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As mulheres abrigadas em Nelson Rodrigues

TEXTO Maria Lúcia Rodrigues

01 de Agosto de 2012

Imagem Mauricio Planel

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 140 | agosto 2012]

Consultório sentimental, Biblioteca das moças? Histórias moralistas, edificantes? Educação da sensibilidade feminina nos idos de 1940?

Tramas bem-escritas e bem-urdidas, cheias de suspense. Sensualidade quase resvalando no erotismo. Certamente, a aparência pode lembrar a Biblioteca das moças, mas se ali existia alguma intenção era a de deseducar a sensibilidade feminina conservadora. Isso num homem que, anos depois, nas suas memórias, confessava que sua intenção não era convencer ninguém e, sim, ser fiel ao que lhe parecia certo.

Nelson escreveu folhetins e consultórios sentimentais nos jornais dos Diários Associados e em Última Hora sob os pseudônimos de Myrna e Suzana Flag. Como escritora mulher, teve um sucesso estrondoso e contínuo. Suzana teve maior produção, prova de maior longevidade do trabalho de um jornalista que se “matava de trabalhar”. Myrna apareceu no Diário da Noite em maio de 1949 e lá ficou até o final do ano.

A mulher libertária. Falemos de Suzana Flag. Em Meu destino é pecar (publicado pela primeira vez em livro em 1944), ela já dizia logo de início, “O que defende uma esposa é o amor”. Entende-se que a defesa a que ela se refere é a do risco do adultério. Esposa mal-amada, conclui-se, poderia trair o marido. Antes, ela já havia colocado na boca de uma personagem: “Esse negócio que dizem por aí, que a mulher é que deve ser conquistada, é bobagem. Que nada!”.

Em outras muitas passagens do mesmo livro, ela descreve suas personagens como mulheres fortes e decididas. A fragilidade só aparece quando elas querem, sempre fazendo de conta que a iniciativa era dele. O desejo é tanto dele quanto dela. Mas quem leva a culpa (quem supostamente força o encontro) é ele. Ela, “frágil e sensível, se rende ao abraço, ao beijo, a não sei mais o quê. A autora apenas deixa entrever, incendiando decerto a imaginação de suas leitoras.

O que mais viria depois? Como não se identificar com a escritora Suzana Flag? Há milhares de anos, as mulheres utilizam, o tempo todo, estratagemas semelhantes. É claro que não se pode abstrair, das situações de dominação explícita ou implícita, o que Suzana não negava. O que ela fazia era dar voz às rebeliões surdas, bem-urdidas, sob o véu da submissão inconteste. E, ainda, elevava constantemente a autoestima de suas leitoras. “As mulheres enxergam muito mais que os homens.”

Em Escravas do amor, publicada em livro em 1946, na Coleção O Cruzeiro, Suzana, não satisfeita em subverter o ideário feminino, questiona a hierarquia social. Malu conta ao pai o episódio do assaltante e logo em seguida pede que o jardineiro, ferido ao defendê-la, venha morar na casa da família. O pai fica escandalizado e ela diz: “Que tem isso? E jardineiro por acaso não é homem, como o senhor, como o Dr. Meira?”. Fica evidente que Nelson/Suzana tem uma alma feminina, que observa profundamente e com extrema sensibilidade os desejos e os anseios das mulheres. Por admirá-las, estabelece cumplicidade e solidariedade imediatas com elas, mas isso não significa que aprove as condições a que eram submetidas as mulheres de seu tempo.

Volta e meia, ele/ela exagera a condição em que se encontravam as personagens, para, talvez, demonstrar-lhes o contrassenso de hipotecar suas vidas a homens que estavam longe de merecê-las. Dizia Noêmia, em Minha vida: “Quero um homem que me transforme numa escrava”. Seu ideal amoroso era a servidão absoluta diante do bem-amado. No final, Noêmia é abandonada por Aristeu, que prefere Suzana, muito mais rebelde que Noêmia, e esta última enlouquece, destino das mulheres que hipotecam toda sua autonomia.

Nelson/Suzana não simpatizava muito com seus personagens masculinos. Egoístas, pretensiosos, incapazes de compreender as mulheres. “Como todas as mulheres!”, generalizava, sem sentir o que havia de ingênuo nesse ódio contra um sexo inteiro. É o Dr. Carlos, em Escravas do amor, irritado com Lydia, completamente perdido, cego às tramas das mulheres que o cercavam.

O egoísmo e a pretensão masculina aparecem com bastante clareza, fria e objetivamente, em Myrna, a outra escritora abrigada em Nelson Rodrigues. Talvez mais moderna? Mais decidida? Não fazia tantos circunlóquios como Suzana Flag. Em A mulher que amou demais (1949), quando o pai de Lúcia diz à Paulo (o noivo) que não pode haver casamento, pois a filha perdera a razão, Paulo responde: “Mas na véspera do casamento? Logo na véspera do casamento?”.

Dir-se-ia que o trágico do fato não estava na loucura em si, mas na oportunidade.

Nesse romance, aparece a firme e clara determinação da mulher em não se sujeitar ao desejo da família e do homem. Lúcia diz à Paulo: “Vou lhe dizer o que acho. Se a noiva descobrir, de repente, que não ama seu noivo, deve desmanchar o casamento, até diante do juiz”. Outras passagens do mesmo livro mostram a observação sensível e crítica do mundo das mulheres e das relações conjugais e/ou amorosas.

Mas quero, por fim, fazer uma homenagem a esse escritor/essa escritora que sabia como ninguém chamar a atenção do distinto público, transcrevendo o “reclame” da coluna de Myrna. Em 16 de março de 1949, aparece um singelo anúncio no Diário da Noite: “E Myrna escreve! De amor também se morre, De amor também se vive. Brigou com seu marido? Que dirá Myrna?”. Uma semana depois, aparecia a coluna Myrna escreve!, que obteve um sucesso estrondoso enquanto durou. 

MARIA LÚCIA RODRIGUES, professora universitária e pesquisadora, filha de Nelson Rodrigues.

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