Obras como o telefilme It – uma obra-prima do medo (1990), baseado no homônimo romance de Stephen King, as produções cinematográficas Rejeitados pelo Diabo (2005) e Casa dos 1000 corpos (2003), dirigidas pelo músico Rob Zombie, além de aparições em outras mídias, tal qual a própria figura do Coringa nas histórias em quadrinhos do Batman, ajudam a visualizar a dimensão sombria que tomou o palhaço a partir, especialmente, da segunda metade do século 20. Na prática, ele deixa de ser a ponte que liga o público ao riso por meio de sua percepção humana da realidade, para se tornar um agente do caos, voltado para a destruição de todos os símbolos e para a instauração da mais profunda agonia.
Admitindo tal percepção, a primeira questão que logo vem à mente é sobre a relação do homem com a coulrofobia, ou seja, o medo patológico de palhaços. Mesmo irracional, tal fobia teria sido o agente causador da sublimação que levou à criação dessa nova imagem do palhaço ou seria ela fruto de uma criação fundamentada puramente na fértil imaginação de alguém? Ambas são prerrogativas plausíveis, e é possível apresentar uma breve análise sobre elas.
Em 1978, o norte-americano John Wayne Gacy foi preso, após confessar o assassinato de 33 jovens com idade entre nove e 27 anos. Condenado a várias prisões perpétuas em 1988, ele pagou por seus crimes com a vida em 1994, morto pela injeção letal. Gacy, que vivia num subúrbio de Chicago, nos EUA, e era querido pela vizinhança, ficou mundialmente conhecido pela alcunha de “Killer Clown”, ou em português “Palhaço Assassino”. Isso porque ele costumava se apresentar informalmente como o palhaço Pogo para as crianças da região em que vivia e pela especulação de que, durante a execução de suas vítimas, que sofriam abusos sexuais e torturas, Gacy também encarnava sua obscura e perversa persona de clown.
Especula-se que o assassino John Wayne Gacy se vestia de
palhaço ao matar suas vítimas. Foto: Reprodução
A despeito desse caso, vale a pena considerar que boa parte das obras de arte que trabalham a essência maligna do palhaço são oriundas da década de 1980. O Coringa, inimigo mortal do Batman, ainda que criado em 1940, quando as histórias em quadrinhos de super-heróis eram exclusivamente dedicadas ao público infantil, só atingiu sua condição de psicopata sádico e cruel em célebres histórias como O Cavaleiro das Trevas, de 1986, assinada por Frank Miller, e Asilo Arkham, de 1990, escrita por Grant Morrison e ilustrada por Dave McKean.
TORMENTO
Em meados de 2002, um grupo de três palhaços fortemente armados invadiu um bar na região central de Manchester, na Inglaterra, e esvaziou o caixa do local. Não contente, a gangue ainda amarrou o gerente do estabelecimento numa cadeira e o pôs sob a mira de uma espingarda calibre 12, enquanto os integrantes discutiam entre eles a fuga. Na saída, a trupe de clowns foi surpreendida por várias viaturas da polícia, mas, mesmo assim, conseguiu fugir após uma longa perseguição, que resultou em diversos acidentes.
Para Henri Bergson, a compaixão é a maior inimiga do riso. Quando vemos alguém levar um tombo e ir ao chão, o autor afirma que nós rimos apenas porque, por alguns instantes, tornamo-nos insensíveis à dor daquele que caiu. De fato, se analisarmos o próprio espetáculo circense, em que vários palhaços tropeçam gratuitamente, brigam entre si por qualquer coisa, vivem à sombra de uma vontade que nunca se realiza facilmente etc., o raciocínio do filósofo francês parece evidente. Porém, enquanto tradicionalmente o clown se expõe e sofre, nas suas representações malignas, ele atinge exatamente o lado oposto e se transforma naquele que ri de um público que é atormentado.
Interpretação de Dave Mckean para o Coringa. Imagem: Reprodução
O filme espanhol Balada do amor e do ódio, de Álex de la Iglesia, traz claramente essa metamorfose. O personagem principal é o fracassado palhaço augusto Javier (vivido por Carlos Aceres), que não só é desprovido de toda e qualquer graça, mas sempre acaba humilhado dentro e fora do picadeiro. Ao confrontar o amor impossível da trapezista Natália (Carolina Bang), que por sua vez é noiva do violento e dominador palhaço branco Sergio (Augusto de La Torre), ele entra num processo de desumanização intenso e doloroso.
No filme, Javier acaba nu, vivendo por semanas na floresta, onde não mais se comunica com ninguém e passa a se alimentar de bichos mortos e dormir sob a sombra das árvores. Ele, nesse momento, deixa de ser humano para se tornar apenas um animal, desprovido de moral, de roupas e de discernimento. A partir daí, quando retorna à cidade, a primeira coisa que faz é se desfigurar com um ferro de passar roupa e admitir seu único eu verdadeiro como sendo o do palhaço, que agora deixa o picadeiro e passa a andar pela cidade armado até os dentes e atirando em qualquer um que atravesse o seu caminho. Tal qual um bufão, ele concentra todo o seu deboche nos outros e não nele mesmo. A insensibilidade, que para Bergson dá origem ao riso, aqui se transforma em sadismo, em puro prazer. Transforma-se, definitivamente, na válvula de escape que impulsiona a transformação do palhaço bom em mau.
Outra situação que ilustra bem essa mudança de aspecto pode ser representada no mediano arco de histórias em quadrinhos Coringa, lançado em 2009 pelo roteirista Brian Azzarello e pelo ilustrador Lee Bermejo. Adotando a face do personagem-título que foi concebida por Heath Ledger no filme Batman – O Cavaleiro das Trevas, de 2008, a obra é uma tentativa malconcebida de se aprofundar na psiquê do Palhaço do Crime. A despeito disso, em determinado momento, o vilão faz entrar no palco de uma casa de shows um homem esfolado vivo, com um dólar colado na nádega. A cena resume a troca de lados ocorrida entre espetáculo e espectador que caracteriza bem o âmago da maldade do clown. Afinal, é o palhaço rindo e expondo ao ridículo o homem comum, que normalmente riria dele.
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