Foto: Carnaval Filmes/Divulgação
“Ela é uma mulher que vai à luta contra o Brasil machista e transfóbico pela possibilidade de sonhar. Porque pode até ser um sonho com o qual algumas pessoas não se identificam, mas a Paloma vai lá achar uma liturgia que legitime seu casamento. Só que, dentro dessa estrutura capitalista, ela é proibida de sonhar. Como mulher trans, seu corpo está pronto para trabalhar, mas ela está proibida de construir qualquer subjetividade. Ela é apta para trabalhar e inapta para sonhar”, elabora Marcelo.
Difícil pensar em uma escolha mais apropriada para exprimir tal complexidade do que Kika Sena. Alagoana radicada em Brasília, ela foi indicada por uma amiga para Maria Clara Escobar, produtora de elenco de Paloma. “Fui para o teste sem saber ao certo qual personagem ia fazer. Logo na minha primeira experiência no cinema, estreei já no papel de protagonista. Tinha ali uma responsabilidade que é do tipo ‘peguei esse osso e não vou largar nem vou devolver de qualquer forma’. Sou muito perfeccionista e me cobro muito, mas, num primeiro momento, ainda estava em conflito, criticando as escolhas das personagens e com dificuldade de me distanciar dela para ver que essas mesmas escolhas eram legítimas. Então, na preparação, peguei tudo e coloquei num cantinho do quarto, como se a Paloma estivesse lá, para acolher e legitimar os sonhos dela como sonhos possíveis de uma mulher trans nordestina e periférica. E aí o mergulho começou a ser mais intenso, tudo começou a fluir e não desapeguei de mim, mas dei espaço pra que Paloma pudesse em mim existir”, lembra.
Segundo Marcelo Gomes, a ideia era trabalhar com atrizes trans para interpretar as personagens trans. “Porque falta muito trabalho para as atrizes trans no Brasil e também porque talvez elas pudessem emprestar algo de suas próprias experiências”, pontua. Quando Kika veio para o projeto, tudo se agigantou, nas palavras do diretor. “Foi uma experiência magnífica trabalhar com ela, uma atriz de dedicação completa. Ela impregnou o filme de uma forma tão grande, que todos nós achamos que o título não devia ser mais Vestido branco, véu e grinalda, e sim Paloma”, revela o diretor.
Na conversa com a Continente, ao saber deste comentário do realizador, a atriz se comove: “Fico emocionada com essa fala, pois, em algumas conversas com Silvinha Lourenço, que fazia a preparação do elenco, eu chegava para ela na intimidade e perguntava se eu estava ali porque era travesti e qualquer travesti poderia fazer a Paloma então. E ela me respondia que eu era boa o suficiente para estar ali. Desbloqueei esse lugar e comecei a fluir na percepção de que Paloma, na verdade, não é apenas o retrato de uma mulher trans que tem um sonho, mas o retrato de muitas mulheres que querem viver e realizar seus sonhos”.
Paloma alia a profundidade dramática que Marcelo Gomes demonstra em seus filmes anteriores, seja na investigação pela alma feminina que é Era uma vez eu, Verônica (2012), ou na delicada tessitura relacional de Cinema, aspirinas e urubus (2005), a um posicionamento político no cotidiano de um país transfóbico como o nosso. E a premiação de melhor filme e atriz na mostra Première Brasil do Festival do Rio, em outubro, ratifica: força que nos alerta, sua protagonista é “uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”, como reza a canção.
Imagem: Divulgação
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.