Criado como reação aos cânones antigos, focalizando a decadência da sociedade patriarcal e a emergência da sociedade urbana industrial, o romance de 30 operou pela reunião de topoi – imagens, formas, geografia do semiárido, modos de pensar, agir e sentir (migração, saudade), desigualdade social, cangaço, seca, flagelo – representados através de personagens típicos que denunciavam a sua condição humana. Com um discurso que buscou legitimar a identidade do Nordeste enquanto repositório da cultura brasileira, o romance regionalista dos anos 1930 teve uma exitosa propagação e recepção e alcançou o status de literatura nacional, tendo um papel influente na construção de um ethos brasileiro.
O encontro de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira pode ser visto como a junção de sons e imagens de uma dada localidade com a escrita de alguém que está ciente de processos socioculturais mais largos. Gonzaga não queria gravar Asa branca, argumentando que era “muito lenta, cantiga de eito, de apanha de algodão”. Humberto Teixeira o convenceu e, ante as galhofas que ocorreram durante a gravação, preconizou: “Tome nota, isso aí vai ser um clássico”.
O que Gonzaga estava dizendo, segundo me contou a sua irmã Chiquinha Gonzaga, é que “Asa branca é muito triste, melancólica, que ninguém ia dançar como aconteceu com a música Baião”. De fato, os versos de Asa branca não poupam melancolia: “terra ardendo qual fogueira...” , “braseiro”, “fornalha” (seca); “Deus do céu”, “tamanha judiação”, “São João” (cristianismo católico); “nem um pé de plantação/ por falta d’água perdi meu gado/ morreu de sede meu alazão” (seca, calamidade); “adeus, Rosinha”, “hoje longe muitas léguas/ nessa triste solidão” (sujeição, partida, saudade). Asa branca (1947) varreu o Brasil rapidamente, elevou Luiz Gonzaga à condição de astro da música nacional e se configurou como força centrípeta que manteve a obra desse artista situada no eixo simbólico calamidade-partida-saudade.
Nos anos 1950, no programa intitulado No Mundo do Baião, veiculado pela Rádio Nacional (encampada por Vargas), Humberto Teixeira, Zé Dantas e Luiz Gonzaga (e intérpretes convidados) vão ressaltar elementos cunhados no romance de 30, além de outros, como a valorização da moral religiosa, a distinção e a hierarquia sociais. O sucesso de Gonzaga não é apenas fruto do seu inegável talento. Todos esses signos de Nordeste vão se encaixar na necessidade de emblemas nacionalizantes do regime varguista, que almejava desmantelar os focos de insurgência então espalhados pelo Brasil e tocar em frente um projeto de modernização do país. A música e o rádio foram ferramentas fundamentais para as ações dessa área e Gonzaga entrou na agenda do governo da época.
Se, por um lado, o regime autoritário utilizou os signos regionais da sua música, por outro, Gonzaga utilizou a própria reputação e chamou a atenção de vários governos para o problema do empobrecimento material da região e o respectivo contraste com a sua riqueza cultural. Os reclamos desencadearam investimentos em irrigação e revitalização de áreas atingidas pelas secas. Atitudes como essas fizeram de Gonzaga um artista pioneiro em questionar a marginalização da cultura nordestina. Não à toa, Asa branca passou a ser cantada em muitos movimentos sociais e se tornou um símbolo de luta de nordestinos e de muitos brasileiros das demais regiões, como aqueles que comigo entoaram o canto de redenção gonzaguiano no Fórum Regional de Etnomusicologia.
CLIMÉRIO DE OLIVEIRA SANTOS, doutorando em Música e professor do Conservatório Pernambucano de Música.
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