Favela da Maré, 27 de julho de 1979. Nasce, na cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco.
Brasil, 8 de março de 2020. Dia Internacional das Mulheres. A Rede Globo anuncia a produção, pelo seu braço desenvolvedor de conteúdo seriado, de uma minissérie ficcional sobre o legado de Marielle, vereadora assassinada no dia 14 deste mesmo mês, há dois anos. E então bate uma estranheza quando se descobre que, encabeçando o projeto, não há sequer uma cineasta negra, ou um cineasta negro. E que a criação é da roteirista feminista Antonia Pellegrino junto a George Moura. Sócio de Antonia na Antifa Filmes, José Padilha (de Tropa de Elite e O mecanismo) é quem assume a direção geral da série. Os três são pessoas brancas narrando a história de uma mulher negra e favelada – com a especial atenção à disfonia em ter o nome de Padilha ao lado do de Marielle num projeto audiovisual, sendo ele defensor ferrenho da Operação Lava Jato, fã arrependido de Sergio Moro e representante da estética neofascista no cinema brasileiro, com os dois Tropas e a série O mecanismo.
O que se vê, a partir do mesmo dia do anúncio, é a reação massiva e necessária de artistas brasileiros, negros e também brancos, além de declarações precisas e aulas sobre racismo estrutural, por meio de postagens como a do professor Silvio Almeida, da crítica de cinema Carol Almeida e da escritora Joice Berth. O coletivo ManiFesta, formado por mulheres do cinema nacional e fundado no último Festival de Brasília, produz uma série de cards “apresentando” cineastas negras do país. Em meio aos posicionamentos e à repulsa expressa por muita gente com esse episódio irônico e descabido do nosso cinema, Antonia Pellegrino resolve se desculpar por meio de uma entrevista, fazendo a emenda soar muito mais ruidosa do que o soneto: ela culpa o racismo estrutural pela falta de profissionais negros no cinema do Brasil e se lamenta por não termos nenhum Spike Lee ou Ava DuVernay. Tudo isso para justificar Padilha no projeto, até mesmo pela projeção mundial que ele ganhou com os filmes Tropade Elite e que o levou a criar e dirigir, além da série farsesca sobre a Lava Jato, a fantasia delirante sobre Pablo Escobar, Narcos. A ele, também não faltou palco e espaço num jornal de grande expressão onde, num artigo completamente equivocado, evocando um linchamento moral e repleto de hipocrisias, se compara a líderes negros norte-americanos como Malcom X e a Martin Luther King, pedindo que cessem o ódio contra o projeto nascituro. Isso no dia 10 de março de 2020, ou seja, na última semana.
Mas no dia anterior, com a repercussão internacional em veículos como a revista Variety e o jornal The Guardian (que estampa a manchete Drama televisivo sobre política assassinada provoca debate sobre racismo), as estruturas se agitavam e as placas tectônicas se moviam loucamente na Globo. Antes mesmo de anunciar o projeto oficialmente, a empresa já causava surpresa no mercado por ter tirado o projeto das mãos da Amazon – que estava redigindo o contrato – e trazer junto Padilha, que iria trocar a Netflix pelo outro gigante do streaming para dirigir a série de ficção sobre Marielle.
O cataclisma se deu com a massiva repercussão dos posts nas redes sociais e do abaixo-assinado encabeçado por várias cineastas negras, incluindo Renata Martins, que comenta como após muita luta, sobretudo dos movimentos negros, de feministas negras e interseccionais, mulheres e homens negros têm a possibilidade de exercer funções e profissões diversas. E, especialmente pelo texto na coluna Quadro Negro assinado pela cineasta Sabrina Fidalgo, em 9 de março de 2020. Uma das fundadoras do ManiFesta, Fidalgo, apenas em 2016, recebeu mais prêmios pelo seu filme Rainha do que Spike Lee com Infiltrado na Klan, e considera, para além das comparações estapafúrdias feitas por Pellegrino, o anúncio do projeto como uma segunda morte de Marielle. Disfarçando com boas intenções, a branquitude que encabeça o audiovisual brasileiro vai cometendo mais uma injustiça, segundo ela.
“É um acinte à memória de Marielle”, escreveu Djamila Ribeiro, uma das referências mundiais atuais do feminismo negro e decolonial, em artigo publicado na mesma Folhade S. Paulo. No texto, ela afirma como a produção configura uma tentativa de sequestro da história, demarcando Tropa como uma espécie de Nascimento de uma nação (a propaganda da Klu Klux Klan dirigida por Griffith) brasileiro, dando início a uma onda fascista que assolou o país e desembocou na eleição de Jair Bolsonaro. E não só. A falha cabal na visão míope de Padilha sobre a recepção da minissérie e o próprio país onde (não) vive é nem se dar ao trabalho de discutir sobre a construção social do racismo com pessoas brancas, ou sair do pedestal de privilégios de onde, com um megafone em punho, diz que as críticas são uma forma de as pessoas negras odiarem a si próprias. Logo ele que fez, de Norte a Sul do Brasil, os homens negros serem cada vez mais encarados como criminosos, glorificando o abuso policial. Neste país, ainda parafraseando Djamila, onde a mediocridade branca desfila segura de si, é preciso ao menos desafiar as estruturas e mexer com esses brios privilegiados. A publicação, e a aula de história do cinema, se dá no dia 13 de março de 2020, véspera de se completarem dois anos da morte abrupta e inconsolada de Marielle Franco.
Dias antes, a irmã de Marielle, Anielle Franco, se manifestou na internet explicando que tanto no caso da série documental – no ar desde o último dia 12 (a Globoplay está com conteúdo aberto nestes dias de quarentena) – quanto na ficcional em produção, a família foi procurada, mas as propostas já chegaram prontas. “A ideia aconteceria com ou sem o nosso aval. Na série ficcional, desde o primeiro momento, cobramos a necessidade do protagonismo de profissionais negras(os) e permaneceremos insistindo. Queremos sim que a história da Mari continue sendo contada para que o mundo nunca se esqueça, mas uma das coisas que aprendemos é que não temos o controle de quem/quando/onde/como algo será falado e produzido sobre Marielle. Mesmo sem ter controle sobre como vai ser o resultado final, estamos acompanhando para que sejam devidamente respeitosos e coerentes com a história da Mari. E que o alcance dos dois ajude a dar visibilidade e força também para o Instituto e para o trabalho que seguimos fazendo", escreveu Anielle, em série de postagens no Twitter.
Para a cineasta Camila de Moraes, as histórias precisam ser contadas com dignidade e respeito, sem distorções históricas – e quem melhor que os realizadores negros para realizar essa tarefa com excelência? “É bem mais do que uma questão de lugar de fala. É o reconhecimento devido da capacidade criativa que vem sendo trabalhada desde os tempos em que Zózimo Bubul, Joel Zito Araújo, Adélia Sampaio, Sabrina Fidalgo, Renata Martins e Jeferson De fizeram seus primeiros filmes”, enumera em artigo a realizadora que recentemente dirigiu e escreveu a série Nós somos pares, em processo de produção, e que assina o documentário O caso do homem errado (2017) – o segundo longa-metragem dirigido por uma mulher negra a ser lançado comercialmente no país.
A realizadora Camila de Moraes. Foto: Natasha Montier/Divulgação
“Quando começaram a mercantilizar a arte de contar histórias, sobretudo no cinema, a população negra foi afastada das novas tecnologias e se torna objeto de estudo e então vê seus corpos sendo representados através de uma lente branca, que ampliava um olhar branco, sobre todos, inclusive os brancos. E esse olhar, que nos via de forma distorcida, transformou homens negros em animais, estupradores, e mulheres negras em serviçais e boas de cama. Seres sem cérebros programados apenas para servir”, acrescenta Renata Martins, que também participa do coletivo ManiFesta. Ela, que dirigiu curtas premiados como Aquém das nuvens e Sem asas, assinala, em artigo publicado no site Alma Preta, como a citação de Padilha a militantes negros assassinados – não à toa estrangeiros – justifica um questionamento legítimo: “Onde estão as mulheres e homens negros diretores e roteiristas do cinema brasileiro?”.
Sabrina Fidalgo, citada como uma referência por Camila de Moraes, fala sobre como é violento esse modus operandi. “Tudo isso é um desrespeito a tudo que Marielle defendia. Se quaisquer dessas pessoas tivessem entendido, de fato, a luta de Marielle, saberiam o quão violento é fazer esse projeto encabeçado apenas por pessoas que não refletem sua imagem e semelhança. Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história”, afirma a cineasta, que também realizou Alfazema – premiado em Brasília, onde foi uma das fundadoras do ManiFesta. “Nós, mulheres e homens negros, não temos poder institucional para linchar ninguém. O que nós temos é voz, e a única coisa que podemos fazer é gritar alto para, quem sabe, acordar esse branco colono que habita neles”, provoca Renata Martins.
A diretora Renata Martins. Foto: Divulgação
Tendo sofrido racismo e vivido situações bizarras envolvendo sua cor, a cineasta e artista visual Keila Serruya acha que as justificativas dos racistas são previsíveis para todo negro e negra que sente na carne o que é essa estrutura. O que a incomoda mais é a coragem da branquitude de fazer pública essa postura de incompreensão com a diversidade do país. “O racismo visceral, estrutural, cheio de boa vontade, simpatia e cordialidade está entre nós. Quem cortará essa cabeça?”, provoca. “A desonestidade, apropriação de discurso, desse povo filho de escravocrata, dono de terra, patrão, que descaradamente usa a história do povo negro, suas referências, para jogar esse jogo branco/burguês/sujo que está atolado até o pescoço, ao ponto de nem perceber sua incoerência e perversidade”, acrescenta Serruya. Para ela, essa não é uma questão de polêmica, mas, sim, “de negros e negras questionando o seu espaço nesse país, é reparação e direito. Somos a maioria e hoje temos força para gritar devido a todos os ebós, banhos, rezas, chás e ancestrais que deram sua vida, resistiram para que hoje tenhamos voz. Meu corpo é quilombo e minha paciência é curta”, expressa Keila Serruya. Esse olhar colonizante que vilipendia exprime toda a carga do racismo que percorre os sets e estúdios e não pode mais ser desviado, na visão de Camila de Moraes. “Há tempos, estamos na luta por outras narrativas possíveis dentro do audiovisual (...) As pessoas que se dizem profissionais da sétima arte não estão preocupadas em contar uma história, mas, sim, em lucrar em cima de nossas dores, mortes de pessoas iguais a mim, com a pele escura”, opina a artista.
TRANSFORMAÇÃO DE ESTRUTURAS Antonia Pellegrino defendeu a permanência de Padilha à frente do projeto e se referiu ao seu envolvimento no mesmo trabalho como algo que estava predestinado a acontecer. Isso porque ela, amiga da vereadora assassinada e admiradora do feminismo negro (além de esposa do deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL/RJ, partido de Marielle), seria a pessoa indicada para contar a história na Globoplay, que pretende ganhar o mundo dos streamings e alcançar repercussão internacional com a obra. A repercussão – ou backlash, em inglês –, ela já está tendo antes mesmo de estrear o primeiro episódio de Marielle Franco, mas certamente não da maneira que, na sua ingenuidade e arrogância, esperava.
No último 14 de março de 2020, completaram-se dois anos da partida de quem se converteu, instantaneamente, em símbolo da luta contra as desigualdades; um assassinato (ainda) sem justiça cumprida. A mulher negra, mãe, favelada, bissexual, militante do feminismo negro, ativista dos direitos da comunidade LGBTQI+ e defensora dos direitos humanos logo “ganhará” a carne e osso de uma estrela global em sua interpretação audiovisual definitiva. Definitiva? Pellegrino disse na mesma entrevista, mencionada acima, que pensa a série há quase dois anos, quase o mesmo tempo da convulsão social provocada pela torpe forma com a qual Marielle e Anderson, o motorista da vereadora, tiveram suas vidas usurpadas.
A artista Keyla Serrua. Foto: Divulgação
“Aparentemente, a convivência com Freixo facilitou a confabulação e realização do projeto. Até aí, tudo bem. O que chama a atenção nessa história são dois fatos pertinentes: o convite da feminista interseccional Antonia a dois homens brancos (o diretor José Padilha e o roteirista George Moura) a ocuparem os lugares de maior prestígio na cadeia evolutiva da criação da série. Ao todo, são três profissionais brancos à frente do projeto de série sobre a vida da maior ativista negra brasileira da contemporaneidade. Na noite da execução de Marielle, Padilha e convidados brindaram, por entre os salões do Copacabana Palace, a estreia da primeira temporada de O mecanismo na Netflix”, reconta Sabrina Fidalgo, ilustrando o quanto é escandalosa a simples existência de um projeto com esse desenho.
Enquanto isso, a Globo exibe Marielle – O documentário, cuja estreia, sabemos, aconteceu dois dias antes do aniversário de morte da vereadora. A emissora tornada produtora está realmente empenhada em explorar não só o fato jornalístico – até o presente momento, os culpados pela morte dela não foram punidos –, como em responder à necessidade mercadológica de abduzir a vida de Marielle Franco. É o que aponta Viviane Ferreira, cineasta e presidente da Apan (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro). “O setor audiovisual gosta de externar como nossa atividade é industrial e como nossas obras não são apenas peças culturais e artísticas: são, antes de tudo, negócios. O que cristaliza as posições de Padilha e Antonia no projeto é o fato de serem sócios, ou seja, donos da empresa que detém os direitos patrimoniais sobre a obra. Tenho me perguntado se o Instituto Marielle Franco é sócio do negócio, qual a porcentagem que ele tem e como seu poder de decisão está ancorado. Para mim, o principal equívoco desse processo todo é lançar-se no mercado um produto que mercantiliza a vida, a morte e a memória de Marielle, sem anunciar o Instituto Marielle Franco como sócio com poder de decisão no processo de realização da série. Até agora, tudo a que pude ter acesso e conhecimento faz menção a um poder de ‘sugestão’, à expressão de um ‘desejo a ser atendido’ do instituto pelo envolvimento de profissionais negros no processo. A pergunta que precisamos nos fazer é: daqui a 20 anos, queremos ver Luyara brigando na justiça com os filhos de Padilha e de Antônia por direitos patrimoniais, sobre uma obra realizada a partir da vida, morte e memória de sua mãe?”, questiona Viviane.
Viviane Ferreira, cineasta e presidente da Apan. Foto: Divulgação
Inclusive a Apan soltou um comunicado nas redes reiterando como esse tipo de produção não pode mais ignorar a realidade, de que existem vários artistas negros no audiovisual brasileiro com talento. Outro argumento incontornável de Viviane é o de que as escolhas técnicas e da equipe artística são problemáticas, porque não refletem o ideal de transformação de estruturas defendido por Marielle e exaustivamente aclamado por pessoas progressistas deste país. A presidente da Apan, inclusive, faz uma sugestão de equipe que pode ser abraçada pela Globo e por Pellegrino se houver genuína vontade. “Imagine aí, só imagine a imagem da coletiva de anúncio da série sobre Marielle, que teria Anielle Franco e Antônia Pellegrino dividindo a produção executiva; Jaqueline Souza e George Moura dividindo a chefia da sala de roteiro; Ana Julia Travia, Carol Rodrigues e Renata Martins completando o time de roteiristas; Joel Zito Araújo, Glenda Nicácio, Viviane Ferreira, Juliana Vicente, Gabriel Martins e Jeferson De dividindo a direção dos episódios. Nesse simples jogo de imaginação, conseguimos perceber que nem precisaríamos de consultoria com Ava ou Spike para realização do negócio audiovisual mais inteligente e potente da atualidade, que, de uma forma, garantiria lugar e participação de todas as pessoas envolvidas na polêmica.”
Referindo-se à citação de Pellegrino de que no Brasil não há cineastas negros à altura dos norte-americanos por ela mencionados, Sabrina Fidalgo procura entender como a miopia da roteirista e criadora da série Marielle Franco – que só enxerga no produtor Rodrigo Teixeira (que se recusou a participar) e em Padilha as únicas possibilidades de internacionalização do projeto – a leva a crer que Padilha estaria à “mesma altura” dos norte-americanos, “numa falsa e equivocada simetria, para dizer o mínimo”, como ela comenta. “Na minha opinião, (Padilha é) um medíocre diretor de blockbuster que segue a cartilha do mercado (vide o fracasso de público e crítica de sua aventura pelo gênero, na sua refilmagem de Robocop).”
Para Sabrina, “a roteirista não só se mostra desatualizada do zeitgeist atual, em que a diversidade é o segredo do sucesso e o novo modus operandi nos quatro cantos do globo, como também menospreza nomes mais premiados e com trabalhos muito mais conhecidos, relevantes e consistentes do que os que constam em seu próprio curriculum vitae”. Como exemplos, a cineasta cita – apenas para fazer adendo aos já mencionados – Carmen Luz, Lilian Solá Santiago, André Novais de Oliveira, Gabriel Martins, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Glenda Nicácio, Thiago Almazy, Lázaro Ramos, Jéssica Queiroz, Irmãos Carvalho, Jô Bilac e Grace Passô, entre muitos outros, como testemunhos vivos dessa riqueza artística advinda da negritude.
A cineasta Sabrina Fidalgo. Foto: Fabian Alvarez/Divulgação
O oportunismo e a ganância na corrida por abocanhar a narrativa da vida e do legado de Marielle é o uso descabido da memória de uma mulher de luta, num gesto que “fere e destrata as pessoas que fazem as militâncias negras existirem neste país”. Estas últimas palavras são da dramaturga, cineasta e atriz Grace Passô. “Com essa minissérie, a Antonia Pellegrino está dizendo que o seu desejo de popularizar a história da Marielle é tão grande, que ela mesma (num ato colonialista) convidou José Padilha para dirigir uma série ficcional sobre Marielle Franco; está dizendo indiretamente: ‘Não se preocupem porque eu vou contratar pessoas negras para ‘contribuírem’ neste projeto’, como se tratasse de ‘contribuição’ a elaboração de narrativas negras como a que tratará daquela que integrou o PSOL. Esse gesto desqualifica lutas que têm feito e muito o PSOL crescer ao longo de sua existência”, enfatiza Passô, chamando o partido Socialismo e Liberdade a se posicionar publicamente sobre esse sequestro intelectual na forma de produto audiovisual. Afinal, a arte é ou não é política?
Para Viviane, que lançou seu primeiro longa, Um dia com Jerusa, na Mostra de Tiradentes deste ano, o pedido de desculpas de Antonia acalenta os corações das pessoas recém-iniciadas nos debates raciais no Brasil, mas não move e nem transforma a estrutura. “A imagem que propomos, sim, move, transforma e garante lugar para todo mundo”, frisa. O que ela e muitas das entrevistadas e cineastas que se manifestaram publicamente nesta última semana esperam é, minimamente, que José Padilha seja retirado do projeto, pois é incabível que permaneça. Em post nas redes sociais, Grace Passô expressou o seguinte:
“Padilha, pra mim, se você fosse um homem negro, continuaria sendo uma incalculável incoerência vê-lo na direção dessa história. Você fez uma obra-panfleto para o governo atual numa das maiores plataformas digitais do mundo e, mesmo se desculpando publicamente depois, a defendeu com veemência endossando discursos se não desonestos, ingênuos. Em tempos onde rodas feministas dimensionaram a linguagem machista do golpe, ironizou Dilma repetindo as mesmas piadas de sempre. Há filmes seus que exploram a violência social brasileira com a estética colonial que parte do cinema contemporâneo brasileiro tenta superar e, através da associação entre poder capital e seu enorme talento, fetichizaram violências coloniais em sua natureza, com um imaginário dotado de simbolismos da cis heterorgulhicidade macha. Assim, seus gestos (e, portanto, você) são simbolicamente o que os gestos dela tentavam transformar e vencer”.
A atriz Grace Passô em cena da peça Vaga carne. Foto: Divulgação
Na segunda década do século XXI, tida como tão progressista e cheia de avanços sociais, é revoltante assistir a uma atitude tipicamente imperialista numa sociedade capitalista que toma para si, visando à lucratividade, a narrativa de uma mulher negra periférica. Apoiando-se no debate superficial, no estilo “nós contra eles”, ou apoiando-se no suposto patrulhamento ideológico para rebater a reação negativa que o projeto vem alcançando, tanto Padilha quanto Pellegrino não podem ignorar os vidros quebrados pelo caminho e as mudanças precisarão ser feitas. E é lutando contra moinhos de ventos que se disfarçam como gigantes, para amedrontar e se manter no topo da cadeia alimentar do audiovisual brasileiro, que realizadores negros e negras bradam. Assim, quem sabe, essas fantasias excludentes caiam por terra e projetos com empatia pela força e pujança dos profissionais negros espalhados por todo o Brasil ganhem sinal verde. Enquanto isso, a família de Marielle Franco se divide entre apoiar o projeto (sua filha Luyara) e refutá-lo, mas pontuando a importância de sua história ser contada, como é o caso da irmã Anielle Franco e da viúva Mônica Benício – ela que, inclusive, foi levianamente acusada de receber R$ 2 milhões para licenciar os direitos e autorizar a produção.
Fazendo ecoar a voz de Djamila, Sabrina, Renata, Keila, Camila, Grace, Viviane e tantas pessoas negras incríveis desse país, fica o recado: “(Padilha,) não é só a sua palavra de homem que vale não, a palavra de mulher preta também vale”. E, para expressar isso e ainda abrir os olhos de Antonia Pellegrino e de todos aqueles que estão no topo da cadeia produtiva do audiovisual brasileiro, faz-se este texto-manifesto, com as vozes DELAS, das cineastas negras reconhecidas nacional e internacionalmente por seus méritos artísticos. O único lugar onde não têm obtido esse reconhecimento parece ser realmente a Globo. Mas até quando?
A vereadora Marielle Franco em discurso público, em 2016. Foto: Reprodução
LORENNA MONTENEGRO é jornalista, roteirista e crítica de cinema com mais de 15 anos de atuação no meio audiovisual brasileiro.
------------------------------------------------------------------------------------- *As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente. -------------------------------------------------------------------------------------