Cobertura

A retomada da força presencial da música

Em dois dias de apresentações no Teatro Guararapes, festival Coquetel Molotov volta a compartilhar com o público a experiência única de ver shows 'offline'

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS DONDINHO

16 de Novembro de 2021

Público no show de Luiz Lins, na última noite do evento (domingo, 14)

Público no show de Luiz Lins, na última noite do evento (domingo, 14)

Foto Jonathan Lima

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Uma espécie de expectativa e emoção pairava no caminho para o Teatro Guararapes. Após quase dois anos sem assistir a uma apresentação musical em um evento de maior porte, finalmente seria possível experimentar momentos de compartilhamento que a música e seus artistas são capazes de nos proporcionar. Desde a abertura dos portões às16h, o teatro estava preparado para receber a primeira noite da 18ª edição do Festival No Ar Coquetel Molotov, que voltava ao seu formato presencial, depois de acontecer remotamente em 2020. Era a vez de Boogarins, Céu, Mateus Aleluia, Luana Flores, Jéssica Caitano, Lia de Itamaracá, Mulungu e Pierre Tenório, Luiz Lins, Romero Ferro e Mun Há e Marina Sena subirem ao palco, em uma programação dividida entre o sábado (13) e o domingo (14), permitindo a quem esteve presente momentos de alegria e partilha, que, durante todo esses meses, só foram possíveis através das playlists e lives

Desde a entrada, a experiência de retomada com a cautela que o atual período demanda se apresentou ao público. Nos dois dias de evento, foi necessário apresentar o cartão de vacinação com as duas doses da vacina contra a Covid-19, ou a primeira dose e o exame PCR negativado, para que o acesso fosse permitido ao salão próximo ao teatro. Mesmo quando os shows começavam, a equipe manteve-se atenta aos protocolos sanitários, dando os toques sobre o uso da máscara, oferecendo álcool a quem transitava entre um ambiente e outro e reforçando a importância dos procedimentos de segurança. A entrada, inclusive, no interior do teatro, só era permitida com o uso da máscara e sem a presença de alimentos ou bebidas. 


O Teatro Guararapes antes dos shows começarem

Localizada na parte externa do Guararapes, a praça de alimentação era onde acontecia a interação do público do Molotov, nos intervalos entre um show e outro. As conversas ocorriam entre as barraquinhas de tapioca, hambúrguer e pizza, oferecendo também opções veganas. Por lá, a Continente conversou com Ycaro, Jorja – que apresentou as atrações durante os dois dias do festival e realizou o pré-evento nos Stories do No Ar Coquetel Molotov –, Yorran e Parajeau, adms do Vida de Clubber, uma comunidade que conversa sobre moda, cultura clubber, close e a cena eletrônica, com um toque de humor. O projeto, que foi convidado pelo próprio festival e realizou uma cobertura em suas redes, conta ainda com um podcast, o VDC Cast, disponível nas plataformas de streaming.

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Na primeira noite, pouco antes das apresentações, o evento prestou uma bonita homenagem ao maestro e idealizador do Virtuosi, Rafael Garcia – pai de Ana Garcia, diretora geral do Coquetel Molotov –, que nos deixou no último mês de outubro. 

Dando início ao line-up de sábado, os goianos da Boogarins e a cantora-compositora Céu (SP) fizeram o show de abertura da programação, dividindo a cena. Essa parceria já havia rolado no Palco Sunset, no Rock in Rio. Além de canções dos álbuns Manchaca Vol. 1 e Manchaca Vol. 2, lançados ainda na pandemia, o repertório contou com alguns dos hits “das antigas”, como Doce e Foi mal, apresentado em uma versão com vocais adicionais feito pela artista paulista. Daquele momento em diante, um sentimento de perceber que estávamos assistindo a um show ao vivo em um teatro tomava conta de muita gente presente no Guararapes. Além da alegria proporcionada pelas músicas, acompanhadas em coro pela plateia, aquela era a primeira experiência presencial para muites


Céu junto à banda Boogarins na primeira noite do festival (sábado, 13)

Entre os nomes mais aguardados desta edição, estava o músico e compositor Mateus Aleluia, nascido em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Com toda a sua sabedoria, voz e violão, ele nos presenteou, na mesma noite, com um show no qual estava acompanhado do pianista e maestro Ubiratan Marques. Cantando um repertório de canções de sua carreira solo, mas também revisitando a obra do poderoso trio Os Tincoãs, do qual fez parte na década de 1970, Mateus reverenciou os Orixás, pediu a participação do público nas músicas e emocionou a todas (os/es) com a força de seu canto. 

“Invoquemos a presença da majestade superior. É um momento difícil que o mundo vive. Mobilizemo-nos”, convocou o artista, antes de puxar os primeiros acordes de Cordeiro de Nanã, que soou como um abraço a quem estava na plateia. Mais adiante, quando sua apresentação se encaminhava para o final, o mestre brincou com a plateia: “Como nosso tempo já está esgotado e para eu não ter que me levantar, gostaria que vocês pedissem o bis agora”. O público, que a cada música o aplaudia de pé, logo acolheu seu pedido e fez silêncio, enquanto ele ainda cantava os primeiros versos de Deixa a gira girar. E afirmou, ainda, que “vamos vencer”, pois “a luta continua, mas a vitória é certa”. 

Cássio Bomfim, multiartista e estilista, que já apresentou as edições de 2015 e 2016 do Molotov, e Luiz Valério, fisioterapeuta sanitarista e coordenador de saúde LGBT do Estado de Pernambuco, eram alguns dos que estavam aguardando a apresentação de Mateus. “Acho que é importante a gente trazer o resgate da cultura negra e potencializar a negritude nos festivais. O Coquetel Molotov traz essa questão de trabalhar a transversalidade nas ações. Para a cultura, acho muito importante essa retomada porque, inclusive, cultura salva. Resgatar vidas e celebrar a vida. Durante tanto tempo a gente discutiu morte, adoecimento, afastamento social. Acho que gente gosta e precisa ver gente. A gente precisa garantir todos os cuidados, os protocolos e avançar na felicidade, que acho que isso é que importa”, disse Luiz, em entrevista. 

Cássio, por sua vez, comentou sobre a importância cultural do Coquetel para a cidade: “É um festival que é a cara de um Recife que costuma ser soterrado pelas camadas de outras expressões mais massivas e que têm outros tipos de apelos. Acho que é uma semente importante de existir por uma natureza de intercâmbio entre potências de expressividades de vários lugares de Recife”. 

Juliana Zacarias, bailarina paulista que mora na cidade há cinco anos, se emocionou ao assistir à apresentação do músico baiano. “O show dele é um ritual. Ele é São Mateus, né? Pena que foi pouco, com 45 minutos cada um (dos artistas). Mas estou muito agradecida, foi a primeira vez que o vi no palco.”

As jornalistas Samantha Oliveira e Mikhaela Araújo já frequentam o Molotov desde as edições anteriores e guardam experiências marcantes, a exemplo do show da cantora MC Tha, que fez parte da programação de 2019. “A música tem sido uma aliada na pandemia, ouvindo em casa. Mas ver ao vivo, ouvir a voz de Mateus Aleluia ecoando no teatro inteiro e as pessoas batendo palmas... A energia que traz uma experiência pessoalmente é muito diferente da do fone de ouvido. Quando Mateus estava tocando, parecia que estava nos segurando no colo”, contou Mikhaela, em entrevista à Continente.




Show de Mateus Aleluia com o pianista e maestro Ubiratan Marques

Ainda na programação do primeiro dia do evento, a paraibana Luana Flores, que lançou o EP Nordeste futurista, fez uma apresentação enérgica com Jéssica Caitano, poetisa e compositora nascida na cidade de Triunfo, no Sertão do Pajeú. O show trouxe uma fusão de ritmos culturais da Paraíba e de Pernambuco com gêneros eletrônicos, levando discursos e performances cheias de política e instigação para o palco do Teatro Guararapes. A “parceria sonora” entre as duas já rola desde 2019, pois começou a partir de uma residência da Red Bull, sediada em São Paulo. 

Após o show, Luana conversou sobre o processo criativo de seu trabalho com a Continente: “O Nordeste futurista começou comigo querendo nomear o gênero de música que eu fazia. Foi nessa residência, inclusive, que fui enquanto beatmaker e lá me redescobri enquanto compositora. São ritmos populares do Nordeste, mas com um ‘quê’ eletrônico. Depois, esse nome foi se expandido, virou discursivo e pensei: ‘Poxa, falo tanto de demarcação de território. Nordeste, Paraíba’. Queria trazer em evidência o Nordeste, e o futurista começou a ser um pouco de um futuro ancestral. Para a gente se projetar para o futuro, para a gente entender o futuro, a gente precisa saber de onde a gente veio”. 

Quando a Rainha da Ciranda, Lia de Itamaracá, entrou no palco, encerrando a programação do sábado, todos os olhares e escutas do público foram capturados pela beleza de sua presença e pela força de seu canto. Da percussão aos metais, o ritmo da ciranda e de outros gêneros que compunham o repertório de seu show evocavam sorrisos e lembranças de momentos de partilha da plateia. A afinidade entre essa artista, que é Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco e faz morada no coração de muita gente pelo Brasil, foi quase imediata. E tornou-se evidente a saudade que estávamos – e ainda estamos – de assisti-la ao vivo. 

As irmãs Dulce e Severina Baracho, filhas do mestre Antônio Baracho, que integram sua banda, também estrelaram no palco e cantaram em todas as canções. A apresentação trouxe, ainda, as participações especiais de Lucas dos Prazeres, Viola Luz, Uana e Luciene Loyce. No palco do Coquetel, Lia também apresentou Mar de fogo, sua nova música em parceria com André Moraes, lançada nessa segunda (15), com um vídeo que traz nomes como Zezé Motta, Dona Glorinha do Coco e Silvero Pereira, entre outros.



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A segunda noite do festival, no domingo, teve início com um feat. da Mulungu e Pierre Tenório, artista de Belo Jardim, Agreste de Pernambuco. Com o show O que há lá, baseado no álbum homônimo lançado este ano, a performance de Jáder, Guilherme Assis, Ian Medeiros e Carlos Filizola encantou a plateia do Guararapes, que reagiu com intensos aplausos entre as canções. As projeções desenvolvidas pelos artistas visuais Tiago Lima e Gabriel Furmiga também fizeram sucesso e potencializaram a apresentação. A presença de Pierre reservou mais um momento em que a musicalidade e a poesia – “O amor é um céu nublado cheio de encontros relâmpagos”, como diz o haikai que apresentou – se uniriam para tomar conta do Molotov


Mun Há, Jáder e Romero Ferro

Natural de Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte pernambucana, o cantor e compositor Luiz Lins – cujo experimentalismo é uma constante em seu fazer artístico – foi a segunda atração do domingo, trazendo um show costurado por sucessos como Eu tô bem, A música mais triste do ano e Sem você. Em entrevista à Continente, ainda emocionado pela belíssima apresentação no festival, Luiz disse “não haver palavras para sintetizar” o sentimento de estar no palco e ver o público cantando as suas músicas. E sobre o que o inspira a compor suas letras, ele revelou que vem “das experiências”. “Gosto muito de brincar com as palavras. Acho palavra uma coisa fascinante.” 

A força da música pop brasileira foi celebrada no show de Romero Ferro, que lembrou ao público o quanto dançar é um território importante para vencer tempos difíceis. Victor Marinho e Carla Santanna compunham o seu balé com coreografias em várias das músicas. Com singles e sucessos como Fake e Love por você, do álbum Ferro, lançado em 2019, Romero convocou a todes a cantarem juntes. Sua versão de Você vai ver, de Zezé de Camargo e Luciano, formou um coro de vozes que ecoou pelo teatro. A atriz, cantora e performer visual Mun Há – que também dividiu o palco com Romero e com Jáder, vocalista da Mulungu – já tinha integrado outras ações do festival, anteriormente, mas essa foi a sua primeira participação no line-up. Com seu hit Quem vai salvar?, ela agitou a plateia com sua presença potente. 

Segundo estimativa do festival, a primeira noite contou com cerca de 1,6 mil pessoas, enquanto que a segunda, com quase 2 mil. Ao final da penúltima apresentação, as poltronas do teatro já começavam a ser preenchidas. Pelos quatro cantos do espaço, muita gente chegava para tentar um lugar próximo ao palco para poder acompanhar a apresentação daquela que se revelaria a atração mais aguardada de todo o festival. 

Quando a mineira Marina Sena foi anunciada, um mar de celulares já estava a postos aguardando o momento de sua entrada. Essa não foi a primeira vez da cantora no festival recifense. Há dois anos, ela havia se apresentado com sua antiga banda Rosa Neon, como disse em entrevista coletiva após seu show. Desta vez, no entanto, a artista trouxe ao palco do Coquetel seu trabalho em carreira solo, com hits como Por supesto, Voltei pra mim e Pelejei, de seu álbum De primeira, que vem conquistando crítica e fãs por todo o país. “Vir solo, como ‘patroa’ do negócio, é melhor, mais gostoso”, falou. “É um orgulho representar o sentimento de tantas mulheres, de tantas pessoas.” 


Marina Sena fez um dos shows mais aguardados desta edição do Molotov

Como diz os versos da composição de maior sucesso de Marina, cantados em uníssono no último dia do evento, “Vivo em tela viva/ Tela de cara e coragem/ Solta esse seu muro/ E põe os pés nessa viagem”. E após dois dias de reencontros entre artistas, equipes técnicas, entre o público e o palco, vibrando em tela viva, o Coquetel Molotov concluiu a sua programação dando aos presentes o sabor de voltar a compartilhar o que a música é capaz de proporcionar a quem se permite essa viagem. 

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

JONATHAN LIMA, fotógrafo. Instagram: @dondinho_

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