Quis o destino que, por irônica coincidência, o jornalista e roteirista Amin Stepple viesse a óbito no mês passado, o mesmo em que a série Asas da América, produzida por seu amigo Carlos Fernando (1938-2013), completou 40 anos. Nascido em 1950, Amin foi um dos precursores do novo cinema pernambucano. Participou ativamente do ciclo do super-8 no Recife dos anos 1970 e, posteriormente, foi responsável pela direção do curta That’sa lero-lero (1994) e pelo roteiro dos longas Árido movie (2005) e País do desejo (2012). Já o compositor e produtor Carlos Fernando, ao reunir, a partir de 1979, grandes estrelas da MPB para interpretar frevos de sua autoria, na citada série de coletâneas Asas da América, revolucionou a trajetória daquele gênero musical. Falecido em 2013, nos legou, além dos álbuns que produziu, inúmeras canções de sucesso, a maioria delas em parceria com Geraldo Azevedo.
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Recife, manhã de sol. No dia 21 de dezembro de 2017, uma quinta-feira, encontrei Amin Stepple para uma conversa por volta das 10h, num café na esquina da Rua do Futuro com a Dr. Malaquias. O tema: Carlos Fernando, o bruxo de Caruaru, e sua mais portentosa obra, Asas da América. Me acompanharam o músico Luiz Ribeiro e, mais ao final da conversa, o cineasta Helder Lopes, dois jovens e talentosos caruaruenses interessados em levar adiante o legado do conterrâneo.
Ali, descobri o que havia em comum entre aqueles dois personagens emblemáticos de um Recife extinto: a paixão desvairada pelo cinema e pela boemia, esteio de uma bela amizade que resultou em prolíficas parcerias profissionais e criativas. A relação entre ambos remonta à segunda metade dos anos 1970, quando Stepple se estabeleceu temporariamente no Rio de Janeiro. “Eu fui estudar cinema no Rio, passei dois anos lá. Anos 1970; 1975, talvez. Estudei na Cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna). Uma vez, saí com um amigo meu. Passamos pela praia, não sei se Ipanema ou Leblon, e lá estava Carlos Fernando com uma namorada. Nos falamos, mas nada além. Nossa amizade se estreitou, realmente, no Recife. Ele pediu para eu escrever uma reportagem sobre o primeiro Asas da América. Na época, eu trabalhava no Diario de Pernambuco. Daí, escrevi sobre os discos, nas contracapas, e nunca cobrei nada. Nos tornamos grandes amigos.”
Uma matéria não-assinada, de 11 de fevereiro de 1980, foi a primeira a mencionar o lançamento do álbum Asas da América no DP. “Pela CBS, sai o álbum Asas da América Frevo. Um disco gravado no Rio, mas muito da gente”, introduz. Nela, o autor anônimo avaliava: “Aí está o LP de Carlos Fernando e seus amigos. Bem gravado, bons arranjos, enfim, um trabalho coletivo da melhor expressão cultural e artística”.
No mês seguinte, uma nota também sem assinatura, intitulada Frente revolucionária, enaltecia a recepção positiva que o Asas da América vinha recebendo do público e da crítica sudestina. Ao final, provocava os leitores: “Diante da reação do público, faz crer que esteja nascendo no Brasil um novo movimento musical que tem na própria palavra a sigla FREVO: Frente REVOlucionária!”. Em plena vigência da ditadura civil-militar, teria sido Amin a arriscar tal pilhéria subversiva?
Carlos Fernando. Foto: Reprodução
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Carlos Fernando havia se estabelecido no Rio de Janeiro desde 1972. Em abril de 1973, apogeu dos anos de chumbo, chegou a ser preso pelos militares. O passado ligado ao PCB caruaruense, do qual seu irmão Manoel Messias era membro notório, foi, na época, o suficiente para condená-lo. Ninguém poderia desconfiar que sua futura criação “frevolucionária” serviria, um dia, como munição para o deboche político-estético de Amin.
A cada vez que um volume do Asas da América era lançado, calafrios percorriam a espinha dos puristas locais. Além da participação de baianos que estavam na crista da onda, como Gil e Caetano, os arranjos incluíam baixo elétrico, guitarra e teclado, o que rendeu a Carlos Fernando a acusação de descaracterizar o frevo. Talvez por isso, até hoje, a grande maioria das canções do Asas ainda seja ignorada pelo público pernambucano e mesmo por muitos supostos especialistas em frevo.
No meio artístico e intelectual pernambucano, Amin Stepple e Jomard Muniz de Britto estavam entre os maiores entusiastas do Asas da América. Colaboraram em várias ocasiões com comentários e crônicas publicados nos encartes da série.
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Início dos anos 1990: sob o protesto de artistas e intelectuais de esquerda, Carlos Fernando apoia a candidatura de Joaquim Francisco, do Partido da Frente Liberal (PFL), ao governo do estado. A vitória do candidato foi o mote para que voltasse a Pernambuco, depois de quase 20 anos morando no Rio de Janeiro. Com recursos do extinto Bandepe (Banco do Estado de Pernambuco), produziu o sexto volume do Asas da América, o primeiro da série gravado em solo pernambucano.
O álbum é uma deliciosa crônica da boemia recifense do início dos anos 1990, que se reunia nas dependências do lendário Clube da Farra e de outros bares como o Biruta e o Empório Sertanejo. Na capa, uma reprodução perfeita do cartaz do filme Amarcord, de Fellini, utilizada sem qualquer preocupação com direitos autorais. Apenas no verso, entre um e outro agradecimento, uma menção às “meninas do BAR PANQUECAS de Boa Viagem, por terem cedido o pôster do filme Amarcord de Fellini, que foi reproduzido pelo fotógrafo HELDER FERREIRA”. A obra trata da infância do diretor italiano na pequena cidade interiorana de Rimini. Ao mergulhar na própria memória, Fellini nos apresenta a personagens pitorescos e narra situações em que realidade e fantasia se misturam num saboroso caldo surrealista. Qualquer semelhança com as crônicas musicais de Carlos Fernando não seria mera coincidência.
Desta feita, Amin Stepple foi convidado para outra importante empreitada: escreveria um texto para a contracapa do long-play. Nele, ao gosto da poesia de Carlos Fernando, sugere que o álbum se chame Sargent frevver e cita os personagens godardianos de Caruaru e Berlim, entre outros que desfilam pelas canções. “O sargentão de Carlos Fernando é apátrida. E chic.” Além disso, no encarte do álbum, escreveria abaixo da letra de cada canção, um pequeno texto suplementar. O resultado: 14 minicrônicas surrealistas em estilo telegráfico, numa série oportunamente intitulada ROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSRO, clara alusão ao escritor modernista Oswald de Andrade.
O cinema era, para Oswald, a arte do futuro. Ainda na época do cinema mudo, ele exortava seus leitores a suprimir as “ideias e outras paralisias” pelos “roteiros”. Afinal, segundo ele, “somos concretistas”. “Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.Roteiros.”, provocava. No Manifesto antropofágico (1928), com seu estilo repleto de aforismos distribuídos em períodos curtos, Oswald golpeia o leitor como o cinema ao espectador, numa sequência de cortes abruptos. Não à toa, é considerado, por alguns, o pioneiro da “escrita cinematográfica” no Brasil.
Enquanto manuseava meu exemplar do long-play, Amin contou como havia escrito aqueles “roteiros”: “Naquela época, ainda era máquina de escrever, e aí eu escrevia, não gostava e jogava fora. Escrevia, às vezes dava certo, às vezes errava, jogava fora… Fui notando que ele estava ficando impaciente. Eu disse: ‘Ó, Carlinhos, o processo é esse!’”.
– Queria que saísse logo?, perguntei – Aí é que tá. Ele falou: ‘Esse não é o problema. O problema é que eu estou preocupado com Cuba, faltando papel, e você aí gastando’. Foi numa época de crise (...).
Apoio ao PFL e solidariedade a Cuba conviviam harmoniosamente na visão de mundo de Carlos Fernando. “A inteligência não tem cor”, diz o verso de Luar da Madalena, um dos frevos que compõem o álbum.
Quanto aos ROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSROTEIROSRO, alguns trazem pequenos diálogos nonsense; outros, mosaicos de palavras pinçadas aparentemente a esmo, como num painel abstrato. Há ainda descrições que resvalam no absurdo e nas narrativas fantásticas, cada qual a dialogar com alguma das canções do álbum e expandir – ou ancorar – suas possibilidades interpretativas.
“Nunca tomei ácido, a vida toda só tomei cachaça”, afirma ao se referir ao “roteiro” a seguir, que escreveu para a canção Clube da Farra, de Carlos Fernando e Lula Queiroga:
“A coreografia apocalíptica de milhares de gravatas borboletas. A ciclista faquir a vomitar truques ilusórios de rosas brancas. Bustos de plástico amamentavam com creme de barbear a girafa de papelão. Um jingle melódico anunciava uma nova massa alimentícia que irá redimir toda a humanidade. As graças de ser sempre Tremens no Clube da Farra.”
– É a conversa louca do clube, explicou.
Mas qual seria relação da antropofagia oswaldiana com o frevo do Asas da América? Para Amin, “o Carlos Fernando era, de certa forma, um deglutidor. Um antropófago. E a proposta do modernismo é essa. Misturar Lili com Piaf, Pierrot Le Fou, Carlos Pena… Uma mistura. Um sincretismo, que a poesia modernista, sobretudo a de Oswald de Andrade, libertou. E ele absorveu”. Nas Asas da América, a Lili do cinema, protagonista do filme homônimo de 1953, interpretada pela então jovem atriz francesa Leslie Caron, baila pelas noites olindenses durante o Carnaval, ou se transforma na musa do bloco Nem Sempre Lily Toca Flauta. Numa canção, Carlos Fernando a compara a Piaf. Em seu roteiro, Amin a compara a Dietrich e filosofa: “O que importa? Verdade ou fantasia?”.
Amin Stepple. Foto: Reprodução
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A experiência de frequentar o cinema foi determinante para moldar a sensibilidade do jovem Carlos Fernando naquela Caruaru dos anos 1950. Segundo Amin, “Carlos Fernando era adolescente em Caruaru, e tinha uma tia, chamada ‘Dete’, bilheteira de um dos principais cinemas da cidade. Ele entrava de graça, então ia para o cinema todo dia. Logo, a cultura de Carlos foi audiovisual. Ele não tinha uma cultura livresca. Na fase adulta, ele acompanhou toda a Nouvelle Vague, a história do cinema francês, dos anos 1960 e 1970”.
Paixão comum a ambos, o cinema era tema recorrente nas mesas de bar que frequentavam. Mas a avidez cinéfila de Carlos Fernando era tanta, que muitas vezes Amin não conseguia acompanhá-lo: “Era difícil para mim pelo seguinte: ele via muito filme, e para mim era impossível, na época, porque eu trabalhava. Aí, era um combate desigual. Eu dizia: ‘Carlos Fernando, você vê tudo e eu não vejo nada!'. 'Mas, bicho, você tem que ver!', reclamava ele. Me dava esporro. Ele frequentava muito o cinema da Rosa e Silva e da Fundação”.
Amin também se impressionava com a capacidade do amigo em traduzir o cotidiano em poesia. Relacionava esta desenvoltura à naturalidade com que transitava pela chamada cultura oral: “Oralidade. Os grandes poemas da humanidade foram orais. E me impressionava muito isso. Nenhuma dessas letras ele anotou. Era pura memória”.
Muito antes do Asas da América, contudo, cinema, oralidade e antropofagia já caminhavam lado a lado nos escritos de Oswald de Andrade. Enquanto a modernidade urbana propiciava a emergência de novas sensibilidades, Oswald de Andrade preconizava, em seu Manifesto da poesia pau-brasil (1924), o surgimento de uma arte que traduziria aquele mundo de profusão imagética e ritmos frenéticos. Anunciava nossos artistas do futuro como “práticos, experimentais, poetas. Sem reminiscências livrescas” e fazendo uso de uma “língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. “A poesia existe nos fatos”, afirmava.
Embebido desde a mais tenra idade no caldeirão da fantasia cinematográfica e tendo assimilado, pela vivência, os influxos da cultura oral que predominava no interior do Nordeste, teria sido Carlos Fernando um protótipo do poeta modernista vislumbrado por Oswald de Andrade?
Com a palavra, Amin Stepple: “O que eu acho muito interessante é ele ter trazido ao frevo uma revolução tardia da poesia brasileira, que foi o movimento modernista, de 1922. Foi uma ruptura. Em termos melódicos, eu não posso falar, mas em termos de letra, a grande contribuição dele foi ter trazido para o frevo toda uma herança modernista, que estava no limbo. Não só modernista. Se você pegar Grande Fla Flu, percebe um poema concreto. Carlos Fernando é o modernista do frevo e da música pernambucana, como um todo. Se você olhar o Manguebeat, não tem essa sofisticação”.
O próprio Amin foi homenageado numa das letras de Carlos Fernando, junto a Cafi, Xirumba, Pii e tantos outros boêmios daquela geração. “Amin sem Dadá” seria uma alusão ao homônimo sanguinário ditador de Uganda, Idi Amin Dadá. Massa real Madri, interpretada por Alceu Valença, está no terceiro volume do Asas da América, lançado em 1981. O próprio Alceu a regravaria em 1987, como um trecho da faixa Leque moleque:
Xirumba-bá Jê-jererê Amin sem Dadá Cafi com você Pii sem Holanda Negão com Luanda Nos braços da noite Curtindo pra ver O sol amanhecer (...)
Perguntado sobre qual seria sua canção preferida no repertório de Carlos Fernando, Amin não titubeou: “Eu gosto daquela que fala sobre mim”.
AMILCAR BEZERRA é professor do Núcleo de Design e Comunicação (Campus Agreste) e do Programa de Pós-graduação em Música (Campus Recife) da Universidade Federal de Pernambuco.
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