Na manhã de 10 de novembro de 1991, o primeiro trem com destino a Charleville, nas Ardennes, partiu com algum atraso da Gare du Nord, em Paris. Na província, assim como na capital francesa, realizavam-se as comemorações do centenário de morte do poeta Arthur Rimbaud. Até aquele momento, tanto os franceses como todos os amantes da poesia ao redor do mundo já festejavam a data havia algum tempo, mas, para os seus leitores – fossem estudiosos ou simplesmente apaixonados –, lembrar o dia da morte do poeta em sua cidade natal, onde ele está enterrado, seria mais que um alento. Para quem ia naquele trem, a viagem era uma forma de reencontro.
No caminho entre as pequenas estações que pontuam a região da Champagne, eu recriava as paisagens através das quais, provavelmente, Arthur Rimbaud também passara. Era uma experiência só comparável às primeiras leituras de sua poesia, sem, no entanto, a iluminação intraduzível. Todas as obras de Rimbaud, incluindo a sua correspondência, além de diversos estudos e biografias, haviam sido cuidadosamente anotadas por mim e, assim, a cada parada, em cada lugar onde comprovadamente ou não o poeta estivera, era como o reconhecer.
Em Charleville-Mezières – que no século 20 aumentara o seu nome devido à fusão com a cidade vizinha, do outro lado do rio –, todos os mapas do chamado circuito rimbaudiano terminam no cemitério. Assim, visitar os endereços em que a família Rimbaud morou, estar à beira do rio onde o poeta adolescente imaginou índios e oceanos a bordo de seu Bateau Ivre, ouvir o silêncio da biblioteca que ele frequentava ou entrar no velho moinho da cidade que, agora, havia sido transformado no Museu Rimbaud, tudo é uma preparação para o grande momento: encontrar a pedra com seu nome e duas datas. Saber-se perto de um morto é como ver além da vida, numa irmandade comum e inadiável. Para os que ficam, toda ausência é um permanente dia de finados. Mas a morte, assim como o amor e a amizade, é a construção de uma intimidade – ou uma paradoxal diminuição de distâncias.
Esculturas tumulares de Goethe e Schiller, dispostas lado a lado, em
Weimar. Foto: Divulgação
Tanto nos órgãos oficiais do governo municipal como nas instituições culturais ligadas a Rimbaud, em Charleville-Mezières, tentei (junto com outros visitantes e pesquisadores) encontrar registros da família do poeta. Em Paris, eu já havia procurado o sobrenome nas listas telefônicas, mas nem ali nem em qualquer outro lugar da França havia qualquer vestígio. O nome Rimbaud parece que se dissolveu ao longo do tempo, transmudouse em outros, na mesma proporção em que a sua associação à poesia ganhou o mundo. No único número de telefone que constava ao lado de uma certa família Ribaud, de Paris, ninguém sabia de nada ou não queria responder a perguntas sobre as relações com o outro nome. Já em Charleville-Mezières, a marca Rimbaud batiza desde uma bela livraria até qualquer mínimo souvenir, e dá nome a tudo que resuma, sob a sua bandeira, o reconhecimento local: rua, praça, cais, museu, café.
CASA DOS MORTOS
No cemitério da cidade, desde o portão de entrada, já se avista o jazigo da família, em que duas tumbas com lápides verticais são cercadas por uma pequena grade. Ali estão, além do poeta (sozinho, à direita), a mãe e uma irmã (à esquerda). Esse parece ser o único jazigo a receber visitantes que nunca são da família. Todos são estranhos e estrangeiros, cuja silenciosa intimidade com um dos mortos é a da poesia. Não há, não obstante a sua importância, qualquer aspecto arquitetônico que diferencie o lugar da família Rimbaud dos outros ao redor, apenas uma pequena placa e a constante visitação – o que mantém algumas flores sobre o túmulo da direita. Por sua simplicidade, o jazigo do poeta guarda algo aquém ou além da sua poesia.
Lembro que, em outras cidades do mundo, tumbas de escritores se alternam em grandeza e discrição para homenagear seus inquilinos. Há até aquelas cujo excesso de sobriedade dá ao lugar uma aparência quase de abandono, contrastando com a importância de quem guardam. É o caso dos túmulos de Gottfried Benn e de Kleist, em Berlim; de Thomas Mann, em Zurique; de Kafka, em Praga; de Thomas Bernhard, em Viena; de Wittgenstein, em Cambridge; e o de Hölderlin, em Turbingen, na Alemanha. Em alguns, o acúmulo de folhas, hera ou grama daninha inspira mesmo a tristeza.
Jazigo de Jorge Luis Borges está em Plainpalais, Genebra. Foto: Divulgação
Por outro lado, há jazigos belos e imponentes, quase hieráticos, como é o caso dos de Appolinaire e Oscar Wilde, no cemitério de PèreLachaise, em Paris; de Jorge Luis Borges, no Plainpalais, em Genebra; de Leopardi, em Nápoles; ou, ainda, de Sainte-Beuve, no cemitério parisiense de Montparnasse. Por fim, há aqueles que, por sua elegância, seriam dignos de qualquer grande escritor. Na lista desses últimos estão as inscrições de Ezra Pound, no cemitério de Veneza; de Proust e Balzac, no Père-Lachaise; de Samuel Beckett, no Montparnasse; de Walter Benjamin, no Port-Bou, na Espanha; de Brecht, em Berlim; de Goethe e Schiller, lado a lado em belíssimas tumbas negras, em Weimar; de James Joyce, em Zurique; e, finalmente, a do poeta John Keats, em Roma. Não relaciono aqui os nomes de Camões e de Dante porque, para mim, os seus mausoléus, como monumentos à própria poesia, excedem o conceito da morada de um morto.
Mas como se pode notar na lista acima, o endereço de alguns escritores e poetas mortos nem sempre está na cidade ou mesmo no país em que nasceram. Thomas Mann, Oscar Wilde, Borges, Pound e Joyce são apenas alguns exemplos. Quanto a Rimbaud, não se pode afirmar que a sua última vontade teria sido um enterro em Charleville, cidade de onde sempre quis fugir para o desconhecido. Além disso, uma vizinhança tão próxima com a mãe tampouco seria a minha aposta entre os seus pedidos de moribundo. Os meus palpites oscilam entre o nada de um deserto africano – onde o seu corpo doente poderia ter sido abandonado e esquecido pelos que o transportaram – e o sal de qualquer mar. Nos 37 anos que viveu, dos quais mais da metade foi dedicada a aventuras literárias e viagens de negócios, o espírito de Rimbaud ansiava por evadir-se numa inquietação permanente: “Junto ao seu querido corpo adormecido, quantas noites passei acordada, querendo saber por que ele queria tanto evadir-se da realidade” (Uma temporada no inferno, trad. Lêdo Ivo). A poesia e a África, enfim, foram os meios para sua evasão.
VIDA E MORTE
Ao lembrar escritores contemporâneos que tinham o espírito da inquietação rimbaudiana, sempre lamento o fato da inexistência de alguns encontros, como no caso de Rimbaud e Nietzsche (1844-1900), que teria rendido belos diálogos sobre a vida e a morte. O filósofo (e poeta) alemão nasceu exatos 10 anos e cinco dias antes de Rimbaud e, como o poeta francês, teve uma forte educação religiosa. No caso de Rimbaud, a mãe era uma católica rigorosa, enquanto Nietzsche era filho e neto de pastores protestantes. Conclui-se daí que a imagem da morte e uma reflexão mais profunda sobre a transcendência do espírito acompanharam o poeta e o filósofo desde cedo. No campo prático, ambos estiveram muito próximos da experiência da morte, ao participarem, em diferentes situações, de episódios da guerra franco-prussiana, deflagrada em 1870: Nietzsche, como enfermeiro; e Rimbaud, como aventureiro que se julgava, aos 16 anos, voluntário para matar ou morrer.
A vida e a morte são exercícios do tempo: o tempo da lembrança e do esquecimento. No caso de grandes poetas como Rimbaud, a sua memória transcende a vida de um homem, de uma época e de um país, e assim será permanente. A eternidade de nossos familiares e amigos, ao contrário, tem a duração da nossa existência, e aos poucos se apaga na finitude daqueles que lembram. A história do esquecimento é um mosaico mais vasto do que a narrativa oficial dos feitos humanos. De qualquer maneira – e inevitavelmente –, cabe ao tempo a pena desse julgamento.
WEYDSON BARROS LEAL, jornalista, crítico de arte e escritor.
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