Ensaio

Breve biografia de um bairro polifônico

Depois de percorrermos o Bairro do Recife, na edição de março, os de Santo Antônio e São José, em abril, agora chegamos ao continente, ao terceiro povoamento da cidade, o Bairro da Boa Vista

TEXTO HOMERO FONSECA
ILUSTRAÇÕES JEIMS DUARTE

02 de Maio de 2023

Ilustração Jeims Duarte

[ed. 269 | maio de 2023]

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A Boa Vista é o continente. Território parcialmente assentado nos aterros acumulados a partir do século XVII. Terra roubada às marés, aos mangues e aos rios.

Desde antes da chegada dos europeus e da mutilação da Mata Atlântica, o ar da planície era pleno de sons e alguma fúria: o rugir das onças, o miado dos maracajás, o guincho dos macacos, o concerto dos sabiás, araras, arapongas, concrizes. Em certas épocas, sapos e rãs duetavam em contraponto, cigarras insolentes emitiam seu canto furioso, as muriçocas agitavam as asas freneticamente, num zumbido infernal.

Escutavam-se as vozes dos nativos, nos rituais energizados pelo cauim e nos gritos dos guerreiros e gemidos dos feridos em desavenças frequentes, como a Guerra do Caju, quando os tapuias, famintos devido às secas periódicas, desciam dos sertões para disputar com os tupis litorâneos as nutritivas castanhas.

Tentaremos acompanhar a evolução do bairro, caminhando por suas ruas, com os ouvidos atentos a essa polifonia em camadas de história.

***

Até meados do século XVII, a região quase não era habitada: havia apenas um punhado de casas ao redor das igrejas de São Gonçalo (1716) e da Santa Cruz (1725). Tudo começou a mudar quando o alemão Maurício de Nassau, governador das possessões holandesas no Brasil, resolveu erguer uma casa de veraneio, de frente para o continente. Encantado com a paisagem do outro lado do rio, batizou seu novo palácio de Schoonzicht, que sofreu uma alteração semântica (visão limpa > bela vista > boa vista) e acabou batizando o bairro nascente.

Schoonzicht soa como uma nota gutural na polifonia que caracterizaria o bairro ao longo do tempo, tecida por acordes de falares diversos: nativo (siri, Capibaribe), lusitano (mazombo, raparigas), africano (bunda, moleque, quitanda), iídiche (shul, behatzlacha!), francês (liberté-frivolité), gírias (visse, painho, mainha), expressões importadas do inglês (tramway, big, games, startup) e canibalismos linguísticos (maxambomba, bróder, boyzinha).

Ao que se acrescentaram vozes do dia a dia, no ritmo de cada época: cantorias dos pretos em sua labuta, cânticos de missas e novenas, gracejos entre escravizados e escravizadas nos chafarizes, risos nas repúblicas estudantis, serenatas em noites de lua, pregões dos mascates (Eita jabuticaba! Já caiu cajá!).

E tiros de fuzil, matraquear de metralhadoras, ordens de comando, praguejar de soldados, gemidos de feridos, nos movimentos republicanos ou separatistas de 1817, 1824, 1848. Na Revolução de 1930, o bairro, onde havia numerosos quartéis – depósito de materiais da 7ª Região Militar, na Soledade, e sede do 21º Batalhão de Caçadores, na Praça Adolfo Cirne –, foi cenário de depredações e batalhas sangrentas.

Havia silêncios cíclicos impostos pela liturgia católica: na Sexta-feira da Paixão, trens não apitavam, campainhas dos bondes emudeciam, evitavam-se barulhos dentro das casas (até os anos 1960, nessa data e no Dia de Finados, as emissoras de rádio só tocavam música clássica, levando o povão a fazer a associação macabra: “música de defunto”). Esses intervalos foram preenchidos pelos hinos das Assembleias de Deus nos bairros populares e o baticum do funk nos bailes periféricos. Os sabiás se tornaram raros, a onça foi escorraçada e, nas vias asfaltadas de hoje, se impõem o rugido dos automóveis e o sirenar das ambulâncias e dos camburões.

A Boa Vista é o mais polifônico dos bairros do Recife.

A OESTE, FICAVA O ÉDEN
Por três séculos, a Boa Vista era só uma paisagem e seus sons, um vale verdejante, circundado por morros mansos. O Capibaribe era mais largo: a margem leste ficava onde hoje é o Convento de N.S. do Carmo, em Santo Antônio, onde Nassau construíra seu palácio; e a margem oeste chegava até a atual Rua do Hospício, onde hoje funciona o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. Cartão-postal da cidade, a Rua da Aurora – com seus casarões preservados margeando o Capibaribe – foi toda erguida sobre a calha original do rio. O furor em aterrar produzia seus ruídos: a fricção de pás e picaretas sobre a terra, as ordens berradas pelos capatazes e as conversas, imprecações e cantos dos trabalhadores braçais. E ouvia-se todo o tempo o som surdo dos pilões socando o barro na construção de casas de taipa.

Somente no século XIX a Boa Vista começou a ser habitada de fato, recebendo quem não cabia em Santo Antônio. Foi quando os aterros avançaram em todas as direções, engolindo mangues e margens do Capibaribe. Nos primeiros decênios do século XIX, a Rua do Aterro já estava bordada de casas e sobrados. Em poucas décadas, batizada de Rua da Imperatriz Tereza Cristina, seria o esplendor comercial do Recife, ao lado da Rua Nova.

Entre 1809 e 1820, o inglês Henry Koster morou boa parte desse tempo no Recife e descreve a Boa Vista, logo em seu primeiro contato, no livro Viagens ao Brasil, publicado em Londres. Nele, descreve a rua principal como “formosa e larga” e o restante pontilhado por casas pequenas, intercaladas por terrenos baldios. Chamam sua atenção “as numerosas residências de verão dos abastados habitantes da cidade”: casas pequenas, asseadas e brancas, de andar térreo, com jardins na porta dos flancos, plantados de laranjeiras, limões, romãs e outras fruteiras, algumas cercadas parcialmente por muros baixos, mas a maioria defendida por cercas de pau. Anota a movimentação de canoas no rio, transportando gente e mercadorias. Diz que o aspecto das ruas é sombrio pela ausência de mulheres, exceto as escravizadas. E registra os casebres, esparsos, onde moravam escravizados libertos.

Coincidentemente, em 1821 – um ano após a morte de Koster – chegava ao Recife sua compatriota, a escritora Maria Graham, que, no livro Diário de uma viagem ao Brasil, revela-se deslumbrada. Ela, que chegou a atuar de mediadora entre o almirante Thomas Cochrane, a serviço do governo imperial, e os rebeldes da Confederação do Equador (1823-1824), anotou poeticamente sobre a paisagem que conheceu em constantes cavalgadas:

Não pode haver nada mais belo no gênero do que o vivo panorama verde, com o largo rio sinuoso através dele, e que se avista de cada lado da ponte, e as casas particulares, a maioria das quais com seu jardim. (...) Ao voltarmos pela Boa Vista encontramos muita gente gozando como nós o ar livre, e vagueando sem ter o que fazer diante dos reflexos das casas brancas e das árvores que se balançavam dentro d’água, enquanto os vagalumes, voando de arbusto em arbusto, pareciam fragmentos de estrelas descidos para adornar o luar”.

Com sagacidade antropológica, registrou que, na Boa Vista, os conventos, as igrejas e o Palácio do Bispo “dão um ar de importância às habitações muito elegantes em torno deles”.

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Os Oitocentos foram anos frenéticos, época de otimismo e invenções. Das Europas e América do Norte sopravam os ventos da modernidade mecânica. As elites recifenses procuravam ajustar a cidade aos novos tempos.

No extraordinário Arruar, o nunca assaz louvado Mário Sette relaciona:

Em 1840, o Bairro do Recife tinha 1.893 habitantes; Santo Antônio, 4.300 habitantes; Boa Vista, 3.173 habitantes, e Afogados, 2.061 habitantes. Em 1846 inauguravam-se os chafarizes da praça e da subida da Ponte da Boa Vista, com água trazida pelo aqueduto do Açude do Prata, em Apipucos. Festa na Boa Vista. Outra festa no dia 8 de agosto de 1859, início da iluminação a gás na Rua da Cruz e Rua da Boa Vista.

A Rua da Imperatriz coalhava-se de sobrados, com comércios no térreo e residências nos andares superiores. Surgia o Caminho Novo, depois Rua Esperança, Rua Formosa e Avenida Conde da Boa Vista. Na Soledade, os bispos tinham um sítio de recreio. Novas praças, novas pontes. Catolicamente, o bairro contava com sete igrejas e seis capelas e seus sinos badalantes. E, na esfera profana, se abancavam estúdios fotográficos, ateliês de modistas francesas e discretos salões de beleza.

Whisky, sandwich, goaaaaaaal! Sonoridades britânicas foram adicionadas à sinfonia recifense no século XIX, quando a capital pernambucana foi invadida pelos ingleses. Desde a abertura dos portos brasileiros, em 1808, eles ganharam sucessivas concorrências públicas e passaram a explorar serviços bancários, de transportes (trens e bondes), eletricidade, telégrafo e oxigênio e a atuar no comércio exportador. Nomes como Western Telegraph, Pernambuco Tramways and Power, Great Western Railway, Boxwell & Cia e White Martins se tornaram familiares aos ouvidos pernambucanos. E criaram hospital, clubes (introduziram o futebol por aqui), cemitério e igreja. Os trabalhadores do porto cantarolavam uma modinha: “Não se pesca mais de rede/ não se pode mais pescar/ que já soube da notícia/ que os ingrês comprou o mar.”

A maioria dos gringos preferia morar nos subúrbios, como Ponte d’Uchoa, Parnamirim, Apipucos. Na Boa Vista, construíram a Holy Trinity Church, em 1838, bem na esquina da Rua da Aurora com a Rua Conde da Boa Vista (onde hoje está o Cinema São Luiz), chamada pelo povo de “a igrejinha dos ingleses”. O primeiro pastor anglicano chamava-se Charles Adye Austin, morador, como outros compatriotas, numa transversal da avenida, que passou a ser chamada Beco do Inglês e depois Rua Padre Inglês.

A igrejinha durou mais de um século e só foi demolida nos anos 1940, quando a Rua Conde da Boa Vista foi alargada e virou avenida. Os ingleses se foram quando os serviços públicos foram nacionalizados, mas deixaram sua marca em expressões, costumes (o Recife é o maior consumidor de uísque no Brasil) e em instituições como o ocioso Cemitério dos Ingleses, três paróquias anglicanas e espaços sociais e esportivos, como o British Country Club e o Caxangá Golf Club.

A sonoridade dos nomes de ruas da Boa Vista foi imortalizada no muito célebre poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira, nascido na Rua da União, nº 263:

Rua da União... Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/ Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)/ Atrás de casa ficava a Rua da Saudade.../ ... onde se ia fumar escondido/ Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

AS DUAS BOA VISTA
Existem duas Boa Vista: a antiga e a moderna.

A antiga, nascida ao redor do eixo da primeira via do bairro, a Rua do Aterro, hoje Rua da Imperatriz, se expande até a comunidade dos Coelhos e corresponde, em boa parte, ao chamado Sítio Histórico da Boa Vista. É o pedaço meio invisível do bairro, mais pobre, menos assistido – repetindo o padrão de desigualdade vigente no Brasil. Constata-se aí o círculo vicioso: é pobre porque não recebe investimento, não recebe investimento porque é pobre. (Os proprietários das casas evitam gastar nelas por falta de retorno; governos priorizam áreas mais ricas, pelo poder de pressão dos moradores e pela sua visibilidade, inclusive na mídia).

A Rua da Imperatriz é a síntese. Por mais de um século – até os anos 1970 – formou, com a Rua Nova, à qual se liga pela Ponte da Boa Vista, o corredor comercial mais sofisticado do Recife. Sobrados geminados, de dois, três e quatro pavimentos, perfilavam-se soberbos de cada lado da via de 300 metros, o térreo ocupado por lojas de luxo, cafés, livrarias, estúdios fotográficos, ateliês de modistas, consultórios médicos, restaurantes, padarias. No primeiro andar, funcionários desses estabelecimentos; nos andares mais altos, comerciantes, fazendeiros, políticos, a elite da época. No sobrado nº 147, nasceu, em agosto de 1849, o abolicionista Joaquim Nabuco, de família aristocrática.

Impactada pela deterioração geral do centro da cidade, a Imperatriz, nas últimas décadas, virou ponto de comércio popular e agora parece marchar para se tornar uma rua morta. A maioria dos sobrados não têm mais moradores nos andares superiores e cerca de metade estão com as lojas do térreo fechadas. As fachadas são um festival de placas de VENDE-SE e ALUGA-SE.

Nela, encontramos duas sobrevivências espantosas: a Padaria Imperatriz, fundada por uma família portuguesa em 1897, famosa por seus pães doces em forma de tartaruga, jacaré e siri; e a Livraria Imperatriz, inaugurada em 1930 pelo imigrante judeu Jacob Berenstein, e que se segura como elo de uma rede de mais quatro lojas, todas dentro de shopping centers. Seu atual administrador, Jacob Berenstein Neto, num tom alarmista, faz uma previsão sombria: “Se nada for feito, vai fechar tudo. A rua vai acabar”.

Ele e os comerciantes que ainda resistem reivindicam da prefeitura a inclusão da rua no Programa Recentro (que até agora mira apenas os bairros do Recife e Santo Antônio), que oferece incentivos fiscais a quem já está estabelecido e aos que quiserem se estabelecer.

A Imperatriz desemboca na Praça Maciel Pinheiro (Praça do Aterro, Praça da Boa Vista), batizada por último em homenagem ao jornalista abolicionista Luiz Ferreira Maciel Pinheiro. Seu jardim, seus bancos e o chafariz gongórico, celebrativo da nossa vitória cruel na Guerra do Paraguai, continuam razoavelmente preservados. Nos arredores, continua de pé, funcionando, o Teatro do Parque; mas fecharam, em épocas distintas, o badalado Hotel do Parque e o Hotel São Domingos – que no auge recebia artistas e futebolistas famosos, como Pelé, Othon Bastos e Roberto Carlos. Na esquina da Travessa do Veras, o sobrado de nº 347, onde morou Clarice Lispector, está se deteriorando. Na casa, uma plaquinha desbotada registra a moradora ilustre. E, na praça, a escritora é uma estátua cercada de pombos por todos os lados.

Por sinal, a praça era o local de encontros da segunda leva de judeus no Recife. A primeira, dos sefarditas, durante a ocupação holandesa no século XVII, foi embora temendo a Inquisição, após a retomada dos portugueses. O novo fluxo migratório, dos asquenazes vindos do Leste Europeu, chegou em ondas do início do século XX até as vésperas da Segunda Guerra Mundial, fugindo do nazismo. Sua saga está contada pela arquiteta urbanista Rosa Ludermir, na dissertação de mestrado Um lugar judeu no Recife, de 2005, em vias de se tornar livro.

Os imigrantes judeus escolheram a Boa Vista pelo baixo preço dos aluguéis, boa malha de transportes e localização estratégica (a meio caminho entre o centro e os subúrbios, ou seja, entre os fornecedores e a clientela). Muitos se tornaram mascates (klientelshik), como Pedro Lispector, pai de Clarice. E, ao prosperarem, se estabeleciam com lojas de confecções, sapatos, joias, móveis, relógios e livros, como Jacob Berenstein, da Livraria Imperatriz. Dona Bertha Nutels, mãe do famoso médico e indigenista Noel, fez da casa, à Rua Gervásio Pires, 234, uma pensão, onde se hospedaram Rubem Braga e Capiba.

Os judeus se concentraram no polígono entre a Rua da Imperatriz /Rua da Glória e Cais José Mariano/Visconde de Goiana e as ruelas paralelas e transversais. Em muitos casos, vizinhos quebraram os muros dos quintais, estreitando o contato entre as famílias. Fundaram escolas, sinagoga, clube, centro assistencial, biblioteca, teatro iídiche e até a Cooperativa Banco Popular Israelita de Pernambuco, em 1932. Nessa Boa Vista antiga, falava-se o iídiche nas ruas, nas escolas primárias, nas casas judias (Behatzlacha! – Boa sorte!, Amol iz gueven – Era uma vez, Un vu bistu gueven? – Onde você esteve?), aportando novos acordes à polifonia do bairro.

Cultivavam suas tradições, em meio à solidariedade e desavenças. Apesar da resistência velada dos católicos conservadores – que associavam o povo hebreu a comunismo e pecado –, a comunidade judaica tratou de se integrar à sociedade local. Como flagra Rosa Ludermir em seu trabalho acadêmico:

Em 23 de setembro de 1939 (um sábado), a Rua da Imperatriz fechou pelo Yom Kippur (o dia mais sagrado do calendário judaico). Em dezembro do mesmo ano (uma 2ª feira), fechou para as celebrações católicas do Natal. São os judeus brasileiros.

A partir dos anos 1970, a comunidade dispersou-se: começara a lenta degradação do centro da cidade e a segunda geração foi morar em bairros mais condizentes com novas exigências de moradia. Mas deixou marcas na memória coletiva da própria comunidade e da sociedade como um todo. Além de lojas em pleno funcionamento, como óticas, relojoarias e a heroica Livraria Imperatriz e a Sinagoga Israelita do Recife, fundada em 1926, desativada, mas que se mantém de pé, numa casa estreita na Rua Martins Júnior, ostentando a Estrela de David na fachada.

***

A antiga Boa Vista é metade desolação, metade efervescência.

A parte mais degradada exibe um rastro de abandono, com sobrados em ruínas, pichados e com marcas de incêndio, calçadas despedaçadas, sujeira e insegurança. Essas ruas desvalorizadas são ocupadas por uma população em parte flutuante e cada vez mais empobrecida. É justamente nessa parte onde se delimita o Sítio Histórico, de valor arquitetônico e documental, ameaçado de desaparecer.

Aí sobrevive, sem alarde e a duras penas, a baixa economia das vendinhas malsortidas, das oficinas de conserto de tudo, dos depósitos de lixo reciclável e sucata de eletrodomésticos, dos ferros velhos, das revendas de água mineral, dos estacionamentos, das borracharias, dos ateliês de artistas proletários, dos quartos sublocados e pensões baratas.

A moribunda Rua da Matriz, ligação da Rua Velha à Rua da Imperatriz/Praça Maciel Pinheiro, entre seus poucos sinais vitais perceptíveis, exibe a indefectível Casa do Fardamento e o improvável Motel Matrix, que oferece “tendas árabes” e “quartos climatizados”, a partir de R$ 40,00. O famoso sebo Brandão não está mais lá.

A Rua da Glória, cariada de prédios abandonados e/ou em ruínas em meio a residências modestas, mantém um ar de velha senhora empertigada, graças a algumas entidades em funcionamento: o Centro Integrado da Cidadania/Delegacia do Idoso, o Convento de N.S. da Glória e o Centro Islâmico do Recife, atualmente em reforma.

A Rua Velha, maquiada pela Prefeitura há não muito tempo, embora despida de encantos, ostenta certa vitalidade nas casas ainda habitadas e no vasto comércio miúdo, tornando-se quase sinistra quando, ao fim do dia, as lojas e oficinas cerram suas portas. Aliás, andar em alguns trechos mais inertes dessa parte necrosada do bairro, mesmo à luz do dia, é só para os destemidos.

A Rua Manuel Borba continua coalhada de óticas e todo tipo de comércio. Seu mais notável sobrevivente é o Hotel Central, inaugurado em 1928.

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Mas a Boa Vista antiga tem seu lado dinâmico, festivo até, no entorno do Pátio de Santa Cruz. Aí tudo é movimento, cores e sons. O Pátio é bem movimentado, mantendo a tradição. Antes, por ali circulavam procissões concorridíssimas e, nas datas celebrativas, aterrissavam os parques de diversões. No auge do catolicismo brasileiro, as procissões eram mais que ato devocional. Eram espetáculo e vínculo de convivência social. Entre vários cortejos, o mais aguardado pelo povo era a procissão de Nosso Senhor dos Passos, que saía da Igreja da Santa Cruz para a Matriz da Boa Vista, com direito, no meio do caminho, a um aguardado encontro entre os andores de Nosso Senhor e Nossa Senhora. Mário Sette revela no Arruar: as ruas por onde passavam os séquitos eram as mais valorizadas no mercado imobiliário, os anúncios destacavam invariavelmente – RUA DE PROCISSÃO.

O Pátio de Santa Cruz foi revitalizado, teve retirados os horrendos gelos baianos, recebeu pavimento novo, nivelado com as calçadas. E pulsa, hoje, sobretudo pelas manifestações profanas. A Igreja de Santa Cruz continua a dominar arquitetonicamente o espaço, rodeada de edifícios não muito bem conservados, em cujos térreos funcionam lanchonetes e bares movimentados, como o Bar e Restaurante Santa Cruz, o Lisbela e os Prisioneiros e o Cabaret Bar e Comedoria. Nos feriados e fins de semana eles se enchem de ruidosos grupos de rapazes e moças (e coroas antenados), lotando suas áreas interna e externa. Na semana pré-carnavalesca é ponto de saída e retorno de blocos da Região Metropolitana do Recife.

Ao vasto feixe sonoro da musicalidade da Boa Vista, os clarins de Momo acrescentaram tons dionisíacos em contraponto ao canto apolíneo das procissões, enriquecido, ainda, pela ressonância dos cânticos e batuques de uma dezena de terreiros de candomblé e, nas festas carnavalescas, pela batida dos maracatus e dos clubes de frevo.

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Na segunda-feira do Carnaval passado, tendo como camarote a varanda da maltratada sede da Federação Carnavalesca de Pernambuco, no primeiro andar do nº 438, presenciei o largo coalhado de gente colorida, na alegria recalcada pela pandemia de Covid. Voltei depois, num dia de semana. O ambiente era contrastante: no meio da praça, ao lado da estátua de Reginaldo Rossi, um grupo de pessoas em situação de rua – homens e mulheres, velhos e crianças – expunha sua miséria e aguardava uma ajudazinha material dos religiosos.

A poucos passos do Pátio de Santa Cruz, o Mercado da Boa Vista, o mais antigo da cidade, construído em 1822, além de centro de abastecimento tornou-se, nas últimas décadas, um polo de eventos culturais, cheio de bares e comedorias populares convivendo com os boxes de temperos e hortifrútis. A meio caminho, está a tradicional Padaria Santa Cruz. E as casas se alternam entre residências e pequenos negócios, numa convivência dinamicamente saudável.

O polígono formado ainda pelas ruas Leão Coroado e da Alegria e Travessa Pedro Albuquerque foi revitalizado há pouco tempo ganhando calçamento de lajotas e jarros de plantas nas calçadas. Nesse trecho, a Boa Vista Antiga é vida e cor, movimento e sons.

BOEMIA E PROTESTOS
A outra Boa Vista, a moderna, é ancorada num dos trechos mais importantes da malha viária do Recife, principal corredor de trânsito ligando o centro às zonas norte e oeste. E tem grande valor simbólico para os recifenses e vizinhos. Iniciada em 1840, foi espichando por etapas: era o Caminho Novo, que virou Rua Esperança, Rua Formosa e, por fim, Avenida Conde da Boa Vista.

Sua configuração atual foi dada em 1946, quando foi duplicada por cima dos jardins dos antigos casarões, abrindo espaço para a civilização do automóvel. De lá para cá, sofreu várias intervenções urbanísticas e, em seus 1,6 km de extensão, transitam diariamente 300 mil pessoas, trazidas de toda a área metropolitana por 600 ônibus que fazem quase sete mil viagens por dia, sem contar carros e motos, cujo tráfego vem sendo dificultado em prol do transporte coletivo. Conforme nota técnica de 2021, assinada pela urbanista Maria Eduarda Alencar e outros, atualmente a avenida abriga cerca de 370 unidades de comércio e serviços formais, mais de 1.500 unidades habitacionais e por volta de 100 comerciantes informais espalhados pelas calçadas.

As antigas estâncias de férias das elites do século XIX foram substituídas por mansões de médicos, advogados, altos funcionários públicos, e instituições como Assembleia Legislativa e Câmara de Vereadores, clínicas, escolas e faculdades, comércio variado, agências bancárias, restaurantes, lanchonetes, salões de beleza. Com a decadência geral do Centro, o comércio se popularizou e os camelôs se espalham por muitas ruas.

Em certos trechos, como Rua Sete de Setembro e Rua do Hospício, que ligam a Imperatriz à Conde da Boa Vista, isto é, a parte antiga à moderna, as noites se enchem de medo: os passantes temem as pessoas encolhidas sob as marquises (“Tá cheio de drogado aí”, me disse um comerciante nostálgico); por sua vez, os miseráveis sem lar temem a polícia e os bandidos. Nessas horas escuras, o silêncio é cortado por sirenes das viaturas e palavrões anônimos.

Mas a Conde da Boa Vista, no geral, é bem-cuidada, sempre a ser “requalificada” por seguidas administrações municipais. Afinal é uma das áreas de maior visibilidade da cidade.

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Pulsante e ruidosa, a Conde da Boa Vista foi e é palco de muitas manifestações políticas. Em 1963, assisti ao trote dos alunos da Escola de Engenharia, que ficava na Rua do Hospício. Um estudante carregava um cartaz de cartolina satirizando o presidente e a primeira-dama: “Nos jardins do Planalto, Jango é um parasita e Maria Thereza uma trepadeira”.

Um ponto de encontro era o TPN – Teatro Popular do Nordeste, dirigido por Hermilo Borba Filho. No palco, em 1967, se apresentou um cantor baiano, começando a despontar, Gilberto Gil. Na lateral tinha um barzinho, onde se discutia o destino da humanidade. Em 1968, pela avenida rolavam grandes e pequenas passeatas e ecoava o grito: “O povo unido jamais será vencido”. Como o povo não estava unido ou sequer tinha plena consciência da situação vigente, o AI-5 impôs o silêncio. A energia política dos jovens e dos intelectuais canalizou-se, em grande parte, para o campo cultural.

A Boa Vista, desde os Oitocentos, recebeu a Faculdade de Direito, transferida de Olinda, e sediava muitas escolas particulares e públicas (entre as quais o conceituado Ginásio Pernambucano). No século XX, contava com várias faculdades da então Universidade do Recife – Engenharia, Geologia, Filosofia –, depois mudadas para o campus, na Várzea, quando se criou a UFPE. Em compensação, ganhou a Universidade Católica, o Instituto de Educação de Pernambuco, a Escola Normal Pinto Júnior (hoje em ruínas), o Colégio Municipal Pedro Augusto e colégios particulares – o Marista e o Nóbrega, ambos fechados (no Nóbrega funciona hoje o antigo Liceu de Artes e Ofícios). Em torno desse eixo, proliferaram uma chusma de repúblicas estudantis, dezenas de livrarias e igual ou maior número de bares.

Nesse ambiente, nos anos 1970, dois lugares se tornaram polos informais de cultura, quando a censura vetava os gritos, mas não conseguia coibir os sussurros: a Livro 7, na Rua Sete de Setembro, e o Bar Mustang, na Conde da Boa Vista. A livraria fez história: por três décadas foi o verdadeiro centro cultural do Recife, com seus constantes lançamentos de livros, palestras e debates, recitais de poesia e canjas musicais. Começou bem pequena em 1970, uma saleta de 20 m2, até se tornar, em 1980, a maior livraria do Brasil, com 1.200 m2. No intervalo, teve anexo o Bar 7, onde se bebia chope, se namorava, se discutia Marshall McLuhan e se fofocava sem piedade.

No início, frequentada por estudantes universitários, era um covil de esquerda, mas, ao crescer e diversificar o estoque, acolhia indistintamente a direita e a esquerda, em convivência civilizada. Fechou em 1999, com o início da decadência do centro da cidade, esgotamento daquele modelo de livraria personalizada e problemas de gestão. Durante quase três décadas deu inegável contribuição ao ethos da cidade.

Em paralelo, o Bar Mustang recebia a estudantada ao fim das aulas noturnas, intelectuais, artistas, políticos e bichos-grilos vindos sabe-se lá de onde. Nele, exercia-se plenamente a arte da conversa. Com direito a discussões e desavenças. Certa noite, um cantor famoso nacionalmente e um pintor de renome estadual se estranharam e partiram para o xingamento:

Beócio!, bradou um.

Paletó!, retrucou o outro.

Menos sutis, em outra ocasião, um sociólogo vinculado ao Instituto Joaquim Nabuco e um jornalista ligado ao jornal O Globo se exaltaram e partiram para ofensas pessoais:

Puta de Roberto Marinho!, atacou o sociólogo de voz tonitruante, afrontando o jornalista global.

Viuvinha de Gilberto Freyre!, replicou o jornalista com sua voz aguda, aludindo à amizade do outro com o autor de Casa-grande & Senzala, falecido em 1987.

De outra feita, numa mesa de marmanjos, tendo ao lado o namorado, a estudante alagoana Bebel, numa voz ciciante, proclamou no tom o mais casual:

Para mim, a siririca é fundamental.

Política, artes, sexo. Essa era a pauta do bar que sobrevive até hoje, atendendo a um público majoritariamente LGBTQIAP+, responsável em grande parte pela pulsação atual da vida noturna do bairro, como anota o Guia (Co) Memorativo da Boa Vista, editado em 2021 pelas ONGs Coletivo Massapê e Habitat para a Humanidade. Registrando o surgimento das primeiras boates voltadas para o público gay, nos anos 1980 – Misty e Dr. Freud –, a publicação indica a zona delimitada pela Rua das Ninfas e Avenida Manoel Borba, e adjacências, como o lugar onde se concentram diversos bares, clubes, saunas e eventos voltados para aquele público, elencando, além do famoso Clube Metrópole, novos estabelecimentos, como o Bar do Céu, Casa de Bamba Brasilidades, o Place Bar, o Amigos do Pop e o Conchittas Bar. E depois de mencionar outros espaços frequentados pela comunidade – Pátio de Santa Cruz e ruas Mamede Simões, José de Alencar e do Riachuelo –, o Guia (Co) Memorativo crava: “a Boa Vista é o bairro mais inclusivo da cidade”.

A partir dos anos 1970, o Centro do Recife sofreu profundas transformações. Reflexo das mudanças estruturais da sociedade brasileira desde então: a urbanização acelerada, a automobilização, o consumismo. Tais fatores provocaram uma mudança no estilo de vida das pessoas. Bairros que não atendiam aquelas novas demandas foram decaindo. Na parte antiga da Boa Vista, os impactos foram maiores: desvalorização dos imóveis e substituição de parte dos moradores por pessoas de menor renda. No setor moderno, houve também esse descenso social, em menor escala, com as famílias mais afluentes se mudando para áreas mais valorizadas.


Extra:

Leia os ensaios anteriores O brilho preto do Recife, de Santo Antônio a São José, por Odailta Alves, e Um porto que virou cidade, por Romero Rafael



A população do bairro, como um todo, decresceu 17% entre os censos de 1991/2000. No Sítio Histórico, a queda foi de 21%. Sintomas claros de decadência, desatando o círculo vicioso já referido. O problema é complexo e exige intervenção estatal planejada. Há muitos estudos dos urbanistas. Urge escolher e agir. As ações recentes no Pátio de Santa Cruz e entorno parecem um caminho promissor.

A Boa Vista, apesar de tudo, mantém o dinamismo de passagem para o norte e oeste da cidade e, sobretudo, a vocação residencial, mercantil e escolar de sua origem no século XIX, resistindo à erosão socioeconômica. Em sua atmosfera, cheia de sons e fumaça, a vida pulsa nas ruas lotadas de ônibus e carros, transeuntes, vendedores ambulantes, consumidores e moradores de várias classes sociais. Sintetiza as mazelas do Brasil assimétrico e desigual. Mas resiste como um bastião vibrante de sons, cores e diversidade. Viva a Boa Vista.

HOMERO FONSECA, jornalista, autor de vários livros, entre os quais Tarcísio Pereira, todos os livros do mundo (Cepe Editora, 2022).

JEIMS DUARTE, artista plástico. Sua obra é centrada no desenho, com ênfase em duas temáticas complementares: o corpo e a cidade. O retrato humano de tradição expressionista e uma pintura de paisagem focada na obsolescência urbana confluem, para o artista, numa “poética da construção de ruínas”.

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Um porto que virou cidade

O brilho preto do Recife, de Santo Antônio a São José