Lançamento

Os 25 anos do Grupo Grial de Dança

Leia trecho de 'Poeira, sagrado e festa', de Maria Paula Costa Rêgo, obra a ser publicada pela CEPE Editora

TEXTO MARIA PAULA COSTA RÊGO

01 de Agosto de 2023

Jaflis Nascimento em A demanda do Graal dançado

Jaflis Nascimento em A demanda do Graal dançado

Foto HANS MANTEFFEUL/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Apresentação

Maria Paula Costa Rêgo

Poeira, sagrado e festa celebra os 25 anos do Grupo Grial de Dança, criado em 1997 pelo escritor Ariano Suassuna e pela coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo, no ensejo de pesquisar e criar uma dança contemporânea com cerne nas tradições populares de Pernambuco.

Nas páginas seguintes, diferentes textos e autores, comentarão a importância de “Ariano Suassuna com seu Movimento Armorial na intenção de criar uma arte erudita brasileira fundamentada na cultura popular”, a peleja do Grupo Grial “por modos de buscar uma comunicação entre o que não se comunicava”, como bem resumiram Carlos Newton e Helena Katz, e por fim, apresentaremos uma memória de 25 anos, que cobre o período de 1997 a 2022. Nesse espaço de tempo, o Grupo Grial passou por três fases distintas, e é a profundidade do mergulho no universo da tradição popular que define a qual das fases a obra coreográfica pertence. Como é usual numa pesquisa, é na aproximação com o objeto pesquisado que se dá a compreensão minuciosa dos elementos que compõem seu funcionamento e aspectos paralelos. Para avançar nas questões estéticas e de construção da nossa linguagem, a cada criação coreográfica, eu era impelida a me aproximar da brincadeira popular porque as respostas estavam na intimidade com aquele universo. Quanto mais adentrava, mais descobria um universo potente, autônomo e livre. Friso aqui que, ao criar o Grupo Grial, eu intuía o processo de aproximação e amálgama com a linguagem da dança tradicional como algo esteticamente possível. O que não imaginava é que seria necessária uma transformação de mundo, no tocante às visões estética, política e filosófica, para alcançar a riqueza que as brincadeiras populares, apontada por Ariano no momento da criação do Grupo Grial, poderiam me oferecer. A cada processo de criação, avançávamos na compreensão sobre o funcionamento da brincadeira popular – um jogo festivo com princípios básicos – e, por consequência, obtínhamos algumas respostas. Enquanto esse movimento ia se fazendo ininterruptamente entre uma criação e outra, a linguagem contemporânea de dança armorial se construía pouco a pouco. Isso se deu com o tempo, com o afinco, com a aceitação dos erros, com a cumplicidade entre os integrantes do Grial (afinadíssimos comigo, que ainda no início da primeira fase seguia uma bússola chamada intuição), com o olhar atento de Ariano Suassuna e, sem dúvida, com a generosidade de uma grande parceira, Olga Lustosa Costa Rêgo, minha mãe.

A palavra “intuição”, citada diversas vezes, é referente à maneira como fui me aproximando do objeto do estudo. Na primeira criação coreográfica, A demanda do Graal dançado, eu poderia ficar satisfeita em ter tido aulas no Teatro Arraial com o Mestre Salustiano, mas, quando iniciamos a criação da segunda peça, percebi que o Grupo precisava de mais aproximação para se descolar do passo e se expandir. E a solução não era ter mais aulas, mas frequentar mais as sambadas pelo interior. A cada passo dado intuitivamente, nascia a certeza do caminho a ser percorrido.

Na escrita dessas memórias, convidei artistas que participaram do Grupo Grial para cooperar. Escolhi criar equipes de acordo com as fases do Grial em que eles estiveram presentes. As equipes se dedicaram a escrever sobre estas fases e sobre as peças coreográficas dos respectivos períodos.

1. Para o alto, para o Reino e para o Sol, escrito por Kleber Lourenço com colaboração de Valeria Medeiros e Viviane Madureira, o texto rememora e analisa a primeira e mais longa fase (1997-2004), período no qual foram criadas seis peças coreográficas.

2. Mergulho na tradição popular, escrito por Mateus Araújo a partir de entrevistas com Aguinaldo da Silva, Aldene Nascimento, Emerson Dias e Seu Martelo. Nesta segunda fase (2005-2010), foram criadas quatro peças coreográficas.

3. Meu corpo espiralando se faz terreiro, escrito por Maria Paula Costa Rêgo. Nessa terceira fase (2011-2022), foram criadas três peças coreográficas e dois estudos inacabados.

Uma informação importante para leitura dos textos seguintes é compreender o uso dos termos “bailarino erudito” e “bailarino popular”, no contexto de um grupo Armorial. O bailarino erudito tem uma formação variada, a sua paleta é composta de conhecimentos diversos. O brincante tem formação na brincadeira, logo a sua paleta de conhecimento é aprofundada e específica. Muito importante salientar que não há aqui uma paleta melhor do que a outra, pois considero que a paleta da erudição evolui na horizontalidade, enquanto a da tradição popular tem sua evolução na verticalidade.

Registrar o processo de construção de linguagem do Grupo e dar voz, através dos testemunhos da nossa busca por uma dança com cerne na tradição popular, é transmitir às novas gerações de artistas da dança uma experiência artística concreta e os caminhos possíveis. A direção apontada por Ariano Suassuna nos levou a escolhas importantíssimas, e destaco duas delas: 1) afastar os cânones hegemônicos ligados à arte moderna e contemporânea, possibilitando ver e perceber a riqueza presente nas profundezas imemoriais do tempo evocadas tão perfeitamente nos corpos dos mestres e brincantes de tradição; 2) ser um projeto artístico tanto quanto político, e defender a riqueza, qualidade, criatividade, liberdade e autonomia do solo onde pisamos. Essas escolhas dão base, norte e dimensão à nossa caminhada.

Ao longo dos anos, fui estabelecendo junto ao Grupo Grial três regras básicas para desativar o modus operandi das maneiras do pensar e fazer hegemônico para a arte da dança: 1) ausência de hierarquia estética; 2) escuta profunda e delicada do outro; e 3) consciência de que as camadas do pensamento e da prática em dança se organizam e se instalam com o tempo. Assim, deve-se reconhecer a existência de um outro modo de mover, de pisar no chão como quem quica e reverbera, os padrões espirais e a riqueza de um mover-se em estado festivo, que, como pérolas que assentaram no corpo, tem a naturalidade adquirida na observação e no mover-se diário. O que o Grupo Grial realiza no campo da dança nacional são pensamentos e práticas específicas e ímpares.

Acredito ser importante nesta celebração, e numa rápida incursão no espaço-tempo, refazer o traçado dos pontos que me levaram à criação do Grupo Grial: portos onde ancorei meu corpo e adquiri sapiência e condições para encarar empreitadas futuras:

Porto I – Enila de Resende (BR) e Maria Fux (AR), mestras que me proporcionaram consciência do imbricado corpo e sua potente capacidade de se expressar, por meio da técnica de improvisação, dançar formas, texturas, qualidades, espaços e, entre espaços, dos fenômenos da natureza.

Porto II – Balé Popular do Recife. Em 1981, apresentada por Ariano Suassuna, como estagiária, me torno bailarina por sete anos: encontro com a cultura popular.

Porto III – Grupo Apsaras (nome dado pelo próprio Ariano porque dançávamos em espaços imprevisíveis), criado em 1982, onde se deu início, de forma intuitiva, a elaboração de métodos pedagógicos e de criação a partir da improvisação em cruzamento com a dança popular.

Porto IV – UFBA. Especialização em Coreografia, em 1988. Defendo, de forma prática, uma dissertação sobre elementos da tradição popular como base para criação de uma linguagem erudita de dança.

Porto V – França/Paris/Sorbonne VIII. Encontro com o Romance dA Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Por meio da literatura, Ariano me acendeu a faísca por uma dança armorial. Era 1989, e esse livro se torna alicerce na construção de um pensamento de dança que desemboca, 11 anos depois, na criação do Grupo Grial.

Porto VI – Grupo Grial de Dança. Em 1997, estava dada a largada da busca, na prática, por uma escrita estética armorial na dança. Essa busca foi sendo realizada por várias mentes e corpos a cada criação, que, elaborando respostas feitas em grupo, definiam os avanços desta construção.

Porto VII – Grupo Arraial – O Circo da Onça Malhada. Em 2007, Ariano Suassuna volta a ser secretário de Cultura no governo de Eduardo Campos (2007-2014). Nesse ínterim monta um grupo de artistas para acompanhar suas aulas espetáculos. Era composto de músicos, cantores e bailarinos e tinha Zoca Madureira, responsável pela música, Dantas Suassuna, diretor de arte, e eu, responsável pela coreografia. Seguindo o mesmo pensamento de quando o Grial foi criado em 1997, Ariano propôs que os artistas da dança no Grupo Arraial fossem, na sua maioria, brincantes. Esse período foi de grande contribuição na construção de linguagem do Grupo Grial.

Deixo aqui, para registrar os 25 anos de realizações do Grupo Grial de Dança, os avanços proporcionados por muitos artistas potentes, que, assim como eu, se interessam em carregar consigo um legado em movimento, um mover carregado de transformações, um foco que liga o horizonte ao profundo em encontros possíveis entre herança e contemporaneidade. O caminho não termina, a construção é contínua, as invenções estão sempre a principiar. O universo de quem pisa na terra e levanta a poeira ao dançar é inesgotável, e muito temos a avançar.


Seu Martelo e Maria Paula em Castanho sua cor. Foto: Marcelo Lira

Para o alto, para o Reino e para o Sol!

O sonho vivo
da dança armorial

Carlos Newton Júnior

Do ponto de vista da Estética, os gêneros artísticos podem ser compreendidos como meios dos quais os artistas se valem para materializar a sua intuição criadora. Nesse sentido, cada gênero, a rigor, tem uma matéria que o define e lhe atribui autonomia, e é explorando as potencialidades da matéria de sua livre escolha, sobre a qual deve possuir o necessário domínio técnico, que o artista procura realizar a sua obra. Parafraseando um grande pensador da Antiguidade, Plotino, o artista criaria a beleza ao imprimir a luz da forma sobre o obscuro e o informe da matéria.

A matéria da pintura, por exemplo, é a cor; a da escultura, o volume; a da literatura, a palavra; a da música, o som – e assim por diante. Não se pode realizar uma pintura sem cor; mas, no caso de uma escultura, a cor, a depender da vontade do artista, pode estar presente ou não, uma vez que não é a presença ou a ausência da cor que condicionará a existência da escultura enquanto tal. Não se pode falar, portanto, de superioridade ou inferioridade de um gênero artístico em relação a outro. Do ponto de vista estético, um poema, obra literária, possui tanto valor quanto uma edificação, obra arquitetônica. Sobre isso, aliás, são excelentes as palavras do arquiteto Vilanova Artigas: “Admiro os poetas. O que eles dizem com duas palavras a gente tem que exprimir com milhares de tijolos.”

A matéria da dança é o corpo em movimento. É através dos movimentos do corpo, devidamente integrados ao ritmo (de modo a se fazer, do corpo, expressão plástica e visual de uma música), que o coreógrafo nos possibilita experimentar uma emoção análoga a que sentimos diante de toda e qualquer obra de arte, arrebatando-nos do mundo real para nos fazer mergulhar num outro mundo, de sonho e de fantasia, onde as incertezas e as angústias da vida e do nosso estranho destino de condenados permaneçam momentaneamente suspensas.

Numa das mais belas passagens do romance Zorba, o grego, de Nikos Kazantzakis, o personagem que dá nome à obra, num momento de extrema felicidade, e por não dominar as palavras (“tenho muitas coisas para dizer, mas a língua não consegue”), expressa, através da dança, todo o seu júbilo:

Deu um pulo, os pés e as mãos viraram asas. Jogando-se para cima, pulando, ereto, sobre aquele fundo de céu e de mar, parecia um velho arcanjo revoltado. Porque essa dança de Zorba era toda desafio, obstinação e revolta. Dir-se-ia que gritava: “Que é que podes fazer comigo, Todo-Poderoso? Não me podes fazer nada, senão matar-me. Pois mata-me, eu nem me importo contigo. Descarreguei a minha bile, disse tudo o que queria: tive tempo de dançar e não preciso mais de ti!”

Vendo Zorba dançar, eu compreendia pela primeira vez o esforço quimérico do homem para vencer a gravidade. Admirava sua resistência, sua agilidade, seu orgulho. Na areia, os passos de Zorba, impetuosos e hábeis, gravavam a história demoníaca do homem.

Como bem afirma o narrador, Zorba, um homem do povo, na sua condição de “grande alma bruta”, disse tudo o que queria através do seu corpo. É que ele carregava, nos seus músculos, no seu sangue, nos seus ossos, nas suas entranhas, toda a tradição da sua gente, e, assim, cada gesto seu, cada passo, cada movimento, à medida que eram executados, pareciam aflorar das profundezas imemoriais do tempo, onde permaneciam adormecidos, para se materializarem, mais uma vez, naquele corpo vivo, que tinha o poder de evocá-los.

Pode-se dizer, de modo geral, que a criação artística tem seguido, ao longo do tempo, por dois caminhos fundamentais e antagônicos. Nas épocas, nos movimentos ou mesmo nos artistas de temperamento clássico, pautados pela racionalidade, pelo apego a regras de composição mais rígidas e por certa contenção da própria intuição artística em prol dessas regras, predomina certa preocupação em ressaltar a autonomia de cada gênero artístico em relação aos demais. Nas épocas, nos movimentos e nos artistas de temperamento anticlássico, ocorre justamente o inverso, ou seja, procura-se, de forma deliberada, a integração das artes, sem qualquer preocupação com ideias de autonomia ou pureza que venham a tolher, racionalmente, a explosão irrefreável da paixão criadora.

Toda a poética que conforma as realizações do Movimento Armorial, delineada por Ariano Suassuna, baseia-se no princípio da integração das artes, o mesmo princípio que fundamentou o nosso Barroco e encontra-se presente nas manifestações artísticas da nossa cultura popular. Não é à toa que referências ao Barroco sejam tão recorrentes nos textos de Suassuna sobre o Armorial quanto as referências à arte popular.


Máscaras de cavalo-marinho. Foto: Yêba B. Melo

Já no texto Arte Armorial, veiculado no programa do concerto que, junto com uma exposição de artes plásticas, lançou oficialmente o Movimento, a 18 de outubro de 1970, as referências ao Barroco se fizeram presentes. O concerto intitulou-se Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial, e, no texto, Suassuna explica, pela primeira vez, porque escolhera a palavra “armorial” para dar nome ao Movimento. Menciona, entre outras influências, as “pedras armoriais dos portões e frontadas do Barroco brasileiro”; “os toques de viola e rabeca dos Cantadores”, que lembrariam “o clavicórdio e a viola de arco da nossa Música barroca do Século XVIII”, para dizer, finalmente, que os artistas armoriais procuravam “fincar os pés nas raízes barrocas e populares do sangue nacional brasileiro”.

Para atingir o seu objetivo declarado de criar uma arte erudita brasileira fundamentada na cultura popular, o Movimento Armorial, no caso do teatro e da dança, recorre aos autos e espetáculos populares, em que o princípio da integração é mais do que evidente. Tomemos o exemplo do Bumba-meu-boi, aquele que seria, na opinião de Hermilo Borba Filho, o mais autêntico dos espetáculos populares nordestinos, pela menor quantidade de influências europeias que apresenta. Os brincantes que participam do espetáculo cantam, dançam e interpretam; no caso dos personagens humanos, usam véstias coloridas e máscaras, quando não uma maquiagem forte, feita à base de carvão ou farinha de trigo, que à máscara se assemelha; nos personagens animais (entre os quais a Ema, a Burrinha e o Boi) e fantásticos (a exemplo da Caipora e do Jaraguá), valem-se de fantasias imaginosas e bonecos — ou seja, todo o espetáculo é evidente arte de síntese, pois formado a partir da fusão de diversos gêneros artísticos.

Suassuna era um verdadeiro amante das artes, de maneira que todos os gêneros artísticos eram objeto de sua afeição incondicional. Enquanto pensador da cultura, compreendia as mais diversas poéticas e sabia avaliá-las na sua real dimensão. Mas era, inegavelmente, um artista de temperamento anticlássico. Destro em mais de um gênero, procurou integrar sua literatura em prosa e verso a seu trabalho como artista plástico, conseguindo resultados admiráveis. E, do ponto de vista do seu teatro, sempre afirmou que o seu texto deveria corresponder a um tipo específico de encenação, o qual, nas roupagens, nos cenários, na música e em tudo o mais, fizesse referência aos espetáculos populares brasileiros.

Como líder e mentor do Movimento Armorial, Suassuna terminou indicando caminhos para aquelas artes que, pessoalmente, não praticava, a exemplo da música e da dança. Pode-se dizer, assim, que ele foi o inspirador teórico – quando não coautor – de boa parte do que se entende, hoje, por música e dança armorial, um repertório riquíssimo de obras realizadas a partir de conjuntos musicais e grupos de dança que ele próprio criou ou cuja criação incentivou e patrocinou, no tempo em que exerceu cargos públicos na área da cultura.

Criado em 1997, em parceria com a bailarina e coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo, o Grupo Grial de Dança representou o coroamento de experiências que Suassuna iniciara em fins da década de 1950 (bem antes do lançamento oficial do Movimento Armorial, portanto), com o espetáculo Os Medalhões – sua primeira tentativa de realizar uma dança brasileira erudita a partir da recriação da nossa dança popular. Os Medalhões contou com roteiro do próprio Suassuna, música de Guerra Peixe e coreografia da professora de dança Ana Regina, e foi apresentado no Teatro de Santa Isabel, no Recife, a 6, 7 e 8 de novembro de 1959.

Nova experiência, mais bem fundamentada, veio a público em 1976, com a estreia, a 18 de junho, também no Teatro de Santa Isabel, do Balé Armorial do Nordeste, com direção e coreografia da bailarina Flávia Barros e cenário e figurinos assinados por Bernardo Dimenstein. A coreografia foi realizada a partir de roteiro de Suassuna e músicas de Guerra Peixe, Capiba, Antonio José Madureira, Antonio Nóbrega e Egildo Vieira, executadas ao vivo pelo Quinteto Armorial, do qual os três últimos eram componentes. O espetáculo contou, ainda, com a participação do Boi Misterioso de Afogados, sob a orientação do capitão Pereira. Vivenciava-se, já, a segunda fase do Movimento Armorial, a fase “Romançal”, iniciada em dezembro do ano anterior. Sobre o Balé Armorial, afirmou Suassuna, no texto do programa do espetáculo:

 

[...] somos brasileiros e nossa obrigação é tentar fundir, numa união de contrários e complementares, as duas principais raízes culturais das quais descendemos: a da tradição ibérica e mediterrânea – em alguns casos mais europeizada – e a da tradição popular que, no caso da dança e dos espetáculos populares do Nordeste, seria o equivalente de balés nacionais como o do Senegal ou o da Índia. [...] o nosso desejo é unir, dentro de nossas próprias fronteiras, a dança herdada da antiga “metrópole” com a dança nacional; ou melhor, para ser mais preciso: quando atingirmos o que realmente desejamos, trata-se de colocar a técnica tradicional a serviço da Dança nacional com a qual sonhamos – dionisíaca por um lado, hierática por outro, total, de festa, celebrativa e sagratória, na linha dos nossos extraordinários espetáculos populares.

Lembremos que, ao falar em tradição mediterrânea, Suassuna não exclui o norte da África – integrado, desde a mais remota antiguidade, àquela tradição. Além disso, nos espetáculos populares do Nordeste, os elementos da matriz ibérica encontram-se amalgamados aos das outras duas matrizes formadoras da cultura brasileira, a africana e a indígena, os quais, por sua vez, são quase sempre predominantes em relação aos da primeira. Seja como for, nos dois casos anteriormente referidos, Suassuna não se mostrou plenamente satisfeito. Não teria havido, segundo confessou a amigos mais próximos, a desejada integração do erudito com o popular, uma vez que a técnica e os passos do balé clássico terminaram predominando no resultado final.

Partindo dessas duas experiências principais e de outras delas decorrentes, o Grial aprofundou o mergulho no universo da dança e dos espetáculos populares, conseguindo promover, finalmente, a fusão do erudito com o popular com a qual Suassuna tanto sonhava. Isso só foi possível porque Maria Paula Costa Rêgo compreendeu que não há como se pensar, de fato, em hierarquia entre o popular e o erudito. Suassuna sempre afirmou, por exemplo, que J. Borges, um gravador popular, é tão importante para a cultura brasileira quanto Gilvan Samico, um gravador erudito. E um dos motivos da sua ruptura com a Orquestra Armorial de Câmera, na primeira fase do Movimento Armorial, foi a sua franca discordância em relação à visão do então regente da Orquestra, Cussy de Almeida, para quem a música armorial seria “a música que volta ao povo melhor do que veio”. Pois bem: ao mergulhar de cabeça no universo da dança popular, Maria Paula Costa Rêgo percebeu que o terreiro não era apenas palco improvisado, mas chão sagrado, e pôde, assim, desvencilhar-se de todo tipo de preconceito remanescente de sua formação em dança clássica para aprender, com os mestres da tradição, aquilo que lhe faltava para compreender melhor o seu próprio país.


Maria Paula e Ariano Suassuna em aula-espetáculo com o Grupo Arraial. Foto: Andreia Rêgo

Se, por um lado, a poética armorial reconhece no movimento do corpo a essência da dança, recusa-se, por outro lado, a trilhar o caminho de uma dança pura, de caráter essencial ou abstratizante, ressaltando, assim, o valor do espetáculo de dança como arte visual e também de síntese – a música, os figurinos, os cenários, o fundo literário ou narrativo etc. são elementos de composição que devem não apenas estar presentes, mas atingir um nível de integração à altura dos nossos espetáculos populares.

Os registros fotográficos dos espetáculos do Grial, aqui reunidos pela primeira vez, testemunham algo dessa integração – no caso, com as artes visuais. Além disso, os títulos dos espetáculos já revelam, de imediato, os elementos literários que lhes serviram de base e fundamento imagético, muitos dos quais extraídos do universo mítico e poético de Suassuna, tanto do seu teatro quanto da sua prosa de ficção.

A dança que o Grial realiza, portanto, será sempre mais dionisíaca do que apolínea, mais orgânica do que racional, não obstante seja também perceptível, nela, certo aspecto de natureza didática (como ocorre, a bem da verdade, em toda grande obra de arte), no que tange à visão que apresenta da nossa formação enquanto país e enquanto povo.

Big bang!

Helena Katz

Era 1997, e os estilhaços dessa importante explosão continuam por aí.

Ariano Suassuna (1927-2014) - escritor, dramaturgo, artista plástico, romancista, professor, ensaísta, advogado, poeta, secretário de cultura – sonhava com o florescimento de uma arte armorial, que brotaria do encontro da arte europeizada com a cultura popular nordestina. No caso da dança, caberia dar nascimento a uma “dança erudita brasileira”.

Na ocasião, essa proposta era pensada como o resultado de uma junção já exposta no seu nome, a do erudito com o brasileiro: bastaria misturar o balé estudado aqui, e que havia sido gestado na Europa, com as danças que os brincantes faziam nas feiras e nas festas populares, com os folguedos, os jogos, as cantigas, a poesia dos folhetos etc. E foram os diferentes modos de buscar uma comunicação entre o que não se comunicava que pavimentaram o percurso do Grial, que não cessou de testar as possibilidades de cumprir a tarefa que o inaugurou.

Acontece que o corpo, quando encontra uma informação, não a soma às informações já existentes nele. Ocorre uma espécie de contágio, que transforma tudo, tanto as informações antigas quanto as que vão chegando – ou seja, quando em contato, o corpo e a informação se transformam. Saber disso é muito importante porque dimensiona a complexidade da tarefa de fazer um corpo passar a encontrar com informações com as quais não tinha o hábito do convívio. No ambiente da dança, no Brasil dos anos 1970, erudito e popular identificam domínios distantes um do outro.

Quem desejasse se profissionalizar estudava balé, mesmo que debaixo desse nome estivessem reunidos saberes aproximados, mas nem sempre coincidentes. Assim, as danças que aconteciam fora dos teatros pareciam fazer parte de outro segmento; precisavam ser acompanhadas do adjetivo popular para deixar explícito que pertenciam a outra linhagem.

Vale considerar, ainda, a questão do tempo e da repetição. Como o corpo está sempre se transformando, se algum tipo de encontro for muito repetido e por muito tempo, essa informação tenderá a ganhar estabilidade e a ficar forte no corpo, sendo possível identificar quando isso acontece. Exemplo: um corpo que faz balé por muitos anos mostra isso na sua postura, nos seus gestos, no seu modo de andar e ficar de pé. O corpo sempre conta dele mesmo, do que o constitui. E, quando esse corpo, com esse tipo de treino, começar a estudar outras danças, sejam elas populares ou não, as novas informações vão começar a se emaranhar com aquelas que já ganharam muita estabilidade. Será necessário repetir muito e por muito tempo até que os “sotaques” típicos de cada dança comecem a esmaecer.

Sabendo disso, pode-se dimensionar a dificuldade, em 1997, em aproximar informações que não tinham o hábito do encontro. De um lado, o balé; distante dele, um conjunto vasto e variado de folguedos, de danças populares, de festas. Bailarino e brincante sequer faziam parte do mesmo ambiente e eram pensados a partir de preconceitos coloniais que, na época, não eram identificados assim. O bailarino, portanto, precisava de formação com especialistas para se tornar um profissional da dança, e o brincante se tornava brincante por nascer nos lugares onde as danças populares aconteciam e por aprender com os que as praticavam. A um era reconhecido um conhecimento especializado, mas ao outro era atribuída uma função “natural”, por herança ou vizinhança, o que impedia o reconhecimento de seu fazer como um conhecimento especializado.

Entre nós, essa conversa só pode seguir se trouxermos o peso do colonialismo para contextualizá-la, porque a condição de sermos um país colonizado é fundante da separação entre popular e erudito que aqui vicejou, e seus ecos ainda permanecem ativos. De partida, essas nomeações já pedem uma reflexão, uma vez que os distintos conjuntos de informações reunidos sob cada uma delas ficam homogeneizados, como se as tantas danças populares não fossem singulares e distintas, e como se não fossem muitos os balés etiquetados como um único “balé”.

Como se sabe, o colonizado tende a não reconhecer o que produz como um saber equivalente ao do colonizador. Assim, não por acaso, aprender o balé sistematizado como uma técnica na primeira escola oficial de dança – a Academia Real de Dança, fundada pelo rei Luís XIV, na França do século XVII (1661) – era condição indispensável para formar um bailarino. No entanto, como o seu ensino não ficou restrito às poucas instituições formais que foram criadas, tendo contado com a transmissão oral dos profissionais que aqui se estabeleceram, a ausência de controle institucional favoreceu a legitimação de modos pessoais de lidar com a técnica do balé.

Evidentemente, alguns princípios se mantiveram, permitindo uma coesão em torno da nomeação de “balé”, sustentando a sua difusão e facilitando que se tornasse uma referência hegemônica. Por muito tempo, entre nós, o balé foi garantido como a técnica indispensável para os que desejavam se profissionalizar em dança, sem levar em consideração o tipo de dança no qual o bailarino desejava se especializar. Era o colonizado fazendo karaokê da voz do colonizador como garantia do que deveria ser almejado. Perfurar esse contexto com uma proposição como a que Ariano Suassuna formulou só poderia mesmo ter a força de uma explosão do que estava posto. Mas conseguir realizá-la demandaria muita experimentação e muita repetição ao longo do tempo.

A oportunidade de olhar para os primeiros 25 anos do Grial abre uma perspectiva única, que permite reconhecer, nas diferentes ênfases testadas, a continuidade de um processo original e autoral. É necessário conhecê-lo para adensar as reflexões sobre a possibilidade/necessidade de formular acordos entre informações que mal se comunicavam, e que a sua trajetória aproximou, favorecendo distintas maneiras de elas se contaminarem e irem inaugurando corpos e danças.

O convívio do brincante com o bailarino não se restringe ao que diz respeito aos movimentos específicos de cada um. Afinal, treinar um movimento não é apenas se dedicar a realizá-lo na sua plenitude técnica. O movimento traz também uma leitura de mundo. Quando se repete um tipo de movimento que é sempre equilibrado, controlado, previsível e distribuído igualmente pelos lados do corpo, esse corpo vai sendo educado a ler o mundo como sendo mesmo equilibrado, controlado, previsível, em igualdade. Aproximar um corpo de movimentos com características diferentes daquelas que ele habituou a repetir mexe também com os seus entendimentos de mundo e, consequentemente, de dança.

Nesse sentido, o Grial se tornou uma escola não formal de experimentações preciosas, passando a alfabetizar o Brasil de viés colonial – que se entendia como “de formação erudita” e não reconhecia a força nefasta do colonialismo interno que fortalecia o peso do Sudeste e enfraquecia o das outras regiões. Essa outra forma de manifestação colonial também precisa ficar exposta para que se possa desenhar com mais precisão o tipo de contribuição feita pelo Grial. Ao promover diferentes modos de encontro entre o que estava apartado, o Grupo foi abrindo espaços de contaminação poderosos, que terminaram irrigando todas as danças, e não somente elas. Sim, porque, uma vez que se coloca uma informação no mundo, ela segue encostando em outra, e mais outra, contaminando e sendo contaminada, em um fluxo contínuo e inestancável, que aduba o ambiente com as suas transformações.

Quando brincantes e bailarinos se aproximam, são os seus saberes específicos que se encostam e se contaminam, em uma troca que, uma vez iniciada, permanecerá acontecendo. Outros tipos de ambiente serão gestados. Assim, como corpo e ambiente existem em codependência, quando é um outro ambiente que vai surgindo, é também um outro corpo que vai sendo produzido.

Temos muito a agradecer a cada uma das propostas que o Grupo Grial realizou em suas criações. É somente no arco distendido do tempo das iniciativas que perduram que se pode educar o olhar para identificar o que não se percebia. É urgente reconhecer que o emaranhado da trama tecida pelo Grial nos educa para lidarmos com a complexidade do que se reúne no campo da dança. Que este livro colabore nessa direção.

Longa vida ao Grial!

MARIA PAULA COSTA RÊGO, coreógrafa e fundadora, junto ao escritor Ariano Suassuna, do Grupo Grial de Dança. Possui Licenciatura em Artes Cênicas pela UFPE, Especialização em Dança/ Coreografia pela UFBA e Licenciatura em dança pela Sorbonne Paris VIII. Assina direção de espetáculos de diversas linguagens: música, circo, dança e teatro.

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