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Mário Filho: O Homero do futebol

O irmão mais velho de Nelson foi de tal modo importante para a crônica esportiva, que o gênero não seria o mesmo depois de sua contribuição

TEXTO José Neves

01 de Agosto de 2012

Em textos escritos sobre Pelé, Mário adota tom sociológico; Nelson, apoteótico

Em textos escritos sobre Pelé, Mário adota tom sociológico; Nelson, apoteótico

Foto Reprodução

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 140 | agosto 2012]

Mário Filho, o terceiro da prole de 14 herdeiros
da família Rodrigues, era chamado de “Homero do futebol” por Nelson. Mas, se a narrativa da vida do poeta grego mistura lenda e realidade, a do irmão do Anjo Pornográfico, não. Ele faleceu em 1966, aos 58 anos, deixando importante legado para o esporte brasileiro. Primeiro, explicou a presença do negro nessa apaixonante modalidade esportiva, em O negro no futebol brasileiro, maior clássico sobre o futebol no Brasil. Depois, exerceu importante papel na evolução da crônica esportiva. Mas, se Mário influenciou o irmão Nelson, que o idolatraria eternamente, é preciso registrar também a influência de Gilberto Freyre sobre Mário: a partir do artigo Foot-ball mulato, que o Mestre de Apipucos publicou em 17/6/1938, no Diario de Pernambuco.

Nele, o sociólogo pernambucano aborda a participação brasileira na Copa do Mundo de 1938. Destaca a coragem que tivemos de mandar à Europa “um time fortemente afro-brasileiro”. Com seu olhar perspicaz, Freyre já observava as características originais do jogador nacional: “O nosso estilo parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e, ao mesmo tempo, de espontaneidade individual... Os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de dança ou capoeiragem que marca o estilo brasileiro, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses (...)”. Freyre seria convidado nove anos depois para escrever o prefácio de O negro no futebol brasileiro.

Mário Filho era dotado de visão intelectual privilegiada e também de um empreendedorismo nato. Depois dele, a cobertura de eventos esportivos mudou no Brasil. Ele inventou o desfile das escolas de samba no Rio, os Jogos de Primavera, batizou o clássico mais tradicional do futebol carioca, o Fla-Flu, e foi decisivo para a construção do Estádio do Maracanã, ao qual emprestou o nome.

Dois fatos contribuíram para aproximar ainda mais os irmãos Mário e Nelson. Em 1929, Roberto, que era primogênito e artista plástico, foi assassinado. No ano seguinte, Mário Rodrigues, o pai, veio a falecer. Coube a Mário Filho assumir a chefia da família. E ele fez mais que isso, tornando-se uma espécie de mentor intelectual do seu jovem irmão. A identificação entre os dois, a partir daí, ficou mais forte. Nelson absorveu naturalmente as explicações e forma de interpretação de Mário sobre o estilo brasileiro de jogar futebol. A morte do pai da crônica esportiva obrigou o dramaturgo a intensificar a divulgação de sua obra, de suas qualidades, uma forma de imortalizar o irmão. E isso ele fez com pleno êxito.

Nelson dizia que o irmão inventara a crônica esportiva, com uma nova linguagem e que o futebol passara a ocupar espaço privilegiado nos jornais a partir de Mário. Os jornalistas esportivos, antes primos pobres dos colegas de redação, passaram a andar de gravata, a ter carros novos, em vez de mendigar míseros sanduíches e refrigerantes aos clubes nos dias de jogos. Para Nelson, a presença de Mário na cobertura esportiva trouxe dignidade à categoria, além de uma nova linguagem.

Verdade em termos. Podemos dizer que Mário apenas levou ao noticiário os novos conceitos criados a partir da Semana de Arte Moderna, de 1922. Ele era um assíduo leitor de Mário de Andrade e de outros bambas que introduziram aquele novo estilo literário no Brasil, como registra Ruy Castro, em O anjo pornográfico: “... os vapores da Semana de 1922 já tinham se espalhado pelo Brasil e os truques mais modernosos do Modernismo – as frases curtas, os ‘flashes’ visuais, um certo jeitinho malcriado de escrever – eram uma doença entre os jovens escritores. Os modernistas eram fáceis de imitar, tanto que se imitavam uns aos outros, como Oswald de Andrade e Ronald de Carvalho, que eram os que Mário Filho, por sua vez, imitava.”

Coube a Mário, com seu olhar sensível, explicar aquela realidade com uma visão sociológica. Contou em seu livro como aqueles negros descalços conseguiram a inclusão social com arte e malícia, jogando contra brancos, vencendo o preconceito com manha e picardia. Para ele, o futebol adquiriu relevância por incluir aquela população negra marginalizada recém-saída da escravidão numa sociedade dominada pela oligarquia.


Mário Filho. Foto: Reprodução

Mário Filho criou o jornal O Mundo Esportivo, que durou pouco tempo, antes de adquirir de Roberto Marinho (um dos cúmplices de Nelson na divulgação do mito do inventor da crônica esportiva) o título de Jornal dos Sports. Ele acreditava no futebol como possibilidade de ascensão social para os negros e de encantamento para as multidões.

Como admirador e fã do irmão, cabia a Nelson a outra parte do processo de construção desse projeto. Dramático, teatral, ele assumiu a missão de enxergar e divulgar os dramas humanos, as tragédias gregas dentro do gramado. Mário era o verbo, a ação. Nelson, o adjetivo, a metáfora.

Há vários exemplos, mas em dois textos sobre o mesmo personagem, Pelé, podemos conectar Mário e Nelson, e entender o papel de cada um neste contexto: o primeiro, com seu olhar sociológico; o outro, apoteótico, profético. Ambos, porém, na mesma direção. Uma tabelinha entre o analista atento à questão social e o gênio da crônica esportiva a vislumbrar um reinado em plena construção por um negro.

No prefácio da segunda edição de O negro no futebol brasileiro (de 1964, pela editora Civilização Brasileira), Mário exalta a personalidade do futuro do maior ícone nacional da bola: “Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória. Nenhum preto, no mundo, tem contribuído mais para varrer barreiras raciais do que Pelé. Tornou-se o maior ídolo do esporte mais popular da terra. Quem bate palmas para ele, bate palmas para um preto. Por isso, Pelé não mandou esticar os cabelos: é preto como o pai, como a mãe, como a avó, como o tio, como os irmãos. Para exaltá-los, exalta o preto. Por isso, é mais do que um preto, é o Preto. Os outros pretos do futebol brasileiro reconhecem-no. Para eles, Pelé é o Crioulo”.

Numa coluna para a revista Manchete Esportiva, em março de 1958, antes da consagração do santista na Suécia, Nelson chama Pelé de rei, pela primeira vez: “Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei. Da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”. 

JOSÉ AFONSO JR., jornalista, pós-graduado em Jornalismo e História, editor da revista de futebol Clássico.

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