Artigo

Política da verdade

Mesmo sendo, por definição, o lugar de dissenso e pluralismo, a política no Brasil agora é a personificação da “verdade” na qual o debate e o público são desprezados

TEXTO Filipe Campello

03 de Dezembro de 2018

Ilustração Mozart Fernandes

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Numa conhecida passagem do evangelho
, Jesus Cristo se cala ao ser indagado por Pilatos sobre o que era a verdade. Pilatos insiste na pergunta, lembrando as graves acusações dirigidas, mas Jesus permanece apenas com o silêncio de quem dali iria ser crucificado. 

No seu primeiro discurso poucas horas depois da confirmação de sua vitória este ano, Jair Bolsonaro iniciou evocando um verso bíblico que se tornou recorrente ao longo de sua campanha: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Em cima da sua mesa – quase que simbolizando o conteúdo dessa declaração –, estavam quatro livros: a constituição, a Bíblia, Memórias da Segunda Guerra, de Churchill, e – no mesmo patamar, digamos – O Mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo de Carvalho.

A escolha certamente minuciosa do cenário acima sintetiza bem o conteúdo da “verdade” evocada pelo presidente eleito. A sua campanha vitoriosa pautou-se na retórica do combate a um inimigo comum representado pela esquerda e pelo fantasma do comunismo, com a promessa de “banir de nossa pátria os marginais vermelhos”. No lugar da ideologia de esquerda, contudo, a posição contrária representada pela figura de Bolsonaro assume-se não apenas como ideologicamente neutra, mas representando a própria verdade revelada.

Sabemos que essa forma de discurso tem colocado em xeque a consolidação da democracia ao longo da modernidade. As concepções modernas de Estado representaram justamente os esforços de dissociação da política de uma noção de verdade revelada, desprendendo-se daquilo que os gregos entendiam por episteme – uma forma de conhecimento de natureza científica associado à verdade. Juntamente à separação entre Igreja e Estado, portanto, o desenvolvimento de âmbitos como o da esfera pública e da mídia consolidaram a compreensão da política como um lugar de dissenso e pluralismo de visões de mundo característico das democracias modernas.

A promessa de libertação através do conhecimento da verdade – personificado, aqui, na figura do “mito” – está longe de ser inócua. Menos de um mês depois de ser eleito, um sem número de atabalhoadas acumulam-se antes mesmo de o futuro presidente subir a rampa do planalto. Mas três âmbitos me parecem particularmente alarmantes.

O primeiro refere-se à política externa e ao alinhamento com a recente onda de discursos nacionalistas. Sem ter assumido o planalto, Bolsonaro já provocou ruídos com a China, o mundo islâmico e o Mercosul. Mas a cereja do bolo veio com a indicação do futuro ministro das Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araújo. Propondo-se finalmente a encontrar um nome “sem viés ideológico”, o presidente eleito seguiu uma indicação de alguém tão neutro como Olavo de Carvalho. No seu igualmente neutro viés ideológico, o futuro chanceler quer “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista [...], que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”. Isso que o chanceler entende por marxismo cultural – repetindo o que poderia ser qualquer texto de Olavo de Carvalho – é, na verdade, aquilo que poderia ser associado, mesmo com todas as suas contradições, ao projeto iluminista: racionalidade, critérios de cientificidade ou o próprio papel das universidades. Não por acaso, o futuro chanceler vê a Europa, imaginem, como “culturalmente vazia”.

O segundo inimigo do discurso político da verdade – como já apontado desde as eleições – é a mídia. Uma das estratégias amplamente utilizadas, seja na campanha de Trump ou na de Bolsonaro, é justamente desmentir, confundido para esclarecer e esclarecendo para confundir. Quem detém a verdade não precisa ir a debate. A verdade não deve nem precisa ser disputada – ela é anunciada em pequenas doses diárias de até 280 caracteres. Pronto. Se a mídia desmente uma informação, é esta notícia que é falsa. Como escreveu o futuro chanceler em seu blog – no que poderia ser um Twitter de Donald Trump –, “Fake news é o poder da grande mídia de selecionar e reorganizar os fatos”.

Mas o terceiro e principal sinal de alerta, pela amplitude e gravidade de seus desdobramentos, refere-se à educação. O ministro indicado por Bolsonaro, com o aval da bancada evangélica e do próprio Olavo de Carvalho, Ricardo Vélez Rodríguez, além de ser entusiasta da monarquia e da ditadura militar, é um dos aguerridos defensores do Escola sem Partido. Como vem sendo amplamente discutido, o polêmico projeto, uma das principais bandeiras do presidente eleito, apresenta tantos problemas e mal-entendidos, que não seria possível mencionar todos aqui.

Mas um equívoco que se sobressai consiste no enquadramento unilateral do que é tratado como ideologia. Em um dos textos publicados no seu perfil, umas das principais defensoras do Escola sem Partido, a deputada eleita Ana Caroline Campagnolo, que criou um canal para denúncia de “professores doutrinadores”, defende uma escola evangélica do seu Estado – uma escola, escreve a deputada, “sem subversão, sem dissimulação e sem afronta aos valores familiares”. Tal posição não se mostra como representando, digamos assim, um determinado “partido”, mas assume um falso – aliás, impossível – caráter de neutralidade ideológica.

No entanto, essa percepção da escola como esvaziamento da crítica, como uma espécie de lugar apolítico ou até mesmo arriscadamente antipolítico, contraria toda uma tradição de reflexões ao longo da filosofia moderna sobre a educação, como Rousseau, Kant, Hegel ou, mais recentemente, John Dewey – para não precisar recorrer ao demonizado Paulo Freire. Em todos eles, a importância da escola não consiste apenas no aprendizado de um currículo específico, mas na premissa de que é, por excelência, um espaço de socialização onde se aprende através da confrontação de ideias. Para Hegel, por exemplo, é na escola onde a criança não é apenas amada a partir de laços afetivos familiares, mas também estimada na sua singularidade, configurando um lugar de prática social no qual ela aprende a conviver com quem pensa diferente. Por ser uma etapa importante de encontro com a diversidade de opiniões, Hegel via a escola como “a passagem da família à sociedade civil”.

Assim, por trás da defesa da família como (o único) espaço de formação e, inversamente, dos constantes ataques ao papel do professor e da escola como sendo espaços de doutrinação ideológica, há a idealização do ambiente familiar e privado, e a suspeição de tudo que é público – como se a família fosse sempre esse lugar seguro para a integridade psíquica e física das crianças.

Um dos principais legados da modernidade foi justamente o de associar o amadurecimento do indivíduo à coragem e à capacidade de colocar qualquer coisa em questão. Aprender significa habituar-se a questionar as razões de suas escolhas e seus valores. Questionar não significa dizer que não haja comprometimento com a verdade – aliás, isso seria entrar no jogo da pós-verdade –, mas que nenhuma opinião está imune à crítica. Se nos atemos ao sentido pleno da premissa liberal de defesa irrestrita do indivíduo, devemos ter a possibilidade de expor ao debate qualquer assunto – até mesmo aquele que o Escola sem Partido quer deixar de fora do ambiente escolar.

Ao atacar uma suposta doutrinação, o projeto, além de afrontar a garantia constitucional de liberdade de cátedra, sugere que apenas uma determinada posição é tomada como sendo ideológica e passível de ser cerceada. A consequência é que a simples menção a um autor mais à esquerda pode ser enquadrada como tentativa de doutrinamento – pressupondo, aliás, um estudante totalmente acrítico, que absorve sem questionamentos qualquer conteúdo.

Acrescenta-se a isso a posição cínica de Bolsonaro, ao dizer que, na condição de professor de Educação Física, pode afirmar que todo docente deveria se orgulhar de ser filmado – quando ele próprio sabe que o intuito das filmagens não é nada mais do que a intimidação. Daí decorrem, quase naturalmente, declarações como a de que o presidente eleito decidirá quais questões vão estar no Enem, ou a do futuro ministro da Educação, que já propôs em seu blog a criação de conselhos de éticas para zelar “pela reta educação moral dos alunos”.

Nos três casos que mencionei – política externa, mídia e educação –, a mensagem implícita é: enquanto tudo o que pode ser associado, mesmo grosseiramente, a um discurso de esquerda é ideologia, o correspondente no seu espectro oposto é a verdade. Como escreveu o futuro chanceler em texto recente, “ninguém quer substituir uma ideologia por outra”. Quando é o próprio Estado que assume esse lugar da verdade, cresce-se o risco de cerceamento da liberdade de expressão, principalmente em âmbitos como a cultura e a educação, justamente o terreno das ideias. Se a política representa a verdade, não precisamos ouvir o que tem a dizer professores, artistas ou jornalistas.

Por trás de uma farsante defesa da liberdade individual, o que estamos assistindo, portanto, é o prenúncio de imagens já bem conhecidas de cerceamento e intimidação, em que o próprio Estado novamente pode estabelecer o que significa retidão moral ou o que deve ser ensinado nas escolas – exatamente igual a tudo aquilo que o futuro governo acusara ferrenhamente na esquerda como “ideológico”.

Esse cenário amedrontador com aura de verdade torna-se difícil de ser contrariado. A pós-verdade indica que qualquer discurso assumido como verdade pode ser irrefutável. A argumentação dá lugar ao deboche, em que se despreza qualquer crítica ou argumento contrário. Tal estratégia é o que, na lógica, se chama de envenenar o poço: uma falácia na qual se desqualifica o oponente do debate com a intenção de ridicularizar tudo o que ele tem a dizer. Se chegarmos ao fundo do poço, ele será um poço envenenado.

Não por acaso, entre os inúmeros seguidores de Olavo de Carvalho – que hoje, de modo impressionante, representa a intelligentsia brasileira, cuja influência chegou à indicação de dois importantes ministros do próximo governo –, há uma forte cultura antiacadêmica. A melhor imagem do intelectual no Brasil de hoje é a de alguém com um charuto e uma espingarda, fazendo o que consegue melhor: atirar para todo lado. Apesar dos meios mais toscos, acaba atingindo o alvo que acredita ser o certo.

Entre os livros cuidadosamente espalhados sobre a mesa, vê-se a arrogância de se dizer o mínimo que todos nós deveríamos saber para não sermos idiotas. O que se nega sorrateiramente é que aqueles que trabalham e pesquisam na escola ou na universidade – esses, sim – são o que continuamente estão comprometidos com a verdade enquanto conhecimento. A política, por sua vez, refere-se a uma disputa sobre percepções e opiniões distintas em torno de questões sempre em aberto – o que é uma sociedade justa, qual deve ser o papel do Estado, quais os melhores arranjos institucionais, etc. Em nenhum deles, a verdade está dada, mas continuamente disputada. A maioria pode vencer uma eleição, mas não detém a verdade. A política, quando interrogada sobre o que é a verdade, poderia humildemente aprender com o exemplo de Cristo.

FILIPE CAMPELLO, doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt, é professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética (NEFIPE/UFPE). Fez pós-doutorado na New School for Social Research (Nova York).

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