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Espetáculo: A traição que sobe ao palco

'Calabar', de Ruy Guerra e Chico Buarque, trouxe a história do personagem para o teatro, numa crítica ao regime militar

TEXTO Alexandre Figueirôa

01 de Agosto de 2015

O texto foi liberado em 1980 e remontado com direção de Fernando Peixoto

O texto foi liberado em 1980 e remontado com direção de Fernando Peixoto

Foto Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 176 | ago 2015]

Por muito tempo, a história oficial fez da traição
de Calabar o ato mais ignóbil perpetrado contra a pátria. Ao menos para o teatro, essa versão pode ser contada de outra maneira. Calabar – o elogio da traição (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, é até hoje uma das mais lúcidas reflexões sobre o 20 de abril de 1632, quando Domingos Fernandes Calabar escreveu ao governador da Capitania de Pernambuco, Matias de Albuquerque, uma carta afirmando sua crença de que os holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, ao contrário dos portugueses e espanhóis, traziam a liberdade para o Brasil.

O texto da peça musical toma como base o acontecimento histórico, porém é muito mais uma discussão sobre a traição. Não de forma absoluta, como afirmou Ruy Guerra, mas como um conceito em relação à ideia de fidelidade, matizando esses dois extremos e questionando como o que se considera um ato de traição pode ser um ato de fidelidade ou vice-versa.

Nela, vemos os principais protagonistas do evento histórico – Matias de Albuquerque; Sebastião do Souto; Filipe Camarão; Frei Manoel do Salvador; Henrique Dias; Bárbara, a mulher de Calabar; Ana de Amsterdam e o conde Maurício de Nassau – comentando a sua suposta traição e a condenação à morte. O texto mistura fatos históricos reais com comentários debochados e irônicos sobre a situação, com um detalhe: o personagem Calabar não aparece fisicamente na peça.

A primeira tentativa de encenar Calabar ocorreu ainda em 1973. Com direção do encenador Fernando Peixoto, o espetáculo, produzido por Fernando Torres, foi ensaiado por dois meses e tinha direção musical de Dori Caymmi, orquestração de Edu Lobo, coreografia de Zdenek Hampl e um elenco de 48 atores, entre eles Tetê Medina, Perfeito Fortuna e Betty Faria no papel de Ana de Amsterdam. A censura do regime militar, no entanto, impediu a estreia no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. De acordo com Ruy Guerra em matéria publicada no jornal O Globo, os censores alegaram suspeitas de que a montagem era financiada por comunistas russos. Mas, no fundo, a proibição devia-se ao caráter contestador do texto por opor-se à história oficial e ironizar indiretamente a situação política do Brasil naquele momento.

A montagem realçava a quebra das regras habituais da dramaturgia e fazia uma revisão histórica numa perspectiva desmistificadora. Cenicamente, mesclava comédia e teatro musical e, ao mesmo tempo, mergulhava na análise dos personagens, destacando o comportamento e a rede de traições entre eles. Na apresentação do texto, Peixoto observava que o espetáculo não pretendia fechar as chaves de entendimento dos fatos, cabendo ao espectador escolher sua forma de pensar. Seguindo os passos da dramaturgia moderna, propostos por Bertolt Brecht, transpunha-os para a peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, desmistificando o conceito de herói.


A primeira montagem de 1973 foi censurada antes da estreia. Imagem: Divulgação

Apesar da censura, as músicas compostas para o espetáculo foram gravadas e integraram o álbum Chico canta, entre elas Tatuagem, Tira as mãos de mim eFado tropical. A capa, com o nome Calabar pichado num muro, foi proibida. Em janeiro de 1980, o texto foi anistiado e uma nova montagem, também dirigida por Fernando Peixoto, realizada em São Paulo. No elenco estavam Sérgio Mamberti, Othon Bastos, Tânia Alves e Renato Borghi. Peixoto realizou diversas alterações na encenação e trocou o historicismo crítico da primeira versão por uma colagem mais aberta e provocante, optando por uma exteriorização do espetáculo, mas sem as contradições dos personagens.

EM PERNAMBUCO
O personagem histórico de Domingos Fernandes Calabar e o período holandês também são fontes de inspiração para grupos teatrais pernambucanos. Em 1965, o Grupo Construção, fundado por Benjamin Santos, criou um espetáculo cujo título era Calabar. O responsável pela encenação foi o jovem diretor Marcus Siqueira, que convidou o amigo e poeta paraibano Marcos Tavares para escrever o texto e o maestro Ernest Schurmann para cuidar da parte musical.

O espetáculo inspirava-se no Arena canta Zumbi. Tavares propunha uma revisitação histórica do episódio da expulsão dos holandeses, vistos como representantes do capitalismo e do imperialismo, e valorizava o espírito de insurreição dos pobres contra os ricos comerciantes da Companhia das Índias Ocidentais. A encenação buscou uma linguagem moderna na fusão de texto e músicas, que não eram apenas ilustrativas, mas participavam da narrativa. O elenco era composto por Teca Calazans, José Fernandes, Paulo Guimarães, Zélia Marinho e Jomard Muniz de Britto. Os atores interpretavam diversos personagens e trocavam de roupa em cena.

Em meados dos anos 1980, o texto de Ruy Guerra e Chico Buarque foi montado no Recife com um grande elenco, sob a direção inicialmente de Joacir Castro e, em seguida, do dramaturgo e ator Didha Pereira. A coreografia era do bailarino Black Escobar, que também integrava o elenco. Mais recentemente, em 2007, alunos da Escola de Artes João Pernambuco realizaram uma adaptação do mesmo texto com direção de Fred Nascimento, um dos docentes da escola.

Essa montagem de Calabar – o elogio da traição seguiu os fundamentos ideológicos da versão de Fernando Peixoto, centrada nos conceitos de traição, pátria e colonização. Mostrava o sofrimento de Bárbara, mulher de Calabar, a fuga de Matias de Albuquerque e a chegada de Maurício de Nassau. Segundo Nascimento, a adaptação trazia ainda características do teatro épico proposto por Brecht, mantendo a estrutura de musical com as canções executadas ao vivo, porém com arranjos contemporâneos. A montagem participou de festivais estudantis e foi encenada em várias cidades do interior do estado. 

ALEXANDRE FIGUEIRÔA, jornalista, professor, crítico e doutor em Cinema pela Sorbonne.

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