Curtas

Análise sobre masculinidades na obra do Magiluth

TEXTO Márcio Bastos

01 de Agosto de 2023

Cena das peça Aquilo que meu olhar guardou para você, de 2012

Cena das peça Aquilo que meu olhar guardou para você, de 2012

Foto BERNARDO CABRAL / DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 272 | agosto de 2023]

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Centenas de pessoas formavam uma grande fila em frente ao Teatro Santa Isabel, espaço de artes cênicas mais tradicional do Recife, em uma noite de terça-feira de maio deste ano. Elas aguardavam para assistir à primeira sessão na cidade de Miró: estudo nº 2, trabalho mais recente do Magiluth, que atualmente é formado por Lucas Torres, Giordano Castro, Bruno Parmera, Pedro Wagner, Mário Sergio Cabral e Erivaldo Oliveira. Os ingressos se esgotaram poucas horas após o coletivo anunciar a apresentação nas redes sociais, feito que chama a atenção diante do cenário fragilizado das artes cênicas nas últimas décadas, e ressalta o fenômeno representado pelo grupo pernambucano, não só no seu estado natal, mas no Brasil.

Entender o sucesso do Magiluth exige não só olhar para a complexa e instigante poética do grupo, mas também para a história recente do país, não apenas nas artes, como também na política. É este caminho que o jornalista e escritor Mateus Araújo traça no livro Masculinidades na cena do Magiluth: ensaio sobre os espetáculos Aquilo que o meu olhar guardou para você e Viúva, porém honesta (Sesc Pernambuco, 200 páginas, R$ 50). Resultado da pesquisa de mestrado em Artes Cênicas realizada pelo recifense na pós-graduação da Universidade Estadual Paulista, sob a orientação da professora e atriz Lúcia Romano, a obra se debruça sobre a complexidade do projeto do coletivo e o insere em discussões latentes da contemporaneidade.

Durante sua atuação como setorista de teatro no Jornal do Commercio, onde fundou o blog Terceiro Ato, dedicado às artes cênicas, Mateus Araújo teve a oportunidade de acompanhar um momento decisivo da trajetória do Magiluth, fundado em 2004, mais especificamente o ano de 2012, quando as peças Aquilo que o meu olhar guardou para você, de dramaturgia própria, e Viúva, porém honesta, baseada na obra de Nelson Rodrigues, estrearam. Para o jornalista, nesses trabalhos a pesquisa de linguagem do grupo consolida alguns de seus aspectos mais latentes, como a aplicabilidade de ferramentas do teatro pós-dramático e performativo, a exemplo do jogo como elemento de construção da dramaturgia e o esmiuçamento da teatralidade, com a justaposição entre o real e o ficcional e as tensões das relações interpessoais.

Cena da peça Viúva, porém honesta, de 2012. Foto: Renata Pires/Divulgação

“Para mim, Aquilo que o meu olhar guardou para você define a estética e a poética cênicas do Magiluth, e Viúva… é a concretude, a aplicabilidade perfeita delas. As duas peças são construídas no jogo característico do grupo e da cena contemporânea, que borra o limite do real e do imaginado. Há uma relação de muita parceria estabelecida pelos atores e pelo público. São espetáculos que prezam pela narratividade, enfatizando as convenções da cena e expondo ‘o fazer’ em detrimento do ‘representar’. Também são montagens que usam fundamentalmente o teatro a seu favor, no sentido de metalinguagem, de brincar com a própria arte. E tudo isso é uma identidade enraizada nas obras do Magiluth até hoje”, reflete o pesquisador.

Em 2016, Araújo publicou no Terceiro Ato o ensaio fotográfico e textual A desconstrução da masculinidade, no qual convidou atores, entre eles os integrantes do Magiluth, cujos trabalhos atravessavam questões ligadas à identidade de gênero e à diversidade sexual. O interesse na poética do grupo, e sua inserção cada vez maior no cenário nacional, levou o jornalista a aprofundar suas reflexões, desta vez na academia. Realizada em um contexto conturbado para o Brasil, com a ascensão de Jair Bolsonaro e do conservadorismo, a pesquisa lança luz sobre os trabalhos do Magiluth sempre inserindo o grupo no seu tempo, mas também colocando-o em diálogo com outras experiências do teatro pernambucano que tensionaram representações de masculinidades, como o Vivencial, a Trupe do Barulho, o Angu, entre outros.

“A ideia da pesquisa era não se prender a uma historiografia nem à teorização do teatro. O que eu queria era mesclar tudo isso a uma análise da cena, um ensaio crítico que pudesse ser interessante tanto para pesquisadores e artistas quanto para o público em geral. Olhar uma obra por uma perspectiva temática e observar ali as nuances dos seus criadores e do contexto. Acredito que essa é a principal característica do livro. Além disso, é também um dos primeiros livros sobre o Magiluth, e que, mesmo não sendo uma biografia, materializa parte da história deles. Nós vimos o Magiluth crescer ao longo dos anos e se tornar esse grupo tão importante e emblemático, que contribui decisivamente para o deslocamento de uma centralidade da criação cênica do Brasil”, explica Mateus.

Com prefácio assinado pela professora, atriz, dramaturga e diretora Luciana Lyra e orelha do professor, advogado e ativista no campo dos direitos humanos Renan Quinalha, o livro apresenta a aprofundada pesquisa acadêmica de Mateus de forma instigante e fluida, amparada por referências de diferentes campos de pesquisa, como o Teatro, a Sociologia e a Comunicação, e é ilustrado com imagens feitas pelos fotógrafos André Nery, Renata Pires, Thiago Liberdade, Maurício Cuca, Bernardo Cabral e Victor Jucá. A obra cumpre um importante papel de registrar um momento crucial da história do Magiluth e oferece a oportunidade de refletir, também, sobre a inquietação do coletivo, que continua se desafiando estética e tematicamente, como evidenciam seus trabalhos mais recentes, entre eles os experimentos virtuais criados durante a pandemia.

“O Magiluth se tornou um fenômeno do teatro brasileiro de fora do eixo sudestino por vários fatores. Além da sua qualidade cênica, que, obviamente é primordial, também é fruto de um momento histórico importante do Brasil, de maior fruição das produções culturais do país, o que permitiu uma maior diversidade de vozes, tanto geograficamente quanto na formalização dos mecanismos de apoio público e democratização dos investimentos. As políticas voltadas para a economia criativa durante os dois primeiros governos de Lula (PT) foram fundamentais para impulsionar esse processo, contribuindo, entre outras coisas, para a circulação de companhias teatrais e a ampliação das opções de financiamento para a arte brasileira. Assim, o Magiluth, e outros grupos do Nordeste, puderam circular, ampliar seu alcance e visibilidade e estabelecer intercâmbios importantíssimos”, enfatiza.

MÁRCIO BASTOS, jornalista cultural

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