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Nos livros, o enredo é outro

Ao longo da história da literatura, infortúnios vêm fornecendo inspiração para escritores

TEXTO Fábio Lucas

01 de Junho de 2015

Imagem Arte sobre foto divulgação/Poema 'Minha mãe', de Vinicius de Moraes

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 174 | jun 2015]

O desencontro de amantes proibidos,
a impossibilidade de paixões fora dos padrões de uma época, o tormento da distância forçada da terra natal, as desventuras de vidas marcadas pela dor ou pela miséria. A felicidade que se retira, e se desloca para outro lugar, outro corpo ou outro tempo, tem sido fartamente explorada pela literatura. É nessa fuga que mora a motivação literária, mais do que na aposta de personagens, como se diz, bem-resolvidos.

“A felicidade é um desses temas muito difíceis de tratar na literatura… quem se interessa por um personagem feliz?”, questiona a escritora Carola Saavedra. “Fulano acordou com um sorriso no rosto, deu um beijo na esposa amada e nos filhos perfeitos e foi trabalhar no escritório em que é admirado por todos; durante oito horas dedicou-se a tarefas estimulantes, e, no final da tarde, dirigiu cantarolando de volta para a sua família perfeita. Tirando os exageros do exemplo acima, um personagem feliz seria alguém sem grandes conflitos, sem grandes problemas, ou seja, alguém de pouco interesse para o autor. O que resta é retratar momentos de felicidade, que, a meu ver, só se tornam instigantes porque, junto com as grandes alegrias, vem sempre a sombra da tragédia”, diz a autora de Paisagem com dromedário.

Nesse romance, a propósito, Carola Saavedra tem uma passagem que ilustra o aproveitamento literário da felicidade: “Quando eu saí da tua casa aquela tarde, o sol estava se pondo e o céu adquirira uma tonalidade avermelhada. Soprava uma brisa fresca de primavera. E eu me sentia bem, leve. Tudo parecia perfeito. Agora, penso, já percebeu que são justamente esses momentos, quando tudo parece perfeito, que antecedem os acontecimentos mais assustadores, as piores tragédias? Talvez toda felicidade tenha um fundo falso, uma tonalidade artificial, e esteja ali apenas para contrastar com o que está por vir”.

Por ser aquilo que se queira, tudo pode trazer uma sensação de felicidade. Mesmo fugaz, indefinida, tola… Como um novo par de botas para alguém que vai feliz pela rua, talvez sem ter almoçado, nem levar um centavo no bolso: “Esse homem, tão esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna. Nada vale nada. Nenhuma preocupação deste século, nenhum problema social ou moral, nem as alegrias da geração que começa, nem as tristezas da que termina, miséria ou guerra de classes; crises da arte e da política, nada vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas, ele calça com elas o chão de um globo que lhe pertence. Daí o orgulho das atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olímpica… Sim, a felicidade é um par de botas”, escreveu Machado de Assis, no conto Último capítulo.

Quem sabe, uma coisa há muito desejada, finalmente possuída, forçosamente esquecida, somente para se reproduzir a surpresa e o susto de tê-la, prolongando o encantamento da descoberta. É assim no conto Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, no qual esse algo apaixonadamente buscado é um livro. Claro, a busca não é sempre tão prosaica. Na obra Olhai os lírios do campo, Érico Veríssimo narra a trajetória de Eugênio, personagem que abomina a origem humilde e se põe e refletir sobre a felicidade depois de trocar o amor verdadeiro por um casamento de conveniência.


Carola Saavedra. Foto: Divulgação

Na poesia de Manuel Bandeira, a referência mais famosa remete ao desejo de estar noutro lugar – “Vou-me embora pra Pasárgada/ Aqui eu não sou feliz”. Mas há outras imagens. Como no poema A estrela: “Vi uma estrela tão alta,/ Vi uma estrela tão fria!/ Vi uma estrela luzindo/ Na minha vida vazia (…) Por que tão alta luzia?/ E ouvi-a na sombra funda/ Responder que assim fazia/ Para dar uma esperança/ Mais triste ao fim do meu dia”.

Talvez o mais elaborado mergulho literário no tema da felicidade idealizada – assim como do aprisionamento da fruição de um momento que escapa – venha do clássico romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Nele, o autor assinala, entre outras passagens, que a perseguição da felicidade é tão ingênua quanto o projeto de alcançar o horizonte caminhando para frente.

O escritor e psicanalista Tiago Novaes, autor do romance Documentário, em que discute o sofrimento humano em tempos de superexposição na web,lembra que, segundo a escritora francesa Simone Weil, a felicidade não é outra coisa senão um sentimento da realidade. “Em contraposição, a infelicidade consiste na debilidade dessa sensação. E, de fato, os discursos dos depressivos estão impregnados desse embotamento da consciência e da perda das cores do real. Ser feliz é poder situar um presente numa história. Saber observar as coisas e se relacionar com as pessoas em suas fragilidades e contradições, na consciência de tudo o que nos ultrapassa”, diz o autor de Os amantes da fronteira.

Os leitores podem achar nos romances, nos contos e nos poemas algum alento. Porque a felicidade não é impositiva, e muito menos fácil. E o que se lê ajuda a compreender isso, ampliando o espectro das próprias limitações e possibilidades. “A literatura nos torna mais felizes no sentido em que nos ajuda a enxergar melhor. A literatura nos concilia com a dimensão trágica da vida. É uma suspensão que nos aproxima do presente e da realidade. Observamos, pensamos, saímos de nós mesmos”, pontua Tiago Novaes.

E a leitura enquanto exercício espiritual, na expressão do sociólogo francês Marcel Granet, oferece, se não um antídoto, pelo menos um contraponto à ilusão estabelecida da felicidade compulsiva. 

FÁBIO LUCAS, jornalista, mestre em Filosofia, editoralista do Jornal do Commercio.

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