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Cenário e memória de um polemista

TEXTO Álvaro Filho

01 de Agosto de 2012

Exposição sobre Nelson Rodrigues, em São Paulo, atraiu centenas de visitantes

Exposição sobre Nelson Rodrigues, em São Paulo, atraiu centenas de visitantes

Foto Divulgação/Itaú Cultural

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 140 | agosto 2012]

Para quem um dia chegou a dizer
que a “pior forma de solidão é a companhia de um paulista”, Nelson Rodrigues estava muito bem-acompanhado. Numa fria manhã de julho, quando os termômetros da Avenida Paulista teimavam em ficar abaixo dos 15 graus, a mostra sobre o dramaturgo e escritor pernambucano atraía um bom número de visitantes ao Itaú Cultural, cravado no coração de São Paulo. Turistas, curiosos, profissionais do teatro e estudantes, alguns deles com “odor de PUC”, e até algumas “grã-finas com o nariz de cadáver”, como observaria o próprio escritor, circulavam pela exibição que, no ano do centenário dele, busca traçar um perfil definitivo sobre o polêmico autor, com um enfoque especial, e até certo ponto inédito, sobre as origens pernambucanas.

A força da influência pernambucana na formação do homem e do mito Nelson Rodrigues, inclusive, levou o Itaú Cultural a quebrar uma tradição: pela primeira vez, em 13 edições, uma exposição criada para o espaço Ocupação da casa deixa a capital paulista e, de forma itinerante, aporta na Torre Malakoff, no Recife, a partir de 23 agosto, dia do aniversário do dramaturgo. Além do background geográfico, o trabalho também se debruça sobre o aspecto “família” dele, e aí o faz com direito, afinal a curadoria está a cargo da filha, a jornalista e pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues, e da neta, Sônia Rodrigues Muller, esta última responsável por coletar, em Pernambuco, depoimentos sobre o avô e também sobre o clã dos Rodrigues, numa das partes mais ricas e originais do acervo exibido.

A soma dessa arqueologia nostálgica dá à Ocupação Nelson Rodrigues um ar de álbum de família, nome que justamente remete a uma de suas peças mais polêmicas, que o levou a sair do jornal Última Hora e ainda ajudou a carimbar de uma vez a fama de autor maldito. Imagem que a filha e curadora habilmente tenta desconstruir, a partir do texto que abre a exposição, quando argumenta que o pai havia retratado o quanto era “pequena, mesquinha e hipócrita” a sociedade da época e que ele, mesmo sabendo que o “preço a pagar seria a solidão intelectual”, optou em ser um homem livre.

Além da faceta de maldito, um outro Nelson, o de “autor carioca”, também está na berlinda, constantemente confrontado pela onipresença das raízes pernambucanas na mostra, que se inicia não coincidentemente com o visitante cruzando uma pequena ponte de madeira armada sobre uma grande foto em preto e branco das pontes do Recife. Aliás, o mar pernambucano é uma presença quase obsessiva na exposição, através da projeção de ondas se arrebentando nos arrecifes da praia de Boa Viagem ou no marulhar que pontua o início e o fim das audições, uma memória nostálgica que levou Nelson Rodrigues, na deliciosa e imperdível entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, a confessar seu fascínio por Copacabana por remetê-lo aos banhos de mar em Olinda, na infância.


Mesa com tablets representa a família do escritor. Foto: Divulgação/Itaú Cultural

A Ocupação Nelson Rodrigues é dividida didaticamente em quatro partes, começando por uma apresentação geral do escritor, jornalista e dramaturgo através das mitológicas máximas rodriguianas, ilustradas por um riquíssimo acervo fotográfico da família. O tour segue pelo lado familiar do autor, através de uma gigante mesa de jantar, com 16 cadeiras, destinadas ao pai, à mãe, aos 13 irmãos, e a ele, Nelson. Em frente de algumas delas, foram instalados tablets, em que se é possível navegar, inclusive retroagindo com o toque, a interessantes conteúdos audiovisuais, entre eles o já citado registro do MIS carioca, realizado em 1967, com um Nelson ainda vívido e sagaz, que vale a pena ser ouvido do início ao fim.

Ainda nesse segundo espaço, uma outra parada necessária são os vídeos captados pela neta de Nelson, Sônia, em Pernambuco, como a inflamável defesa do pesquisador José Luiz da Mota Menezes sobre o “pernambucano” Nelson Rodrigues, rechaçando sem titubeios qualquer possibilidade de ele ser classificado como “autor carioca”. Igualmente imperdível é a emocionante participação da atriz Geninha da Rosa Borges, que lê os originais da peça Vestido de noiva, encenada pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), em 1955, com a própria Geninha no papel da protagonista Alaíde.

A Ocupação Nelson Rodrigues segue desvendando o jornalista. Dois birôs estilizados, remontando às jurássicas redações frequentadas por ele, guardam depoimentos em áudio e vídeo de companheiros de batente, como Otto Lara Resende. O ponto alto é a crítica à “objetividade jornalística” que invadiu os jornais a partir da profissionalização da área, na segunda metade do século 20, confrontada de forma irônica pelo próprio Nelson. Em viva-voz ele também explica o que o levou a escrever as deliciosas crônicas de A vida como ela é, e o que o motivou a encarnar o papel da escritora Suzana Flag, aquela cujo destino era pecar. A exibição termina visitando o dramaturgo, na parte mais tímida da mostra, talvez porque boa parte do giro constantemente flerta com essa face.

Assim como o paradoxal pensamento rodriguiano, a Ocupação Nelson Rodrigues é, ao mesmo tempo, concisa e abrangente, reparando um erro histórico de se tentar restringir como reacionário, obsceno ou polêmico um autor que, longe de ser um só, deveria ter seu nome conjugado sempre na terceira pessoa do plural, evitando, de quebra, que se concretize uma das máximas concebidas – quiçá temida – pelo próprio Nelson: a de que o morto já começa a ser esquecido no velório. 

ÁLVARO FILHO, jornalista, professor e autor de quatro livros, entre eles o romance policial Jornalismo para iniciantes.

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