Artes Visuais

Crônica de uma exposição (2): doçura vegetal

Exposição "Cícero Dias: Com açúcar e com afeto" reúne 42 obras do pintor pernambucano no Farol Santander, São Paulo

TEXTO Mario Helio

25 de Janeiro de 2025

Foto Raquel Silva/Farol Santander/Divulgação

O texto de boas-vindas em primeira pessoa, entregue com o ticket de entrada, parece ecoar o que será visto na galeria do 22º. andar do Farol Santander, em São Paulo. A pintura como projeção de um sujeito de bem com a vida. Justamente chamada pela curadora de “Cícero Dias: Com açúcar, com afeto”. São 42 obras de um recorte liricamente intimista: espelhando toda uma sociedade e um tempo em que a palavra ‘doçura’ produz múltiplos significados. Mas é sempre bom começar pelos mais nítidos e fáceis. A chegada ali dá-se como um alumbramento e resulta num passeio que imitasse uma imaginária sonata em três movimentos dinâmicos de alegria.

O primeiro é o reencontro com Carlos Trevi. Durante muito tempo foi ele quem melhor e mais longe fez brilhar o farol da arte em Pernambuco. Se para Jorge Luis Borges uma biblioteca plasmava o paraíso, foi (é) Pernambuco para Carlos Trevi a definição de felicidade, e para Pernambuco igual e reciprocamente Carlos Trevi.

O segundo movimento é Carlos nos apresentando a Denise Mattar, curadora da exposição. Ela nos guia – a mim e ao professor Francisco de Sales Gaudêncio, biógrafo da artista Suanê. Quadro a quadro. Explica como concebeu a exposição; enquanto exemplifica, mostra e comenta as pinturas. Em três fases essenciais: o início, nos anos 1920, o parêntese abstrato, e a retomada do lirismo, em tons e dicções ainda mais doces.

A terceira alegria é proporcionada pela obra colorida, luminosa e, ao mesmo tempo, exuberante e íntima de Cícero dos Santos Dias. O menino de engenho nascido no município da Escada, que, na juventude, saiu para conquistar o (seu) mundo. Começou pelo Recife. Logo alcançou o Rio de Janeiro. Findou a jornada em Paris.

Denise desfia as contas do rosário da arte exposta de Cícero dos Santos Dias. As cenas em imagens simultâneas, os contrastes entre os espaços abertos e fechados. Os primeiros remetendo às suas origens rurais; os segundos:  a escola, o internato ou qualquer outro contexto em que não triunfe plenamente a Liberdade (que ele conduziu sob a forma de poema do seu amigo Éluard, na época da resistência ao nazismo; e foi a tal Liberdade sua autodefinição por toda a vida).

Um pouco mais nos demoramos num quadro que representa a “bagunça”. Dominadora nos sonhos. Mas não só. Quase outro nome do Brasil. Talvez obcecado com a ideia de Ordem e Progresso justamente por ser o contrário. Lembro-me bem de certo Natal em Paris, na casa de Sylvia Dias, com os seus filhos Charles e Maxime (netos de Cícero, portanto), eles rindo a valer ao comentar justamente esse quadro, o título e o significado da palavra brasileiríssima: bagunça.

Denise Mattar nos mostra o Cícero Dias mais doce e mais afetuoso. Isto termina por levar a memória a algo que ele me disse, certa vez. Sobre o conjunto de poemas de Mário de Andrade a ele dedicados. Que eram os mais doces e mais líricos de toda a produção do poeta paulista. Lembro-me disso ao escutar Denise sobre a figura gigante de uma negra horizontalmente disposta num canavial. Uma cena de alegria e algum voyeurismo. Assim como os versos gritados pelo inconsciente de Mário de Andrade, como diz, ao deslindar o seu método/processo criativo no Prefácio Interessantíssimo. Encontra um exemplo vivo no que dedicou ao seu amigo Cícero Dias:

Um vento morno que sou eu
Faz auras pernambucanas.
Rola rola sob as nuvens
O aroma das mangas.
Se escutam grilos,
Cricrido contínuo
saindo dos vidros.
Eu me inundo de vossas riquezas!
Não sou mais eu!

Cícero Dias é no seu lirismo arrebatado e arrebatador como um personagem saído daquela abadia de Rabelais cuja única ordem era ficar à vontade. Isso também nos diz em cada um dos trabalhos reunidos nesta exposição sob a curadoria de Denise Mattar: um Cícero tão afetuoso quanto o açúcar das “auras pernambucanas”.

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