O terror, que só terminaria 28 anos depois (se terminasse), começou, até onde sei ou consigo saber, com um barco feito de uma folha de jornal flutuando por uma sarjeta cheia da água da chuva.
Para quem viu o filme de 1990, o parágrafo de abertura já evoca o horror da primeira morte da história: a de George Denbrough, com sua capa amarela e galochas debaixo de uma tempestade e à entrada de um bueiro. Só que Stephen King não é óbvio. Entre o encontro de George com Pennywise e um novo tête-à-tête com o palhaço, com direito a balões vermelhos e o convite para flutuar, lá se vão 200 páginas. Entre estes momentos, o autor faz algo em que é mestre: cria laços entre os personagens e entre o leitor e os personagens. A gente se identifica com eles, quer ser amigo de todos e torce, de coração, para que nenhum deles morra.
Na estrutura do livro, sabemos, no começo, que o grupo de protagonistas enfrentou e, aparentemente, venceu “a coisa” no passado. Eles prometeram voltar à cidade natal se “a coisa”, o que quer que seja (manifestada, principalmente, na forma do palhaço Pennywise), reaparecesse. E, ao que parece, é o que vem acontecendo, 27 anos depois. Estes adultos, convocados para lutar novamente contra o mal, todos se preparando para perder, são apresentados em flashbacks, nos idos de 1957/1958, quando enfrentaram “a coisa” pela primeira vez, depois de terem virado amigos em face de situações de adversidades que remetem, inevitavelmente, a outra obra do autor, Conta comigo (1986), também grande sucesso cinematográfico.
(Conta comigo faz parte de uma coletânea de quatro contos chamada As quatro estações, dos quais três viraram filmes: “Rita Hayworth e a redenção de Shawshank” virou Um sonho de liberdade (1995); “Aluno inteligente” deu origem a O aprendiz (1998), com Ian McKellen; e “O corpo” inspirou Conta comigo.)
Estão presentes, em It, a inocência e sua perda, ritos de passagem, o medo que une, separa e junta de novo, as promessas de eternidade ao lado da constatação de que a morte é o único fim possível. Muito já foi dito e escrito a respeito do primeiro filme dirigido pelo argentino Andy Muschietti, lançado naquele 2017, cuja continuação – e fim da história – estreou no Brasil no começo de setembro de 2019. Tendo ido ver a primeira parte depois de concluída a leitura integral do robusto volume, fui impelida a acompanhar a conclusão desta empreitada para confirmar até que ponto o livro era melhor do que o filme.
Sim, porque a dúvida não era quanto ao livro ser, indubitavelmente, melhor do que o filme: a premissa era essa. Mas em que grau as reclamações a respeito da adaptação seriam legítimas? Sem prejuízo do pífio fim do telefilme de 1990, as adaptações cinematográficas da obra de King são, usualmente, sofríveis – à exceção, talvez, de Misery, Um sonho de liberdade e Conta comigo. Mesmo O iluminado retalha o livro homônimo, apresentando um Jack Torrance plano, sem as nuances do romance, em que o personagem luta, por vezes estoicamente, contra o alcoolismo, o fracasso, o poder exercido paulatinamente pelo Overlook sobre a sua sanidade mental e, consequentemente, sobre o amor que sente, ainda que à sua maneira, pelo filho Dany.
Ao se encerrar a sessão de duas horas e cinquenta minutos de It – Capítulo dois, a conclusão a que se chega é a de que a única justificativa para a sua existência é o fato de que a primeira parte precisaria ser concluída. Ainda que de qualquer maneira. Porque o fim do filme é isso mesmo: qualquer coisa. Lamentavelmente, sem nenhuma surpresa, nenhuma das promessas deixadas pela primeira parte do filme foi cumprida na segunda.
O elenco adulto, afinado, tem a difícil missão de substituir crianças carismáticas e competentes em seus papéis – no que se sai bem, sendo possível sobrepor os atores das duas fases e acreditar na unicidade das personalidades dos protagonistas. Contudo, um roteiro cansativo, carregado de computação gráfica e com alterações significativas da história, que vão além da licença poética, transformam o filme em uma continuação dispensável, que substitui o terror psicológico de Stephen King por um banho de sangue que seria exagerado mesmo em uma película de Tarantino.
O grande trunfo de It, o livro, é a capacidade da “coisa” de se transformar nos maiores medos das pessoas que ataca. Muito mais do que o aspecto sobrenatural, “a coisa” apavora os habitantes de Derry porque se transforma em parte de cada um deles, simbioticamente: assim, não há como fugir da “coisa” mudando de cidade ou envelhecendo, já que a criatura apenas dá forma a algo que é, em essência, criação mental de cada um daqueles que ela persegue. Tanto é que Pennywise representa apenas uma de suas materializações; assim como o lobisomem, a múmia, o leproso e mesmo a estátua de Paul Bunyan também o são, e somente o são por conta do terror que causam naqueles que os temem.
Ou seja: o maior terror criado pela “coisa” está em seu aspecto de familiaridade. Por estar na mente das pessoas, ela aparece em lugares tão diversos como dentro de casa e nas fotos dos entes amados que morreram violentamente, de onde jorra sangue que pouco importa se é imaginário, porque o tormento que cria é real. As crianças se apavoram porque se veem como vítimas em potencial e sequer sabem o que fazer com isso. Os adultos que não fazem parte do “Clube dos Perdedores” se aterrorizam porque querem proteger as suas crianças contra o que quer que as esteja matando.
E é por isso que cenas como a de Beverly revisitando o apartamento em que morava com o pai abusivo e sendo perseguida por um Pennywise que se apresentava como uma idosa que estaria atualmente residindo no imóvel não causam impacto. Uma das melhores passagens do livro se transforma em um terror “de susto”. Na obra literária, o medo é sufocante: a presença da “coisa” está longe de ser óbvia como aparece no filme. No texto, a atmosfera de horror e medo vem sendo construída de modo que o leitor não sabe o que vem pela frente; no filme, o peito cabeludo da senhora anfitriã e a risada congelada após a afirmação de que “nada morre de verdade em Derry” deixam claro que aquilo não vai terminar bem. Claríssimo. Óbvio. Sem dúvidas. Um desperdício.
A "coisa" se materializa nos maiores medos dos personagens. Foto: Divulgação
Depois de mais de duas horas morrendo mais de tédio do que de medo, estamos de volta aos subterrâneos de Derry, em que, após um simulacro constrangedor do ritual de Chüd, os seis adultos sobreviventes se veem novamente frente a frente com Pennywise, no que parece uma revisitação do fim do primeiro filme. É preciso que se diga que nenhuma conclusão de It em uma linguagem visual seria fácil: o livro apresenta uma criatura alienígena que, desde os tempos pré-históricos, habita o submundo de Derry, transformando a própria cidade em uma extensão sua, imiscuindo-se nas mentes dos seus habitantes e os manipulando a fim de saciar a fome que só passa com carne humana, e nunca de modo definitivo, já que retorna após cerca de 27 anos, depois de um período de hibernação, para reiniciar esse ciclo de perseguição mental e mortes.
Só não precisava ser tão ruim.
A viagem transcendental de Bill Denbrough, ao se unir à “coisa” por meio do ritual de Chüd, em que ele tem vislumbres do próprio universo e acerca da tartaruga que teria criado o mundo ao vomitá-lo, por se apresentar literariamente como uma batalha psíquica, dificilmente seria traduzida satisfatoriamente em imagens. Porém o fim do filme transformou uma criatura milenar e extraterrestre em uma aranha com cabeça de palhaço que, ao sofrer bullying gritado por cinco (sim, cinco) adultos, assusta-se até murchar e sumir como se fosse o valentão da sétima série.
O simbolismo contido na descoberta da superação do medo por meio da coragem de olhá-lo de frente e entender que a mente que o cria é a única capaz de derrotá-lo merecia mais.
Não apenas o livro é muito, muito melhor do que o filme, mas a segunda parte de It é, para dizer o mínimo, dispensável.
BIANCA DIAS é advogada e leitora diletante.