Quanto ao suporte material do epitáfio, a pedra, como material menos sujeito aos reveses do tempo por sua considerável resistência, representava, para os antigos, uma garantia permanente e perpétua de pós-vida na memória da posteridade. As inscrições lapidares, nesse sentido, seriam documentos da morte que deveriam sobreviver à morte. Como símbolo dessa perenidade, a exemplo, apresenta-se uma prática muito comum entre os romanos, que enterravam placas de bronze aos deuses, para a lembrança imortal do falecido. Podemos dizer que as lápides, na representação da morte, validam e garantem a presentificação do morto na memória social. É uma metáfora no discurso dos epitáfios, lembrança eterna que permanece viva para as futuras gerações. Daí o uso de expressões muito comuns aos epitáfios latinos como aeternus ou ainda memoriae aeterna, em que se pode associar à força da materialidade da pedra, à qual, nesse contexto, se atribui uma significação relacionada à perenidade, eternidade. Esse aspecto atravessou os séculos e perdura até os dias de hoje.
Como confidência de vida, um epitáfio, na maioria das vezes, encapsula sentenças que trazem o resumo da experiência e da sabedoria de uma vida. Quando de autoria do falecido, contém suas últimas palavras, que se projetam como uma tentativa de diálogo entre gerações passadas e futuras. Quando de autoria dos familiares sobreviventes, traz uma retrospectiva, quase sempre de caráter elegíaco, das ações de nossos antepassados ou, ainda, uma expressão dos sentimentos provocados pela morte de um ente querido. Nas palavras de Karl S. Guthke, “as inscrições sepulcrais estão ideologicamente condicionadas pelas palavras que reconhecem a permanência da memória e, portanto, tentam estabelecer o lugar do falecido nessa memória”. De um modo geral, os epitáfios são testemunho da virtude, da sabedoria e dos méritos do falecido, em que se projetam atitudes e comportamentos que seriam modelos. A projeção perpétua na memória dos sobreviventes, a possibilidade de tornar-se imortal são prometidas pela redenção de quem frequentemente é invocado nos epitáfios.
IDENTIDADE “IDEAL”
Na composição de um epitáfio, tanto aqueles produzidos pelo falecido como os produzidos pelos sobreviventes, incorporam-se valores e virtudes relacionados a um tempo e a um lugar particulares, a uma realidade sócio-histórica específica, em que se constrói uma identidade “ideal” associada aos anseios do falecido e/ou da própria comunidade a que pertenceu. Os epitáfios representam um gesto que expressa o sentimento do enlutado e obedecem a modelos socialmente aspirados pelos grupos.
Em um resgate do aparecimento desse gênero textual, os registros históricos indicam que os primeiros epitáfios conhecidos foram os egípcios, gravados nos sarcófagos. Aqueles que foram decifrados obedecem a um modelo uniforme que começa por uma prece a uma divindade, em geral, Osíris ou Anúbis, seguida do nome, da ascendência e dos títulos do defunto.
Os epitáfios da Grécia antiga, considerando-se a tradição literária grega, eram quase sempre compostos em versos elegíacos, embora, mais tarde, começassem a aparecer em prosa. Alguns poetas gregos de epigramas são: Leonidas de Tarento, Luciano de Samósata e Antípatros de Sídon.
Em contraste com os gregos, os epitáfios romanos continham apenas nomes e fatos, sendo desprovidos de valor literário. Começavam usualmente pelas fórmulas Siste, viator ou Aspice, viator, que significam: “Detém-te, viajante” ou “Olha, viajante”. O historiador francês Philippe Ariés relata-nos que “(...) na Roma Antiga, cada indivíduo, às vezes mesmo um escravo, tinha um local de sepultura (loculus) e que este local era frequentemente marcado por uma inscrição”.
Na Idade Média, a cultura dos epitáfios prossegue nas lápides funerárias dos túmulos das classes de prestígio. Estes, apresentavam uma estatuária que reproduzia, a partir do molde de uma mascára mortuária, os traços do vivo, em uma tentativa de substituir a cruel realidade da morte pela arte, como registra Ariés. Aliados a essa representação estética da morte, estão os epitáfios, alguns verdadeiros épicos dos feitos do morto.
O túmulo e o epitáfio de Agamenon Magalhães apontam o papel social que o político teve em vida. Foto: Chico Ludermir
No século 18, como aponta o medievalista, os túmulos eram uma combinação de dois elementos utilizados separadamente: a pedra sepulcral no chão, horizontal, e a inscrição “aqui jaz”, ou pedra fundamental, destinada a ser fixada verticalmente numa parede ou num pilar. Agrega-se ao texto um sentido de pertença, de propriedade, de individualização dos túmulos.
No início do século 19, o que se tornou distinto na cultura do epitáfio foi o apelo ao sentimentalismo, para regular, ponderar vida e morte. Além disso, a individualização das sepulturas possibilitou certa dignidade ao lugar de “descanso” do morto. Expressões latinas, como Resquiecat in pace (Descanse em paz), eram muito usuais nas lápides. Os temas predominantes nos epitáfios incluíam desde lembranças da brevidade da vida, à certeza da ressurreição e do juízo final, à esperança do recebimento da misericórdia de Deus e do encontro com os entes queridos, até pedidos de arrependimento dos pecados e de preparação para a morte. No Ocidente, esses temas representam o caráter exemplar da morte, fundamentado no discurso religioso, e exortam o leitor a refletir sobre as verdades doutrinais cristãs, ou, ainda, sobre a certeza do homem diante de sua finitude.
No século 20, até a primeira década do 21, a prática cultural dos epitáfios permanece. Nos modelos cemiteriais da contemporaneidade, o local para a inscrição, na maioria das vezes, resume-se a uma placa de alumínio, mármore, azulejo e outros tipos de materiais, de tamanho bem-reduzido, se comparada aos monumentos funerários e às lápides dos primeiros cemitérios.
Quanto aos símbolos utilizados na composição desse gênero, o cristianismo, sob herança helenoromana, legou à tradição dos epitáfios um dos signos mais recorrentes em lápides: a cruz. Esse símbolo cristão, em inscrições tumulares, reflete a imortalidade prometida pelo conceito de ressurreição. Douglas J.Davies, estudioso da morte, explica-nos que “a teologia cristã, a iconografia, os modelos de culto, a existência da Páscoa e sua celebração, os ritos funerários, falavam da vida humana como uma viagem da vida terrena para a vida eterna”. Nessa perspectiva, a tradição cristã glorifica a morte. Esse momento, para os cristãos, representa a superação do pecado, a promessa de vida eterna. Nas sepulturas, a cruz remete ao sofrimento de Cristo e sua vitória sobre a morte. Nesse caso, o epitáfio cristão refere-se às verdades da doutrina cristã, como a ressurreição, enfatizando, na maioria das vezes, o futuro da alma mais do que simplesmente o mérito do morto.
PAPEL SOCIAL
Por ser exatamente um instrumento de representação dos discursos sociais, encontramos na escrita dos epitáfios um caráter de heterogeneidade em que elementos gráficos, imagéticos e textuais, diferentes modos de representação, unem-se na construção de um evento comunicativo e da expressão do sentimento de luto em relação a atores que desempenham papéis de destaque ligados às diversas esferas da sociedade: política, econômica, cultural, eclesiástica, artística etc. Essa escrita heterogênea, presente nos epitáfios, além de representar a visão de mundo de um dado grupo social em uma situação particular, fixa, no tempo e no espaço, desempenhos sociais, servindo ainda de memória documental.
Nesse gênero ligado às práticas mortuárias, os sistemas semióticos que o compõe se associam para mobilizar os sentidos do texto. Nos epitáfios oitocentistas de muitos cemitérios brasileiros, por exemplo, podemos identificar três tipos de imagens que se associam às seguintes representações: morte (anjos, caveiras, cruzes, cálice eucarístico); emoção ou sentimento de quem fez o epitáfio (mãos dadas) e identidade social (borlas, brasões e insígnias). As imagens, nos epitáfios, visualmente definem, analisam ou classificam pessoas. Todos os elementos utilizados na composição de um epitáfio associam-se para representar a experiência diante da morte e reforçar, em alguns casos, representações sociais. Além da religiosidade sempre latente no discurso dos epitáfios, o período oitocentista, com a laicização, caracteriza-se exatamente por essa valorização do papel social na vida secular, exercido pelo indivíduo representado na lápide.
Essa valorização do papel social realiza-se pela predicação. A avaliação, a caracterização, os traços, as qualidades e os atributos enfatizados em relação a quem produz o texto e ao objeto do discurso (a morte e os mortos) é quase sempre positiva. As predicações são feitas de forma direta: “Foi solícito pastor”; “Distinto e consumado teólogo; príncipe santo e justo”; “Grande sacerdote”; “Foi filha virtuosa”. O que motiva a família ou outra instituição a produzir um epitáfio com uma intensificação, amplificação maior de determinados atores que assumem certos papéis sociais de destaque nas esferas religiosa, política, artística, jurídica, por exemplo, relaciona-se a uma necessidade social de fixação na memória do grupo a que pertence, de reconhecimento perpétuo da importância social desse integrante da sociedade, muito mais do que uma forma de superação do luto.
Se o epitáfio é uma prática social recorrente, cujo propósito e ênfase iniciais são de identificação e integração do corpo a um novo lugar (da memória, do metafísico), como resposta a uma exigência social e cultural oriunda de uma ocasião da vida cotidiana, compartilhada por atores sociais específicos, ele atende, sobretudo, ao desejo dos sobreviventes de localizar o corpo de um ente querido. Localizar, não necessariamente e sempre no túmulo, como remete a etimologia da própria palavra epitáfio, mas fixar na memória social, afetiva dos que sobrevivem e daqueles que estão por vir, uma representação positiva póstuma de um ator social: “Deram-te o nome de Justo/ Na terra a tua bondade o mereceu/ No céu tuas virtudes a alcançaram”.
FABÍOLA SANTANA, Doutora em Literatura pela UFPE e professora da Universidade Estadual do Maranhão.
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