Luiz Gonzaga era exatamente um desses casos. Acordeonista de indubitável talento, ele elaborou um universo simbólico e temático que alavancou a invenção de um novo gênero musical – o baião – cuja estruturação sonora narrava e difundia uma certa ideia de Nordeste. Em torno da sonoridade de sua sanfona e do seu peculiar canto, o ritmo sedimentou um imaginário que descrevia o sertão ou, mais especificamente, a saudade do sertão. Com esse pano de fundo, seus parceiros materializavam temáticas, histórias e refrões que se revestiam de uma ambiência centrada musicalmente no fole de mestre Lua.
Fole que, basicamente, se presta a duas inflexões ligadas à referida saudade do sertão. A primeira, que acentua o sofrimento da distância, é acionada pela execução do fole esticado, prolongando as notas e os acordes, tensionando o percurso de seu canto e da granulação de sua voz. É quando a “saudade dói”, as “vozes da seca” gritam ou quando o sertanejo se pergunta “pra que tamanha judiação?”. A segunda, festiva, é ouvida no suingue da articulação rápida de sua sanfona, jogando para a pista de dança de terra batida a sensualidade dos bailes desse mesmo sertão, visto de longe. É a sanfona da “sala de reboco”, sanfona que “funga” e mantém o baile até “o sol raiar”.
A sanfona de Luiz Gonzaga é a grande protagonista da invenção do baião, é a “sanfona do povo” – de um determinado povo, o “nordestino” – e é também o som de seu porta-voz, hábil performer da indústria da música. Por esse motivo, considero irrelevantes as dúvidas que pairam em torno das habilidades composicionais de Luiz Gonzaga, intensificadas pela justa homenagem que seus parceiros têm recebido (como Humberto Teixeira, Zé Dantas, João Silva, Miguel Lima, Zé Marcolino, entre outros). Segundo esses discursos, o sucesso de suas músicas era antes de mais nada uma elaboração composicional de seus parceiros, que Gonzaga moldava sonoramente. Na impossibilidade de medir a contribuição de cada um dos parceiros numa composição e sem negar, novamente, a participação estética decisiva deles, podemos notar claramente que toda a obra de Luiz Gonzaga parte de um mesmo um marco estilístico. Em torno de seu canto aberto, de seu sorriso (que molda a emissão das notas) e, principalmente, da sonoridade da sua sanfona, o artista elabora as temáticas relativas ao Nordeste e “inventa” um som para a região, povoando-a com o timbre aberto do fole.
Soma-se a isso outro aspecto difícil de quantificar ou mesmo de entender, que se associa a todo pop star: o carisma. A voz, o sorriso aberto, o figurino e o canto de Luiz Gonzaga estabeleceram na indústria da música uma referência simbólica e temática de nordestinidade, que era acionada por seus parceiros na elaboração composicional dos sucessos difundidos pelo artista.
Ora, tal universo foi uma construção autônoma de Luiz Gonzaga, que estabelecia uma espécie de filtro estilístico e temático, sonorizado com sua sanfona. Não é demais lembrar que foi esse o instrumento que possibilitou ao artista uma porta de entrada no mundo do disco e do show business. Nas capas de discos, nas introduções, acompanhamentos e nos temas de diversas canções, ela é onipresente em sua obra, encarnando o “som de Luiz Gonzaga”; ou, indo um pouco além, o som do próprio Nordeste.
Se Madonna ou Michael Jackson construíram suas performances midiáticas na conjugação de dança e canto, é possível afirmar que, muitas décadas antes, Luiz Gonzaga acionou a mesma ideia de artista multifacetado para elaborar em si mesmo um mito que encarnava toda uma identidade regional, fundindo seu canto com sua sanfona. Simbioticamente atados, cantor e instrumento – este “grudado” ao peito – constroem uma obra cujos parceiros talentosos souberam captar e traduzir em palavras e melodias: a obra do artista imortal, celebrado e festejado este ano em seu primeiro centenário. Ao som da sanfona!.
FELIPE TROTTA, doutor em Comunicação, professor, pesquisador do CNPq e músico.
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