Artigo

Uma louca homenagem

Em 'Di', controverso documentário lançado há 40 anos e realizado no enterro do pintor Di Cavalcanti, Glauber Rocha trouxe provocações éticas e estéticas

TEXTO Carla Marinho

26 de Dezembro de 2017

A atitude ousada, ou ilegal, de Glauber Rocha, ao filmar o enterro de Di Cavalcanti, não tirou seu mérito

A atitude ousada, ou ilegal, de Glauber Rocha, ao filmar o enterro de Di Cavalcanti, não tirou seu mérito

Foto Reprodução

O baiano Glauber Rocha não é uma unanimidade nacional, embora abarque a admiração de brasileiros e estrangeiros. Um dos expoentes do Cinema Novo, traz em sua obra elementos de caráter social que o colocaram em destaque dentre os maiores cineastas do Brasil. Seguindo sua veia polêmica, Glauber lançou, há 40 anos, um documentário homenageando seu amigo, o artista plástico Di Cavalcanti: Di, também intitulado Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua quimera, somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável, de 1977. Não fosse o local e a situação envolvida, provavelmente não receberia o destaque esperado e jamais ouviríamos falar sobre o acontecimento.

De maneira controversa, o cineasta que se mostrava sempre tão sensível a questões sociais e políticas, invadiu o funeral e enterro do artista em questão, empunhando uma câmera que mostrava o rosto do falecido, dos colegas e dos visitantes. Acompanhava ao fundo, a narração de poemas de Augusto dos Anjos e Vinícius de Moraes, entrecortadas por discursos do próprio diretor.

“Morreu Di Cavalcanti, o último grande pintor modernista. Precisamos filmar!” Grita, em tom exaltado um diretor que, na edição, mostra recortes de imagens, músicas de diversos artistas de renome nacional como Paulinho da Viola, Lamartine Babo, Villa-Lobos e Pixinguinha. Gritos seus são ouvidos indicando a roteirização do momento: “Filma a cara dele”. Di, nome curto do documentário, pode ser acusado de tudo, menos de não mexer com quem assiste. Pode-se amar ou odiar, mas ignorar, nunca.

O poema que dá título ao curta chama-se Versos íntimos, do paraibano Augusto dos Anjos, um poeta com uma obra dissonante de sua época, sendo até hoje de difícil encaixe em algum movimento literário, embora muitos insistam em colocá-lo, no geral, como um pré-modernista. Ele falava sobre tudo aquilo que as pessoas não gostavam de ouvir, mas que estava ali, à espreita. Suas palavras, milimetricamente contadas e rimadas, destoavam do conteúdo enervantemente maldito. Suas palavras chocantes traziam conselhos que machucam por sua frieza e realidade. Dirá Dos Anjos na última parte do poema que dá nome ao documentário de Glauber:

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Nada se encaixaria melhor. De maneira mórbida, o poema preenche, com precisão, a invasão de um exaltado cineasta. A face sombria da morte trazida pelo paraibano é justamente aquela que muitos não querem ver. A inevitabilidade do momento final surge de maneira transparente e macabra, óbvia e triste, mostrando que a despeito do medo, e do quanto a evitemos, a morte sempre virá ao nosso encontro. O texto do poeta, dessa maneira, serve tanto como epitáfio quanto complementação ao sentido anárquico do documentário. Versos íntimos o acrescenta de maneira definitiva e assustadoramente real.

REPERCUSSÕES
Como era de se esperar, houve todo tipo de reação ao filme. Afinal, a maneira como a arte pode ser compreendida é algo extremamente particular; o que uns consideram arte pode não ser por outro. Glauber chegou a se justificar no próprio documentário: tratava-se não de uma invasão, mas de uma celebração daquela vida que tanto contribuiu para as artes brasileiras. Alguns, como o documentarista, entenderam o movimento como uma louca homenagem, que em muito lembra o burburinho causado pela Semana de Arte de 1922 – não por acaso tendo em Di Cavalcanti um de seus participantes mais ativos.


Imagem do filme. Foto: Reprodução

Em um manifesto entregue na sessão de 11 de março de 1977, o cineasta justifica: “Filmar meu amigo Di morto é um ato de humor modernista-surrealista que se permite entre artistas renascentes: Fênix/Di nunca morreu. No caso, o filme é uma celebração que liberta o morto de sua hipócrita-trágica condiçãoDi (das) mortes, Glauber Rocha, texto mimeografado, distribuído na sessão do filme em 11 de março de 1977, na Cinemateca do MAM (RJ).

Não há como não fazer um paralelo do feito de Glauber com as proibições em torno de obras de arte que estamos vendo atualmente. E com um tema tão controverso que invada o sentido moral e ético, era esperado que o doc sobre Di Cavalcanti despertasse a ira e descontentamento de grupos diversos, sobretudo a família e amigos, que viu o ato como invasão de privacidade e desrespeito a um momento íntimo.

Seja qual for o lado, é preciso não esquecer uma questão. As crenças sobre a morte, ou sua passagem (como se vive, como se encara), são decorrentes de uma cultura. Por isso, não podemos deixar de observar o seu caráter mutável (temporal e localmente), sendo fundamental sempre manter abertas as possibilidades de diálogo sobre o tema. No México, por exemplo, é um momento de homenagem aos mortos, pelas suas existências. Para os brasileiros, a morte permanece sendo a inimiga certeira.

E mesmo com tantas informações e preenchimentos de vida, a morte permanece sendo o maior e o inevitável dos pesadelos. Esse certamente é um dos motivos que torna tão perturbadora a ideia de alguém invadindo um momento naturalmente dolorido e ainda de maneira inesperada. Como prosseguir toda a ritualística quando não há o respeito mínimo ao luto?



Embora o documentário tenha recebido o Prêmio de Melhor Curta-metragem no Festival Internacional de Cannes e, em 2015, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) tenha eleito o documentário como um dos 100 melhores filmes brasileiros, a justiça brasileira entendeu que houve desrespeito ao artigo 20 do código civil, que proíbe qualquer tipo de exposição não autorizada em imagens ou textos (abarcando aqui também as biografias não autorizadas): “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Mas não há apenas a questão legal. Há a questão ética. Onde está o limite tênue entre o que pode um cineasta apresentar ou não? Estando ele de posse de um material, pode trabalhar sua arte da maneira que julgar necessária? Seria ético invadir, filmar o rosto, o ritual, os amigos e recitar poemas nesse momento específico? Tendo em suas mãos um material filmado, mesmo que tenha uma autorização expressa, qualquer cineasta pode manipular o material em mãos. Mas Glauber nem tinha a autorização do personagem principal (já falecido) nem daqueles que, em um momento de intimidade, se despediam de um ente querido.

REFLEXÕES
A questão torna-se mais profunda e tensa quando pensamos que os personagens dos documentários são atores sociais, conforme entende o teórico e crítico Bill Nichols, não tendo obrigação alguma de agir conforme o cineasta deseje. Ainda segundo o autor, “a ética torna-se uma medida de como as negociações sobre a natureza da relação entre o cineasta e seu tema têm consequências tanto para aqueles que estão representados no filme como para os espectadores. Os cineastas que têm a intenção de representar pessoas que não conhecem, mas que tipificam ou detêm um conhecimento especial de um problema ou assunto de interesse, correm o risco de explorá-las”.

Embora possa haver as marcações e os direcionamentos do roteiro, o ator social teria sua liberdade assegurada, inclusive para dizer não. O cineasta teria a obrigação moral de não ferir o direito individual e deveria, mesmo com a relação contratual, não forçar pessoas a demonstrarem algo que não desejam. Ao adentrar no enterro de um amigo sem autorização, Glauber invade o espaço, tanto do morto quanto de sua família.

As questões sobre como se deve delimitar a presença ou a citação de pessoas nos documentários são de extrema importância. A ética deve permear todo o trabalho, mesmo que existam documentos que autorizem o cineasta a fazer uso do material coletado. Isso porque o documento não estipula que palavras ou imagens possam ser manipuladas. Conforme nos indica ainda Nichols, “o direito do diretor a uma performance é um 'direito' que, se exercido, ameaça a atmosfera de autenticidade que cerca o ator social. O grau de mudança de comportamento e personalidade nas pessoas, durante a filmagem, pode introduzir um elemento de ficção no processo do documentário (a raiz do significado de ficção é fazer ou fabricar). Inibição e modificações de comportamento podem se tornar uma forma de deturpação, ou distorção, em um sentido, mas também documentam como o ato de filmar altera a realidade que pretende representar”.

Diante disso, percebemos que o documentário, mesmo não tendo agradado geral, acaba por cumprir pelo menos seu objetivo primário, que não é o de chocar, como podem imaginar alguns. E se Glauber Rocha falhou miseravelmente ao considerar a parte ética, invadindo não só direitos individuais de alguém quem não pode se manifestar e de toda uma família, acertou em um item, pelo menos: o de provocar discussões sobre rituais e o caráter cultural das homenagens. É impossível se manter inerte diante de sua produção, abstendo-se de uma opinião contrária ou a favor. Mesmo que de maneira agressiva, o filme instiga a discussão, ao despertar no espectador sentimentos contraditórios, desde a aversão, a rejeição a, até mesmo, o prazer oculto em ver pessoas em sofrimento. Sendo esse o elemento vital para toda obra que se entenda arte, consideramos que o cineasta baiano conseguiu, enfim, o que desejava: fomentar a discussão e manter-se como um vivo exemplo do que um cineasta deve ser, um provocador.

Assista também a este vídeo.

CARLA MARINHO, criadora do site Cinema Clássico e especialista em Estudos Cinematográficos pela Unicap.

Publicidade

veja também

O enigma Taylor Swift

Sarapatel semiótico

Arquivos para o comum, arquivos para o futuro