternura talvez não seja lá um sentimento muito evocado neste Brasil que se prepara para um 2018 turbulento, a começar pelo julgamento de Lula em 24 de janeiro, em Porto Alegre. Há muita tensão no ar, há muita fragilidade nas relações, há muita agressividade e raiva em cena. Ontem, naquele teatro, com aqueles quatro homens de idades distintas em cima, tudo isso se escondeu nos escaninhos da memória coletiva.
O que ficou?
Ficou Trem das cores e Leãozinho, hits do Veloso pai, em delicados arranjos e comboio de vozes. O axé do Olodum em Deusa do amor, restaram as composições próprias de Tom, Zeca e Moreno acompanhadas por um pai não apenas orgulhoso, mas engenheiro daquela arquitetura sonora… Restou Gente, hino de esperança, sopro de Maiakóvski num país em que tantos voltaram a morrer de fome. Não foram poucas as lágrimas durante a execução desta música. Sobrou Alguém cantando, que vem lá de Bicho, de 1977, ano em que só Moreno era nascido, e sobrou também Canto do povo de um lugar, mais remota ainda, de 1975, quando Zeca e Tom não passavam de sonhos...
As canções eram interpretadas com um misto de apuro técnico e leveza de reunião familiar no terraço da casa de Santo Amaro da Purificação. Se Recônvexo era pura festa, Todo homem, letra e harmonia de Zeca, era pungência e reflexão. Se havia espaço para homenagear Dedé Gadelha e Paula Lavigne, as mães dos filhos de Caetano Veloso, também havia o cântico em tributo a dona Canô e uma ode de Boas vindas, escrita originalmente para Zeca e incluída no repertório de Circuladô (1991), que parecia resumir a vibração a tomar conta daquele espaço:
Venha conhecer a vida Eu digo que ela é gostosa Tem o sol e tem a lua Tem o medo e tem a rosa Eu digo que ela é gostosa Tem a noite e tem o dia A poesia e tem a prosa Eu digo que ela é gostosa Tem a morte e tem o amor E tem o mote e tem a glosa
Um show que começa com Alegria, alegriacom e emenda com O seu amor, clássico dos Doces Bárbaros que parece talhado para os efêmeros dias de hoje [“O seu amor/Ame-o e deixe-o livre para amar (…) O seu amor/ Ame-o e deixe-o ser o que ele é/Ser o que ele é], segue uma frequência afetiva e energética que possibilita idas e vindas ao som de Oração ao tempo, a explosão do por que cantar em Força estranha e a apoteose com um samba carioca, Tá escrito, cover da banda Revelação:
Erga essa cabeça
Mete o pé e vai na fé Manda essa tristeza embora Basta acreditar que um novo dia vai raiar Sua hora vai chegar
Talvez Caetano Moreno Zeca Tom Veloso seja apenas uma jogada de marketing, talvez tenha sido um acaso feliz o espetáculo chegar ao Recife nos primeiros dias de um novo ano, talvez a plateia recifense estivesse, mesmo, disposta a acreditar, ainda que por duas horas, na transcendência artística e afetiva que aquele quarteto pudesse oferecer. Qualquer que seja a conclusão, foi uma noite em que se evidenciou e festejou qualquer maneira de amor e amar. Pais e filhos, homens e mulheres, ali não estavam a sós. Comungavam daquele afeto emanado do palco. Isso não foi pouco. E há de perdurar entre os felizardos que por ali estavam.