Uma terra, ainda traumatizada por um sangrento golpe de Estado ocorrido anos antes, vive seu momento de maior instabilidade e tensão políticas, com o comando central derrubado inesperadamente e grupos de interesse disputando o poder palmo a palmo, nos bastidores, lançando mão de artimanhas e práticas escusas. Como se o cenário já não fosse suficientemente desastroso, todos são surpreendidos pelo surgimento de uma ameaça antes desprezada por muitos: um exército de mortos-vivos marcha para invadir o mapa e destruir quaisquer resquícios de prosperidade ou civilização. Não. Não é uma análise da conjuntura recente na política de um certo país sul-americano, mas, sim, o ponto de partida d'As crônicas de gelo e fogo, livros que deram origem à série Game of thrones, que viria a se tornar um dos maiores acontecimentos da TV mundial.
Leitor contumaz das crônicas de J. R. R. Tolkien, o escritor e roteirista George R. R. Martin ambicionava escrever sua própria aventura medieval, livre das amarras de orçamento e tempo impostas pela TV, seu principal trabalho nos 10 anos anteriores. Mergulhou em narrativas da Idade Média, especialmente a Guerra das Rosas, conflito de três décadas que levou à ascensão da Casa Tudor na Inglaterra do século XV. Em 1996, ele lançou o primeiro livro, com o título que depois batizaria a série de televisão. Inicialmente, era para ser a abertura de uma trilogia, que foi posteriormente ampliada para duas trilogias e, hoje, mantém a previsão de ser uma heptalogia, cujos dois últimos volumes ainda não têm data de publicação.
Quando a HBO lançou a série, em 2011, o quinto volume – A dance with dragons (o último liberado por Martin até hoje) – estava sendo publicado. Sob a consultoria e produção executiva do próprio escritor, os episódios foram avançando na história e, como era de se esperar, apresentando diferenças, ora irrelevantes, ora significativas, frente ao texto original. Diferenças essas que costumam causar celeuma entre os leitores, mas passam despercebidas para a grande maioria dos espectadores.
O escritor e roteirista George R. R. Martin. Foto: Divulgação
A principal diferença era incontornável, à medida que Martin foi adiando indefinidamente a entrega dos novos volumes de sua saga. A série de TV termina de contar a história em 19 de maio deste ano. Enquanto, no papel, muitos acontecimentos que chacoalharam pessoas do mundo todo sequer aconteceram. Os livros, por exemplo, nos deixaram com um Jon Snow morto, esfaqueado por seus companheiros da Patrulha da Noite, para quem os guardiões da Muralha não devem nunca tomar lados na guerra. Não se sabe nada ainda sobre como se salvará, as batalhas que enfrentará para defender Winterfell e o Reino, ou a verdade sobre a sua origem.
Daenerys Targaryen, por sua vez, fugiu de um ataque dos Filhos da Harpia nas costas de Drogon, seu filho mais indócil. Doente e alucinando, a Mãe de Dragões faz uma autoanálise e tenta atravessar o Mar Dothraki para voltar a Meereen, sendo encontrada à beira da morte pelo khalasar de Khal Jhaqo. Ela ainda não tinha recuperado o título de khaleesi, não navegara o Mar Estreito com seu exército em direção a Westeros, nem iniciara sua batalha pelo trono.
Uma garota antes conhecida como Arya Stark conseguiu superar o vestibular da Casa do Preto e Branco, recuperando a visão e iniciando seu treinamento como assassina sem face. Sua importância para a história ainda não está definida nos livros, nem o quanto vai conseguir completar da sua lista de vinganças. Sua irmã, Sansa, ainda está no Ninho da Águia, conquistando os favores do primo e prestando muita atenção nas jogadas de Petyr Baelish, o “Mindinho”. O destino de Cersei Lannister ainda é incerto. Confinada na Fortaleza Vermelha, depois de percorrer as ruas de Porto Real, em uma via crucis de excrementos e frutas podres, ela aguarda seu julgamento, enquanto o tio Kevan, atual regente, é morto a várias mãos pelos passarinhos do eunuco Varys, cujo lema de vida é algo como “Hay gobierno? Soy a favor”.
A personagem Daenerys Targaryen
Porém, mais do que o descompasso cronológico entre as duas narrativas, outra diferença também é bastante compreensível. Nenhuma série de TV, por mais ousada que fosse, poderia dar conta da infindável lista de personagens que desfila pelas páginas das Crônicas de fogo e gelo. Uma profusão de nomes e núcleos que faria Guerra e paz parecer uma conversa entre duas pessoas em uma sala. Não sem motivo, todos os livros terminam com uma longa pontuação das diferentes casas de Essos e Westeros, e seus respectivos integrantes. A incapacidade de trazer para a tela essa multidão fez com que os roteiristas e produtores descartassem inúmeros personagens e histórias que, no texto, possuem grande importância.
O mais importante deles, talvez não pela contribuição a dar pela história, mas por sua posição na árvore genealógica de uma das principais famílias, é a Senhora de Winterfell, Catelyn Stark, rediviva. Sim, a viúva de Ned Stark, que teve a garganta cortada durante o chamado Casamento vermelho, é recuperada de uma vala pela Irmandade sem Fronteiras, liderada por Beric Dondarrion, aquele da espada flamejante. Seu corpo é trazido de volta à vida por Thoros de Myr, com os poderes do Deus Vermelho. Sob o nome agora de Lady Stoneheart, ela lidera a Irmandade e busca vingança contra os organizadores da emboscada onde morreu, junto com seu filho mais velho. Em A dança dos dragões, inclusive, em sua última aparição, Jaime Lannister parece ser levado por Brienne de Tarth para um acerto de contas com a mãe de Robb Stark.
Brienne de Tarth. Foto: Divulgação
Em Essos, antes do atentado a Daenerys, as coisas estavam ainda mais animadas do que vimos na série de TV. Na série, Tyrion Lannister viaja a Meereen na companhia de um chamado Jovem Griff, que diz ser Aegon Targaryen VI, filho de Rhaegar e, sim, caro leitor que está mais adiantado na série televisiva, meio-irmão de um importante personagem. Ele, que todos julgavam morto na tomada de Porto Real pela rebelião de Robert Baratheon, vai ao encontro de sua tia (Dany, não perca o fio da meada) para propor uma aliança – e, claro, um casamento. Sim, você já viu algo parecido na série.
Antes dele, chega a Meereen, também disfarçado, Quentyn Martell, filho do Príncipe Doran, senhor de Dorne. Ele também quer oferecer a Daenerys mais um matrimônio e um acordo político, proposta rejeitada de bate-pronto. Enquanto a moça está sumida, com destino incerto, ele resolve testar sua suposta ancestralidade Targaryen e tenta domar os dragões Viserion e Rhaegal, o que acaba obviamente em churrasco.
Os livros também pouparam Sansa Stark dos mais terríveis acontecimentos que a televisão lhe reservou. A personagem submetida ao casamento e subsequente estupro por parte de Ramsay Bolton é Jeyne Poole, a melhor amiga da ruiva na infância, agora utilizando o nome da desaparecida Arya Stark para sobreviver. Ela foge das mãos do repulsivo filho bastardo de Roose Bolton com a ajuda do que resta da pessoa que um dia foi Theon Grevjoy.
Esses e outros personagens podem não ser decisivos para levar a história até o fim planejado por George R. R. Martin (que, segundo ele, não deve diferir da série nas linhas mais gerais). Mas são importantes para estabelecer a cosmologia, além do desenho dos acontecimentos e seus atores. Mais do que para evidenciar imaginação frenética do escritor e sua capacidade para criar pessoas de carne, osso e muito sangue.
Personagens ou fatos excluídos e alterados, ou mesmo mesclados, são naturais em todo processo de adaptação literária. Mas as diferenças nas escolhas narrativas são as que geram maiores protestos dos leitores mais ortodoxos. Não precisamos citar a maneira como, na TV, o tempo de viagem pelos continentes varia ao sabor dos interesses dos diretores, ou como as idades de vários habitantes de Westeros foram aumentadas, certamente para justificar sua exposição a tanto sexo e violência. Outras disparidades, embora não tão evidentes, também chamam a atenção de quem acompanha a saga nas duas mídias.
A morte de Jon Snow na série. Foto: Divulgação
Os livros de Martin são narrados do ponto de vista dos personagens em tempos e lugares distintos. Assim, toda a ação se passa diante – ou longe de – seus olhos, dando espaço a mal-entendidos, erros de julgamento, dúvidas que se alongam por volumes inteiros. Ele também se arma de elipses, mais do que armaduras. Há batalhas importantes e tomadas de fortalezas das quais sabemos apenas pelo vislumbre de um ou outro personagem, ou por um comunicado trazido por um corvo. Nos livros, por exemplo, sabemos da morte de Stannis Baratheon apenas por uma carta enviada a Jon Snow por Ramsay Bolton, alegando ter rechaçado o ataque do pretenso rei e dizimado seu exército – e requisitando o reenvio imediato de sua esposa fugida. A Batalha de Água Negra, por sua vez, é muito mais extensa na descrição de seus prelúdios, do que na ação propriamente dita, narrada quase aos pedaços por confusos sobreviventes de machadadas e fogos-vivos.
O foco narrativo na perspectiva de cada personagem – e o tempo que o texto pode dedicar ao assunto que o escritor bem entender – permite também que certos personagens pareçam muito menos rasos no papel. Lá, Jon Snow é muito mais preocupado com pessoas e situações próximas a ele do que um candidato a herói. Jaime Lannister se livra de maneira muito mais contundente da influência da gêmea e amante, após conhecer a lista de aventuras sexuais dela. A própria Cersei é uma pessoa – egoísta, furiosa, assustada, mas uma pessoa – que comete crimes terríveis, mas é acossada por dúvidas e culpa. Robb Stark não se casa por amor, mas porque fez sexo com aquela que viria a se tornar sua noiva e se preocupa com o nascimento de um bastardo que possa lhe trazer problemas quando ocupar o trono.
Mas talvez seja Daenerys a personagem mais assimétrica nas suas duas representações. A Dany dos livros é mais impulsiva, vaidosa e tem menos consciência social de seus atos. Seus gestos de libertação do outro lado do Mar Estreito servem mais para sua autopropagada imagem de Quebradora de Correntes e Mãe dos Escravos, do que para mudar efetivamente a vida das populações atingidas, que continuam sob o jugo de doenças, fome e conflitos. Nos livros, fica claro que sua motivação é muito mais cumprir o que acredita ser seu direito de nascença, do que uma missão libertadora. Ela não é tomada à força – em português claro, estuprada – por Khal Drogo em sua noite de núpcias, como na série, e sim o recebe deliberadamente. E, para completar: não, ela não é à prova de fogo. No nascimento de seus dragões, ela sobrevive milagrosamente às chamas, perdendo apenas os cabelos, mas posteriormente sofre queimaduras, ao ser atacada por um de seus filhos.
O fato é que a versão televisiva parece ter agradado a George R. R. Martin. Logo ele que resistiu por anos a negociar os direitos de sua obra, temendo justamente a redução do universo que estava – e ainda está – criando. Nem todas as diferenças prejudicam a saga, nem todas permitem a melhor transição entre o impresso e o vídeo. Mas o fato é que, em uma obra dessa magnitude, dessa ambição, seja para efeitos de audiência, seja para efeitos de orçamento, elas são inevitáveis. Toda obra transposta deve sofrer algum nível de violência. É uma regra incontornável, como aquela outra expressa no ditado valiriano. Valar Morghulis.
DIOGO MONTEIRO é jornalista, escritor bissexto e palpiteiro em tempo integral.