Audiovisual

O desafio de reinventar Macondo

Cem Anos de Solidão, minissérie produzida pela Netflix a partir do livro de Gabriel García Márquez, apresenta os primeiros oito capítulos dos 16 episódios que narram a saga da família Buendía

TEXTO Danielle Romani

13 de Dezembro de 2024

Ator colombiano Claudio Cataño que interpretou Aureliano Buendía em sua fase adulta

Ator colombiano Claudio Cataño que interpretou Aureliano Buendía em sua fase adulta

Foto Divulgação

Durante mais de 50 anos, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez recusou todas as propostas de filmagem da sua obra mais celebrada, o livro Cem Anos de Solidão, lançado em 1967, traduzido para 40 idiomas e que já vendeu mais de 50 milhões de exemplares pelo Planeta. Uma desconfiança compreensível, mas que se mostrou infundada com a mínissérie em 16 capítulos, dos quais os primeiros oito foram lançados na última quarta-feira (11), pela Netflix.

Os que apostaram no fracasso da adaptação da narrativa literária das sete gerações dos Buendía para o audiovisual, afirmando que a profundidade do texto e o realismo mágico que permeia cada entrelinha da obra pareciam ser intraduzíveis para a realidade, não tiveram razão desta vez. Ao contrário de outros trabalhos já adaptados para o cinema ou para a televisão, a exemplo do Amor nos tempos do Cólera – uma sofrível versão do livro de Garcia Marquez –, em Cem Anos de Solidão, que foi dirigido por Laura Mora e Alex Garcia López, os produtores acertaram e nos colocaram em contato com uma Macondo palpável, recheada de personagens que hoje, após assistir à série, ficarão eternamente interligados às faces e histórias do clã Buendía.

ATORES
A escolha por realizar a série com artistas colombianos foi um dos acertos. Assim como a montagem da cidade de Macondo e as filmagens na Colômbia. Afinal, a grande dúvida de García Márquez era exatamente como apresentar para a televisão ou cinema um patrimônio da literatura mundial que há 60 anos vem sendo lido e idealizado por leitores do mundo todo. Como retratar esses rostos que já haviam sido criados, adotados por milhões de leitores?

Foi esse o principal desafio dos diretores e produtores, que gastaram meses para finalizar a escolha dos atores. ”É muito difícil competir com a nossa própria imaginação, com os Buendía que cada um tem na cabeça. Então o que fizemos foi realizar um trabalho muito rigoroso no processo de seleção do elenco, e também percorremos toda a Colômbia em busca de novos talentos”, explicou à BBC News Laura Mora, uma das responsáveis pela série.

De fato, após a atuação de Claudio Cataño, que representa o coronel Aureliano Buendía em sua fase adulta, dificilmente se lerá o livro sem associá-lo a esse ator de porte alto, ossos magros e olhar distante. Igualmente será difícil não associar o patriarca do clã, José Arcádio Buendìa, à performance de Diégo Basquez. O impetuoso Arcádio foi bem representado por Leonardo Soto, que se prestou ao papel de protomacho, como é chamado no livro, com precisão. Tampouco pode se desdenhar da convincente figura de Melquiedes, o cigano que mudaria a vida dos Buendía, interpretado por Moreno Borja.

Marleyda Soto Rios e Diego Vásquez interpretam Úrsula Iguarán e José Arcadio Buendía. Foto: Divulgação

Mas, para coroar a trama, a figura que é gigantesca no romance, na minessérie ganhou a dimensão que lhe era devida: com a interpretação de Marleyda Soto Rios, a trágica e irredutível Úrsula Iguaran acaba de receber um rosto definitivo. Não será possível enxergar as páginas de Cem Anos de Solidão sem visualizá-la como a matriarca do clã.

Essa simbiose não se deu apenas com os atores principais. Os coadjuvantes também marcaram a série pela similaridade com que encarnaram os personagens secundários. Em especial as mulheres que tecem as tramas mais subterrâneas. A explosiva Rebeca (Akima Maldonado) que é adotada pelos Buendías e na adolescência mostra todo seu potencial sexual, é praticamente um personagem feita de puro realismo mágico. A prostituta Pilar Ternera (Vinã Machado), que acolhe carinhosamente os seus amantes Buendía, imprime uma dramaticidade tão natural às tramas de Macondo, que poderia se dizer que esteve lá, nos ultimos 60 anos. A amarga Amaranta, filha de Úrsula e José Arcádio, nos faz oscilar entre a indignação e a piedade diante da sua vida mesquinha, vingativa, triste e vã. Talvez seja a personagem que se destaque ainda mais na série do que no livro.

RITMO
Se os atores foram uma escolha fundamental para o êxito da minissérie, o ritmo empreendido também é muito similar ao do livro. A narrativa às vezes lenta, modorrenta, de vez em quando é quebrada por episódios cheios de fúria ou imprevisibilidade, acaba dando o tom correto do que transcorre na Macondo de Garcia Marquez: uma cidade no fim do mundo, onde todos os dias são iguais, como um sonho ou um delírio, e que ocasionalmente é abatida pela desgraça.

Para adaptar o livro, que tem poucos diálogos e intercala saltos do tempo, os roteiristas tiveram que tornar a trama mais linear, seguindo a linha histórica da fuga de Úrsula e José Arcádio da cidade natal, após o casamento, para fugir da crença familiar que eles estariam fadados a gerar um filho que poderia ter semelhanças com uma iguana ou nascer com um rabo de porco. Depois disso segue pela criação da cidade, pelos romances mal sucedidos entre os personagens e nesta primeira parte, encerrando com Aureliano Buendía ainda envolvido com as revoluções que lidera.

Personagens como os gêmeos Aureliano Segundo, Arcádio Segundo, Remédios a bela, Fernanda, entre outros tantos, só entrarão em ação mais efetiva na segunda temporada.

O roteiro também optou por uma narrativa literária, com um narrador que comunica as premonições de Aureliano. A minissérie, aliás, tem a mesma abertura da obra de Garcia Marquez.

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. É desta forma que o escritor abre o romance. E com essa mesma frase que o narrador começa a adaptação da obra.

INVESTIMENTO
Para produzir a série a Netflix investiu cerca de U$ 50 milhões somente para iniciar o projeto que incluiu a construção de Macondo, que vai se desenvolvendo com requintes precisos na minissérie, a partir dos adereços, das casas antes simples e depois decoradas com objetos que começam a chegar a partir do contato com o mundo externo e com o crescimento da cidade. A cenografia, portanto, é outro ponto bem explorado pela produção.

Os produtotes também tiveram o cuidado de fazer uma pesquisa detalhada sobre os costumes e tradições da Colômbia entre o século 19 e início do século 20, buscando recriar, da forma mais plausível, a realidade que permeia o livro de Garcia Márquez.

No tocante ao realismo mágico, poucos malabarismos foram feitos, inclusive, a produção deixou de lado a possibilidade de usar efeitos especiais. Mas os truques simples que aparecem em cena são plausíveis: a levitação do padre em praça pública, o sangue que escorre – por centenas de metros – para os pés de Úrsula, após a morte de Arcádio Buendía e algumas assombrações pontuais, como o balançar de cadeiras, fechar de portas e janelas, que conferem um tom adequado a esses episódios tão comuns em Macondo.

A opção por realizar uma minissérie, e não um filme, com certeza, foi fundamental para que Cem Anos de Solidão fosse adaptada com credibilidade. Em um livro que tem mais de 400 páginas com centenas de subhistórias, seria impossível resumi-las em poucas horas. Em alguns casos, seria impossível amarrar o enredo. Contrariando a narrativa dos incrédulos e do próprio Gabriel Garcia Marquez, a série é uma boa opção para adentrar nas entranhas de Macondo. Mas como sempre acontece, o livro ainda continua imbatível. Agora, mais do que nunca, é uma boa hora para conhecê-lo ou relê-lo.

Cem Anos de Solidão – minissérie produzida pela Netflix com direção de Laura Mora e Alex Garcia Lópes. Oito episódios disponíveis. Os outros oito restantes ainda não têm data marcada para exibição.

DANIELLE ROMANI, repórter das revistas Continente e Pernambuco

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