Ensaio

O brilho preto do Recife, de Santo Antônio a São José

Dando continuidade à série de três ensaios sobre a formação do Recife, iniciada em março com o Bairro do Recife, chegamos agora ao segundo povoamento da cidade. Em maio, seguiremos para a Boa Vista.

TEXTO ODAILTA ALVES
ILUSTRAÇÃO JEIMS DUARTE

03 de Abril de 2023

Ilustração Jeims Duarte

[aberto para degustação | ed. 268 | abril de 2023]

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Os primeiros raios de sol acordam a favela. Ao longe, ainda é possível ouvir o canto dos galos no quintal de Preto João. Pego o caderno e a caneta, saio. Passo pelo Campo do Onze, corto a Avenida Cruz Cabugá e, antes de chegar à Ponte do Limoeiro, sou cortada pela azeda subvida das mulheres seminuas que buscam seu sustento nas proximidades do mangue. Sigo pela Avenida Cais do Apolo. Próximo ao ponto onde iniciarei essa travessia, peço a bênção ao Mestre Naná Vasconcelos, cuja escultura ergue-se em tambores no Marco Zero da cidade, tão lindamente desbravado no primeiro capítulo dessa série. Abençoada, sigo minha trilha... dando continuidade à caminhada.

Ponte Maurício de Nassau, a primeira ponte de grande porte do Brasil, financiada pelo príncipe João Maurício, conde de Nassau, com construção datada de 1642 a 1644, a Ponte do Recife, como foi batizada na época, tinha o objetivo de comunicar o Bairro do Recife com a antiga Ilha de Antônio Vaz, atual Bairro de Santo Antônio. Em sua fundação, a ponte tinha o dobro do tamanho atual, sofrendo algumas reformas – sofrimento menor que o dos rios que foram tão aterrados em nome do progresso. Com estrutura e nome mudados, em 1861, é reinaugurada e passa a ser chamada Ponte Sete de Setembro; só em 1917, recebe o nome do seu fundador, Ponte Maurício de Nassau.

A Maurício de Nassau, como todas as pontes seculares que unem a cidade, causa-me arrepios... o vento forte aos ouvidos me trazem os gemidos dos meus ancestrais, que foram usados como mão de obra escravizada para erguer essas estruturas. O historiador José Antônio Gonsalves de Mello, em seus estudos acerca do período da ocupação holandesa no Brasil, apresenta dados sobre a obra da ponte para ligar o Recife Portuário à Cidade Maurícia, afirmando que a obra foi tocada com alguns holandeses e “com 50 negros peças, recentemente chegados”.

Zoroastro Cardoso recolhe informações importantes sobre um quadro que precede a construção dessa ponte. Segundo esse historiador, “em 1630, o número de negros em serviço no Recife e na ilha de Antônio Vaz era de 500. Certamente entre esses trabalhadores negros havia gente especializada, com experiência em construção de obras em cidades africanas. A cidade de São Salvador, capital do Reino do Congo, em meados do século XVII, tinha uma população de 60 mil habitantes, cinco vezes maior que Recife. Construir e manter uma cidade desse porte exigia uma mão especializada em serviços urbanos”. Ao contrário do que a tela racista tenta pintar, a ancestralidade negra não construiu esse país apenas com a força física, mas com muita sabedoria, conhecimento e ciência trazidos da Terra Mãe.

Atravesso a ponte Maurício de Nassau, sinto o aroma da cidade, o Recife tem cheiro de poesia, às vezes daqueles poemas floridos, outras vezes de uma fedentina insuportável. Mirando suas pontes... pontes... pontes... parecem-me rimas de um soneto que ligam versos e estrofes da cidade: o Recife é um terceto lindo e amargo: Bairro do Recife – Santo Antônio/São José – Boa Vista/continente.

O vento lambe o Rio Capibaribe e empurra meus passos para a direita, até ele: imponente, o Baobá. O Baobá da Praça da República, cercado por grades, estende-me as mãos em folhas, encosto minhas palmas e trocamos energias. Fecho os olhos e sou capaz de ver minha ancestralidade preta saindo dos porões do navio, erguendo essa cidade, e, na mão fechada, as sementes, sementes da árvore mãe, parindo no Recife um pouco de África. Recife, com mais de 100 baobás, 11 desses tombados, é a cidade com mais baobás do Brasil, é a cidade que inspira a escritora Inaldete Pinheiro e os seus livros sobre os baobás.

Neste solo que é leito para as raízes dele, o segundo maior baobá do Recife, adormecem ruínas, ruínas que agonizam por quase todo Bairro de Santo Antônio e de São José. Onde hoje vislumbramos a Praça da República e o Palácio do Campo das Princesas, em 1642, foi erguida a residência oficial, o Palácio de Friburgo e um dos primeiros jardins de grande porte planejado, financiado pelo conde Maurício de Nassau. Na época, “tinha um viveiro grande de peixes e um minizoológico, além de muitos coqueiros”, ressaltou o historiador José Reinaldo Carneiro Leão, ao G1.

No século XVII, muitos herdeiros do baobá construíram a cidade Maurícia, situada na Ilha de Antônio Vaz, atual bairro de Santo Antônio, erguendo parte do inovador projeto urbanístico do arquiteto e pintor holandês Pieter Post, com “grandiosos empreendimentos urbanísticos, compreendendo o sistema de canais, o jardim botânico, a ponte de ligação com a Ilha do Recife e outra de comunicação com o continente, o Palácio da Boa Vista, o Palácio de Friburgo e o museu, imprimindo um caráter laico e mundano ao assentamento urbano”, como bem descreveu a professora Virgínia Pontual, no livro São José: olhares e vozes em confronto (Cepe, 2021).

Em 1769, o palácio foi demolido. Mais de um século depois, esse local recebeu o formato próximo ao que vemos hoje, com o projeto de ajardinamento do engenheiro Emile Bérenger e, em 1936, passou por intervenções do famoso paisagista Roberto Burle Marx. Reza a lenda que Saint Exupéry inspirou-se nesse baobá para escrever um dos capítulos do seu famoso livro, O Pequeno Príncipe. Pena que o autor não conseguiu alcançar a grandiosidade e riqueza dessa árvore sagrada, dessa árvore que é remédio e alimento, e, na obra, refere-se ao baobá como sementes “ruins” que deveriam ser arrancadas. Ainda bem que o Recife não arrancou os seus, e, em 1988, o baobá da Praça da República foi tombado. Hoje, ele, imponente, olha o rio, o Palácio do Campo das Princesas, o Teatro de Santa Isabel e o prédio do Tribunal de Justiça.

***

Depois da Insurreição Pernambucana, novas construções foram erguidas sobre as ruínas que sobraram do domínio holandês. Em 1710, este solo viveu mais uma batalha sangrenta, a Guerra dos Mascates, que durou aproximadamente um ano e da qual o Recife saiu vitoriosa, ganhando sua autonomia da cidade de Olinda e, posteriormente, tornando-se capital.

A historiografia revela que, nessa época, o bairro do Recife e a Ilha de Antônio Vaz somavam uma média de 15 mil pessoas e 1.600 edificações. Dados trazidos por Virgínia Pontual mostram que “o número de pessoas dobrou em poucos anos: em meado do século XVIII, havia 30 mil pessoas, considerando adultos e crianças, brancos e negros, libertos e escravos, enquanto o crescimento dos edifícios foi pífio – 2 mil, entre casas terras e sobrados”. Só em 1752 essa Ilha passa a ser chamada de bairro de Santo Antônio do Recife, após o início da construção da Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento de Santo Antônio.

Sigo pela Rua do Imperador Dom Pedro II, onde adormeceram três antigas ruas, Cadeia Nova, do Colégio e de São Francisco, após a passagem do então imperador pelo local. Contemplo a Capela Dourada, cujo ouro contrasta com a miséria estendida pela calçada, mãos negras estendidas que buscam, no centro do Recife, colocar-se também como centro das prioridades, no centro das atenções, da luta, da busca por uma vida não Severina.

Leio no muro da Ocupação Leonardo Cisneiros: “Enquanto moradia for um privilégio, ocupar é um direito”. Fixo o olhar nesse prédio que antes era o INSS e agora abriga cerca de 250 famílias ligadas ao Movimento de Luta e Resistência pelo Teto (MLRT). Herdeiros das milhares de pessoas escravizadas que construíram esses edifícios sem receber nada por isso, em condições desumanas. Lembro da Ocupação Marielle Franco e seu pioneirismo, não apenas na luta pela moradia popular no Centro do Recife, mas também por ter quebrado com o estigma de serem “invasores” e mostrado a força feminina à frente dos movimentos sociais. Possibilitando a famílias que sempre estiveram à margem viver nesse espaço central, privilegiado.

***

O sol adormece, é sexta-feira, ouço ao longe um pandeiro, sigo a trilha do som e encontro o Pagode do Didi, na Rua Ulhôa Cintra. Com pouco mais de quatro décadas, esse espaço, fundado e administrado por seu Valdemir de Souza, o Didi (Patrimônio Vivo de Pernambuco) e sua família, transborda melanina desde a poesia exalada do samba e pagode até as mãos que já não carregam mais as sementes do baobá, mas os instrumentos, culinárias, saberes, sorrisos e molejo.

Numa época em que o Recife não tinha esse carnaval multicultural, esse espaço constituiu-se como um território de fortalecimento da cultura negra local, ecoada na voz de artistas como Maria Pagodinho, Gerlane Gell e Belo Xis. O espaço também recebeu artistas renomados nacionalmente, como Jovelina Pérola Negra, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz e Bezerra da Silva. O Quartel General do Samba, como é conhecido, é, sem dúvida, o espaço de encontro, confraternização e fortalecimento da cultura preta no Centro do Recife, juntamente com a turma do Saberé, que desde 1960 anima o sambão do bairro vizinho, o de São José.

No começo da década de 1990, esse pagode viveu o seu auge enquanto o Bar Savoy despedia-se dos seus 48 anos de funcionamento na Avenida Guararapes. Naquela época, o público desses dois lugares era bem distinto, enquanto o pagode era mais popular e acessível, o outro destinava-se à elite intelectual e financeira do Recife. Perto de onde era o Bar Savoy, na Praça do Diário, encontramos a escultura de um jovem de terno e gravata, sentado numa mesa, provavelmente esperando um chopp: o poeta pernambucano Carlos Pena Filho, frequentador assíduo do Bar Savoy, a quem dedicou o poema Chopp, que começa assim:

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

A Praça da Independência ficou conhecida como Praça do Diário por testemunhar a construção das novas instalações do jornal Diario de Pernambuco, “o jornal mais antigo em circulação da América Latina”, de 1825. Inaugurado em 1903, o prédio pertence ao governo do Estado desde 2004 e, hoje, agoniza entre lixo, excremento e abandono. Há décadas, a praça é um local frequentado pelas profissionais do sexo, em sua maioria, mulheres negras, chefes de família.

Negras como seus ancestrais que foram torturados nessa mesma praça, no século XVIII, quando ainda era chamada de Praça do Polé. Segundo o doutor em história social Leandro Nascimento Souza, “o polé era um instrumento de tortura que pendurava as pessoas que, aos olhos dos senhores, fizessem perturbação à ordem, e deixava lá expostas para que qualquer indivíduo pudesse castigá-las, 99,9% eram negros e negras”. Esse mesmo povo também enche essa praça de alegria para brincar o Carnaval, fantasiado de folião, uma ilusão que começa no Galo da Madrugada e vira Cinzas na quarta-feira.

Da Praça do Diário, é possível observar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, a segunda mais antiga do Brasil, criada em 1654. Nela, funcionava a Irmandade Nossa Senhora dos Homens Pretos, onde os membros se juntavam para articular estratégias de sobrevivência, de amparo em meio à escravização. O chefe da irmandade era coroado como o Rei do Congo e intermediava os diálogos entre os poderes. Dessa coroação negra, herdamos o maracatu de baque virado, também chamado maracatu Nação.

Em 1961, o então jornalista do Jornal do Commercio Jarbas Maciel publicou sobre as origens desse festejo: “parece ser uma reminiscência das antigas cortes reais que, de meados do século XVII em diante começaram a sair para as ruas de modo a prestar sua homenagem à coroação dos reis negros (ou reis do congo)”. Entro nessa igreja e o altar com santas e santos negros me arrebata – o rei Baltazar, São Elesbão, São Benedito, Santo Antônio de Categeró e Santa Ifigênia.

Ainda nesta praça, contemplo a Igreja de Santo Antônio e lembro de minha avó, que somava fé e fome e, após a missa, esperava o pão para alimentar a família; de sacola na mão, seguia minúscula diante dos altos prédios erguidos na Guararapes, antiga Avenida 10 de Novembro. Nascida em 1934, minha avó sabia o quanto de ruínas estava pisando, quantos sobrados foram derrubados para que as largas ruas das avenidas Guararapes e Dantas Barreto nascessem, para que o projeto imobiliário de verticalização fosse colocado em prática. Ainda marejava os olhos quando lembrava da Igreja do Bom Jesus dos Martírios, construída por pretos e pardos, no final século XVIII. Nela foi criada a irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios que, de acordo com o historiador Leandro N. de Souza, “tinha atividades secretas, abolicionistas, muita gente se encontrava nessa irmandade pra fazer fundos e comprar alforrias de escravizados”. Foi derrubada no começo da década de 1970 para que a Avenida Dantas Barreto passasse por cima. Minha avó não se cansava de repetir: “Só derrubou porque era dos pretos!” Ela sabia das coisas…

Fazia questão de dobrar à esquerda, na Rua do Sol, para passar pela Praça Joaquim Nabuco e paquerar o restaurante Leite, fundado em 1882, é o mais antigo em atividade no Recife. Ela olhava para esse restaurante com um brilho no olhar de quem nina um sonho, o sonho de um dia entrar ali, logo naquele lugar em que ela só via gente de sua cor na cozinha e de bandeja na mão. Hoje, eu entro, Vó, pena que já não estás aqui para entrar comigo. Entro de black erguido que encara os olhares de espanto de uma clientela tão branca quanto as toalhas estendidas sobre as mesas, branca como as imagens dos homenageados na parede. É sábado, o restaurante está cheio, sento, peço um Carré de Cordeiro e observo os dois espaços divididos por grossas colunas... Pretos, além de mim, só alguns garçons e o piano... que certamente não conhece Joseph Bologne, Chevalier de Saint-George.

Saio do Leite e, bem próxima, encontro a Casa da Cultura, antiga Casa de Detenção do Recife, inaugurada em 1855, desativada em 1973 e reinaugurada como Casa da Cultura em 1976. Foi a maior cadeia do Brasil no século XIX e a primeira prisão radial pan-óptica da América do Sul. Segundo o doutor em História Flávio de Sá, a penitenciária possuía quatro vagões e suas ocupações eram divididas “em quatro classes: a primeira, os indivíduos em custódia; a segunda, os indiciados em crimes; a terceira, condenados e a quarta, composta pelos escravos”.

Nos seus registros podemos encontrar descrições de alguns prisioneiros, escravizados ou não, uma maioria preta, realidade que se repete até os dias atuais, o encarceramento negro: “Francisco, 26 anos, agricultor, preso em 13 de outubro de 1885 por andar fugido; Josepha, 24 anos, trabalhadora doméstica, presa em 27 de novembro de 1880 por andar fugida e levar vida obscena; Florindo, 58 anos, preso por requisição de seu senhor em 29 de outubro de 1885”.

Atravesso a avenida em frente à Casa da Cultura e já estou no Bairro de São José. Adentro o Museu da Estação Central do Recife, que foi fundada em 1888, funcionou até 2008. Apenas as portas do museu encontram-se abertas, com mais de 600 peças históricas. Quando criança, o trem era um momento de lazer para mim, se o dinheiro sobrava, era o passeio certo. Encantava-me ver o Recife passar na velocidade dos trilhos, tudo era abraçado pelo meu olhar na viagem – a disputa dos ambulantes pelos clientes, a correria dos passageiros em busca de um acento, o moço com o pandeiro improvisando emboladas para conseguir o jantar e o cheiro de alfazema de minha avó, sempre de mãos dadas à minha imaginação de criança... Era como se o mundo passasse e eu estivesse ali, parada, num sonho veloz.

***

Nesse misto de sonho e realidade, de presente e passado, salto de volta para o Bairro de Santo Antônio, chego ao Largo da Basílica de Nossa Senhora do Carmo. As portas fechadas escondem a riqueza barroca do século XVIII, de valor inestimável e beleza imponente. No largo, contemplo a escultura feita pelo artista Abelardo da Hora, homenageando o herói pernambucano Zumbi dos Palmares. Um monumento erguido sobre os restos da cabeça de Zumbi, que ficou exposta nesse pátio até sua total decomposição, após ser morto em 20 de novembro de 1695. Nessa época, o Quilombo dos Palmares já havia sido destruído na região da Serra da Barriga, que pertencia à capitania de Pernambuco, território que hoje é o município de União dos Palmares, em Alagoas, tomado de Pernambuco pelo imperador Dom Pedro I, como vingança pela Revolução Republicana de Pernambuco, liderada por Frei Caneca, em 1824.

Encerro a noite no Pátio de São Pedro, vivenciando os 23 anos da Terça Negra. Da frente do Ilê Obá Aganju Okoloyá – Terreiro de Mãe Amara, peço vênia à Yá Maria Helena e contemplo a alegria do Pátio.

A beleza da Catedral do século XVIII é ofuscada pelo espetáculo do Maracatu Nação Coroado, de 1852, fundado pelo africano, ex-escravizado, Roberto Azoubel, no bairro de São José. Naquela época, era nesse bairro que a população negra, recém-liberta, se abrigava e semeava sua cultura ancestral. Em 1954, quem assumiu a liderança do Nação Coroado foi o herdeiro Seu Luís de França, grande sacerdote do candomblé de origem nagô. Em 1997, seu Luiz morre aos 96 anos e o babalorixá Afonso Aguiar assume o maracatu até os dias atuais. As estrelas parecem se curvar para a grandiosidade do maracatu, que segue para o descanso na sua atual sede no bairro de Água Fria.

No Pátio, eu ainda fervo, frevo, maracatu, literatura, pedindo a bênção ao mais velho, àquele que veio antes e construiu esse solo sagrado da poesia preta em Pernambuco e no Brasil, a bênção, Solano Trindade. Bem-vindos(as) a São José, o bairro negro do século XIX, com um trecho do poema Canção à minha cidade, de Solano:

Recife
Capibaribe
Chapéu de sol”
Toureiros de Santo Antônio

Recife
Negro Umbelino
Rico pra burro
Dono do bairro
de São José

Recife
frevo
serenata
melhor carnaval do mundo
melhor cidade da terra
melhor cantinho do céu
pra não perder a saudade

Solano Trindade, nascido no Bairro de São José, foi poeta e multiartista, com um currículo atuante na luta antirracista que causa orgulho às velhas e novas gerações recifenses: foi um dos organizadores do I Congresso Afro-brasileiro, ocorrido em 1934, no Recife; fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro Brasileiro, também na capital pernambucana. É o Recife de Solano Trindade que se ergue aqui, no respirar de cada vocábulo, o Recife Preto que sempre existiu, mas se consolidou quando a freguesia de Santo Antônio foi dividida, ao Norte permaneceu com o mesmo nome, e, ao Sul, passou a ser chamada de São José, o bairro dos Pretos, o bairro de Solano Trindade, de Badia, das Tias do Terço.

***

Uma nova semana se inicia, dou as mãos às letras e vou em busca dos meus. Saudosa do caldo de cana com bolo de bacia da infância, no Mercado de São José, caminho para o meu desjejum atípico. Sigo pelo Pátio do Livramento e descubro que aquela igreja que nunca entrei também é minha, a Igreja de Nossa Senhora do Livramento dos Homens Pardos, que agregou uma irmandade para intervir pelas pessoas que não se identificavam como negros, mas também não eram brancos e precisavam unir forças para sobreviver ao racismo de cada dia. Hoje, sabemos que pretos e pardos são considerados negros, e que essas classificações foram criações dos escravizadores para hierarquizar as etnias e enfraquecer as lutas coletivas das pessoas negras.

Pelo lado esquerdo da Igreja, chego ao Mercado de São José, o mais antigo mercado público do Brasil, de inspiração francesa. Inaugurado em 1875, traz em seu interior uma variedade de produtos, sobretudo, referente à religiosidade afro-indígena. É nesse mercado e no seu entorno que as pessoas do candomblé, jurema e umbanda encontram os seus objetos que serão sagrados. A presença desse comércio na localidade é compreensível pelo histórico do Bairro de São José ser formado majoritariamente por pessoas negras. No livro Cultos afro-brasileiros no Recife (1952), o antropólogo Renê Ribeiro traz dados importantes que descrevem a territorialidade das casas de axé naquela época, “os Xangôs localizam-se no bairro de São José, na rua das Calçadas, dos pescadores, de São João, do Gasômetro e na Campina do Bode; outros ficavam na Boa Vista, na Aldeia dos 14 e Estância”.

São José foi um bairro que surgiu do ventre da África, acolheu filhos e filhas sequestrados(as), escravizados(as) e alforriados(as). Na metade do século XIX, quando os governantes desenvolveram estratégias para embranquecer ainda mais o Recife, sob uma influência francesa, começou a criar um projeto de cidade que pudesse ser mostrada para o mundo.

Tendo como meta um processo de higienização, criou-se o bairro de São José para que os negros morassem e o bairro de Santo Antônio ficaria como essa referência de cidade da elite, a representação do que os governantes queriam para o Recife, uma cidade europeia nos trópicos, com determinados tipos de pessoas transitando, determinados tipos de comportamentos, determinado tipo de estrutura arquitetônica. O Bairro de São José seria dos escravizados, dos subalternos, dos excluídos. O historiador Leandro de Souza relata que “isso foi tão sério que se criou uma muralha imaginária de que as pessoas de São José não poderiam transitar no bairro de Santo Antônio, e quem fazia esse controle era a polícia”.

Diante disso, a sociedade negra precisou se apropriar desse território e desenvolver estratégias de fortalecer o bairro, firmando a identidade negra por meio da cultura, das articulações das irmandades negras e da religião, sendo isso uma resposta ao apartheid recifense, imposto no final do século XIX e início do século XX. Não entendamos assim que essa segregação foi aceita pacificamente pela negritude, são vários os registros policiais de pessoas negras detidas e perseguidas por desobediência ao circular em território sem permissão.

Degustando o último gole do caldo de cana, deito o meu olhar sobre a Praça Dom Vital e contemplo a imponência da Basílica de Nossa Senhora da Penha, que respira sobre as suas próprias ruínas, inicialmente construída na segunda metade do século XVII, posteriormente, demolida e reconstruída na segunda metade do século XIX, com o projeto arquitetônico do frade San Giorggio Maggiore e as mãos de muitos homens pretos.

Essa basílica é um marco na história da arquitetura no Recife e no Estado, pois diferencia-se do estilo barroco presente na maioria das igrejas da capital e inaugura, em Pernambuco, a arquitetura neorrenascentista. Em suas escadarias, encontramos crianças e mulheres herdeiras daquele baobá, sem sementes na mão, em busca do pão. Mas também conseguimos ver outros(as) herdeiros(as), com sementes de dinheiro, donos de pontos comerciais nas proximidades, estacionando seus carros para adentrar os comércios.

***

Sigo pela Rua Direita em busca de um dos lugares de maior representatividade negra no Centro do Recife, o Pátio do Terço. E nele eu chego na segunda-feira de Carnaval, na Noite dos Tambores Silenciosos, evento criado há mais de 60 anos pelo jornalista Paulo Viana e pela Yalorixá Badia, quando várias nações de maracatu reverenciavam seus orixás em frente ao Axé das Tias. De acordo com Rita Amaral, “para retribuir a honraria e homenagear os maracatus e seu simbolismo, Badia se empenhou em garantir esse encontro cerimonial que hoje integra a programação oficial do Carnaval pernambucano, sendo visto como um de seus momentos mais sublimes”.

Ivaldo Lima lembra que, para Paulo Viana, o evento também era concebido como uma “forma de homenagear o encontro entre a rainha Dona Santa, do Maracatu Nação Elefante, e as ‘mães pretas’ Sinhá e Yayá, mulheres de idade avançada e que praticavam, segundo rezam as memórias, a religião dos orixás. O evento surge como forma de fazer esta homenagem, e ao mesmo tempo celebrar os antepassados, os escravos que morreram na travessia do continente africano para o Brasil, bem como aqueles que faleceram nestas terras”.

Ainda hoje, maracatus se reúnem e rezas em yorubá são feitas numa cerimônia banhada de ancestralidade. O ponto principal da cerimônia é em frente à Igreja Nossa Senhora do Terço, à meia-noite, apagam-se as luzes e silenciam-se os tambores para que só a natureza seja ouvida. Alguns ainda ouvem gemidos e soluços de dor.

Não podemos pisar no Pátio do Terço sem conhecer a casa de número 143, Casa de Badia, tombada como Patrimônio Cultural de Pernambuco, que anseia por uma reforma grandiosa como sua história. Considerada um dos primeiros terreiros de tradição nagô do Estado, de acordo com a antropóloga Ester Monteiro, ali foi a residência das quatro tias: a matriarca, vinda da Nigéria, Eugênia Duarte, suas duas filhas biológicas, Vivina Rodrigues, chamada de Sinhá, e Emília Rodrigues, conhecida como Iáiá. E a caçula, filha adotiva, Maria de Lourdes da Silva, a famosa Badia.

Eram muito respeitadas nos arredores, conhecidas pelos conselhos que extrapolavam os saberes terrenos. Quando as tias faleceram, com a bênção das três, quem assume a casa é a yalorixá Badia, que foi iniciada no candomblé nesse ilê, herdando os seus saberes. Também participou e ajudou a fundar várias agremiações carnavalescas, como a Escola de Samba Estudantes de São José, o bloco Verdureiras de São José e o Clube Vassourinhas. Foi a homenageada no Carnaval de 1985.

Após a reza, ecoam os tambores. Meu corpo trêmulo caminha lentamente até o Monumento Maracatu-nação, que dá as costas ao Forte das Cinco Pontas, atual Museu da Cidade do Recife. Olho o rosto de Dona Santa, iluminando todo o cortejo. Volto-me para a Noite dos Tambores Silenciosos, vejo a Torre da Igreja de Nossa Senhora do Terço, todo resto é um colorido afro. Consigo ver um menino negro correndo pelo lado esquerdo da Igreja, Rua das Águas Verdes, onde nasceu Solano Trindade. Ele vem em minha direção, segura a minha mão, e nós, poetas, nos juntamos ao cortejo de Dona Santa. É hora de dormir.

ODALITA ALVES, nascida na favela de Santo Amaro, é poeta, escritora independente com sete livros publicados e doutoranda em Linguística pela UFPE.

JEIMS DUARTE, artista plástico. Sua obra é centrada no desenho, numa ênfase constante sobre duas temáticas complementares: o corpo e a cidade. O retrato humano de tradição expressionista e uma pintura de paisagem focada na obsolescência urbana confluem, para o artista, numa “Poética da Construção de Ruínas”.

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