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Música: Evocando o pavor em acordes dissonantes

A relação entre medo e sons tem início na Pré-História e segue até aos dias atuais, com o sombrio heavy metal e seus subgêneros

TEXTO Sérgio Barza

01 de Maio de 2012

Ilustração Indio San

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 137 | maio 2012]

Dentre todas as realizações da humanidade,
nenhuma é tão envolvente quanto a música. Mais do que qualquer manifestação artística, ela participa da vida em momentos especiais e marcantes, refletindo gestos e atitudes, sugerindo emoções e sentimentos, do carinho à melancolia, da bravura ao medo, acompanhando consciente ou inconscientemente o ser humano do nascimento à despedida final.

A associação do medo com a música começa na Pré-História, quando o cérebro aprendeu a processar ruídos ameaçadores de animais e inimigos. Com os sons organizados como discurso musical, é a dissonância que provoca reações de angústia, tensão e medo. Como seria, porém, a ligação entre a música como arte e a sensação de medo? Falaremos aqui de obras que evocam o sobrenatural e de músicas que são ligadas ao terror, mesmo que os compositores não tenham aventado essa possibilidade, além de músicas usadas em cerimônias fúnebres, pois a morte para muitos é o último e maior medo a enfrentar.

A música que representa o medo é geralmente aquela que remete ao terror, no sentido usado pela literatura gótica do século 19: a sensação de temor crescente que antecipa o momento do horror, ou repugnância. O terror em termos musicais pode ser ligado ao desconhecido e ao sobrenatural, como explorado por outras artes (especialmente literatura, pintura, cinema e teatro), mas iniciaremos com a música dedicada à memória dos mortos.

A composição musical mais comumente usada para homenagear os que se foram é chamada de réquiem. A palavra é tirada do introito da liturgia da missa dos mortos, requiem aeternum, que vem do latim e significa “descanse” ou “repouse”. Até o século 15, a música utilizada nesse tipo de peça era exclusivamente o monofônico cantochão (canto das liturgias cristãs), mas, a partir da Escola Franco-Flamenga (séculos 15 e 16), os compositores potencializaram a expressividade com o desenvolvimento das técnicas de escrita musical, primeiro com a polifonia, depois, com a homofonia. A missa dos mortos ganha um maior impacto dramático com o Dies irae (“Dia de ira”, ou “Dia do julgamento final”), incorporado no século 16, com as mudanças na liturgia propostas pelo Concílio de Trento. A homenagem aos que se foram e a menção à morte vão além dos réquiens, e incluem outros cantos fúnebres como o lamento, a trenodia e a marcha fúnebre.

Um capítulo à parte na representação do medo em música é a dança macabra, inspirada numa alegoria da época das grandes epidemias da Idade Média que mostrava vários representantes da sociedade (nobres, religiosos, homens comuns) seguindo a morte, numa alusão à fragilidade da vida e das glórias terrenas. As mais conhecidas composições baseadas na dança macabra são a Totentanz, de Franz Liszt (1849), e a célebre Danse macabre, um poema sinfônico de Saint-Saëns composto em 1874. A peça conta que a morte aparece todos os anos à meia-noite no Halloween e chama os mortos para que saiam de suas tumbas e dancem para ela ao som de seu violino, até o galo anunciar o nascer do dia – quando voltarão para seu descanso, estendido ao ano seguinte.

Essas peças foram compostas na época do Romantismo, movimento literário e artístico do século 19, que tinha entre suas características o combate ao racionalismo iluminista, e o fascínio pelo oculto e pelo sobrenatural. Nesse contexto, a música de Liszt e Saint-Saëns foi usada tanto nos teatros quanto nas salas de concerto para ilustrar o medo.

Algumas óperas do século 19 usaram o sobrenatural nos seus enredos, como La dame blanche (Boieldieu), Lucia di Lammermoor (Donizetti), O navio fantasma (Wagner, baseada na lenda do Holandês Voador) e Macbeth (Verdi). Essa tendência continuaria no século 20, com A volta do parafuso (Britten) e Le grand macabre (Ligeti). Já as salas de concerto apresentaram obras importantes como a Sinfonia fantástica (Berlioz), os lieder (canções) de Schubert Erlkönig e Der Tod und das Mädchen (A morte e a donzela), além de Le streghe (A bruxa), de Paganini, um violinista sobre quem diziam ter feito um pacto com o Diabo para se tornar um virtuose.

O cinema, no século 20, seguiu o caminho aberto pela ópera e usava a música como apoio para as imagens, mesmo que a composição não tivesse sido escrita originalmente para esse fim. Ao lado de trilhas originais (lembrem-se da cena do chuveiro de Psicose), foram utilizadas peças como a Toccata e Fuga em ré menor, de J.S. Bach; a Marcha fúnebre, de Chopin (terceiro movimento de sua Sonata nº 2); a Marcha fúnebre para uma marionete, de Gounod, celebrizada como tema da série Alfred Hitchcock presents; e A rapsódia húngara nº 2, de Liszt, por muitos anos tema de abertura do programa radiofônico Mistérios do além, na Rádio Clube de Pernambuco.

A música pop, o blues e o rock também abordaram o sobrenatural e o terror em canções. Robert Johnson, seguindo Paganini, teria feito um pacto com o Diabo para aprender a tocar blues, algo que ele conta em Cross roads blues e em Me and the Devil blues, parte das lendas do Mississippi. Nos anos 1950 e 1960, aproveitando a abordagem cômica do terror pelos quadrinhos e TV, como nas séries A família Adams e Os monstros, algumas canções fizeram bastante sucesso, como Monster mash (Bobby Pickett) e Purple people eater (Sheb Wooley).

Outras canções usavam o extranatural mais seriamente, como Ghost riders in the sky, sucesso com Burl Ives e Frankie Laine, e I put a spell on you, de Screamin’ Jay Hawkins, que a apresentava teatralmente nos palcos, vestindo uma capa e saindo de um caixão entre névoa e fumaça, antecipando o rock teatral dos anos 1960, de The Crazy World of Arthur Brown, e dos anos 1970, com Alice Cooper e Kiss.

Embora não possamos esquecer a incursão dos Rolling Stones pelo lado negro, com Sympathy for the Devil, e os mergulhos de Jimmy Page no satanismo de Aleister Crowley, o sobrenatural como tema dominante no rock só seria explorado no final dos anos 1960, com o surgimento do heavy metal.

A música de grupos como o Black Sabbath era uma reação à desilusão da juventude com a cultura hippie. Simbolizando esse comprometimento, o nome do grupo foi retirado de um filme de terror de 1963, de Mario Bava, com Boris Karloff. A música com o mesmo nome, que fazia parte do seu primeiro álbum, era inspirada nas obras do escritor ocultista Dennis Wheatley e fazia uso do intervalo dissonante de quarta aumentada, desde a Idade Média chamado diabolus in musica.

O som pesado e os grandes concertos de rock dos anos 1970 podem ser considerados o equivalente eletrificado da ópera romântica pré-Wagner, especialmente os espetáculos teatrais de horror do já citado Alice Cooper (Vincent Damon Furnier).

SUBGÊNEROS
Outras bandas declinavam do lado teatral, mas não do sobrenatural, entre elas Blue Öyster Cult e Uriah Heep. O gênero ganhou novo sangue a partir do final daquela década, com grupos como o inglês Iron Maiden, o dinamarquês Mercyful Fate, o americano White Zombie (cujo líder, Rob Zombie, escreveu e dirigiu vários filmes de terror), e subgêneros como doom metal, death metal, black metal e gothic metal.

O doom metal é baseado no trabalho inicial do Black Sabbath, com som e letras evocando medo, angústia e desespero, e o som do gothic metal, em alguns momentos, busca também climas sombrios. Death e black metal trazem o terror mais nas letras que na música, excessivamente rápida e distorcida. Esses subgêneros abarcam desde o satanismo e anticristianismo explícito (bem ilustrado pelo incêndio de várias igrejas na Escandinávia, nos anos 1990) a uma abordagem mais lírica do terror e do ocultismo. Para aqueles que não sabem, o Brasil esteve bem representado nesse contexto com a produção inicial do Sepultura, ao lado dos trabalhos do Korzus e do Sarcófago.

Independentemente de títulos e letras, é através do som que a música continuará provocando e transmitindo emoções. O ser humano nunca perderá o fascínio pelo oculto, nunca deixará de sentir medo, e não encontrará um modo melhor de traduzir isso senão pela música. 

SÉRGIO BARZA, músico, regente e professor do Conservatório Pernambucano de Música.

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