Portfólio

Larissa de Souza

Pele e pintura, mistério e presença

TEXTO Bianca Coutinho Dias

05 de Outubro de 2022

'Cura da alma', 126 x 146 cm, 2022

'Cura da alma', 126 x 146 cm, 2022

Imagem Larissa de Souza/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 262 | outubro de 2022]

Assine a Continente

É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas você também não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo.”

Stela do Patrocínio

Ao tocar feridas ainda abertas, Larissa de Souza faz com que nos confrontemos com nosso lugar no mundo: a artista questiona o silenciamento da população negra pelo pensamento colonial e empresta seu corpo e a força de sua gestualidade para refundar lugares de enunciação.

Larissa carrega a história de muitas mulheres e – junto de sua mãe, da avó e de suas amigas –, com rigor estético e poético, reescreve uma linhagem que perfura certezas e desnaturaliza lugares prontos. Seu trabalho nos conduz por uma busca incisiva e cortante e, também, alegre e forte, que perfaz o tremor de suas origens. A artista transforma sua busca em algo que a leva ao outro. Escutando a ancestralidade inscrita no corpo, a partir de um legado e da transmissão de saberes herdados de outras mulheres negras, ela persegue, com a força de sua arte, um lugar de enunciação que foi sequestrado pela história. Sua força convoca outra história, em que se torna autora da sua vida.


Tristezas não lavam pratos. Tinta acrílica sobre tela, 100 x 120 cm, 2022.
Imagem: Larissa de Souza/Divulgação


A relação com a arte se esboçou ainda criança, quando se deparava com os grafites nos muros. O grafite – escrita que crava um nome e algo no corpo na cidade – aparece como a primeira chama para um desejo que vem sendo sustentado ao longo da existência. Na adolescência, teve contato com alguns materiais de pintura que eram vendidos em um comércio de artesanato próximo à sua casa, e suas primeiras telas foram as paredes do quarto. O processo de experimentação de técnicas, tintas e pigmentos se intensificou quando trabalhou como vendedora em uma loja de materiais artísticos. Ali, no contato com artistas de diferentes trajetórias e linguagens e imersa em cores e objetos, começou a estabelecer uma pesquisa própria, de maneira intuitiva. O universo cromático das casas da infância e as cores vistas em filmes e fotografias criaram uma paleta singular que agora é explorada de maneira densa e vigorosa.


Há riquezas dentro de mim. Tinta acrílica, folha de ouro e aplicações
sobre linho. Imagem:Wallace Domingues/Divulgação

Larissa desenvolveu também toda uma iconografia particular: símbolos condensam a memória afetiva e trazem junto rastros de resistência pessoal e coletiva. Como Maria Auxiliadora – artista negra que registrou a mudança social de São Paulo e do Brasil a partir de um “diário pessoal” pintado – ela transita entre o delicado e o pungente de um cotidiano reinventado e com cosmologia própria.

Há pinturas em que, por exemplo, aparece a figura de uma mão preta com anéis de ouro, mostrada sobre a cabeça de alguma personagem, derramando estrelas douradas – presença e mistério que trazem as marcas da fé e do sentimento de religiosidade herdadas de suas ancestrais. Há também o caju e o cajueiro, símbolos recorrentes que representam a origem da avó cearense. São símbolos que conjugam a busca por pertencimento e ancestralidade, território de uma invenção que se deposita nas palavras da artista: “Dei significado ao caju, essa fruta brasileira e nordestina, a partir da ideia de uma árvore genealógica, buscando as origens para colher uma identidade”.


Três Marias. Tinta acrílica, bordado e aplicações sobre linho,
166 x 129 cm, 2022. Imagem: Larissa de Souza/Divulgação

A obra de Larissa de Souza é uma espécie de testamento poético que testemunha os litorais possíveis de uma vida atravessada por tantas outras vidas, em lugares de tremulação e espanto, que vai aos confins do real de onde surgem os ecos da herança africana, reintroduzida na história a partir de um novo ponto que repensa as imagens a contrapelo das hegemônicas narrativas brancas. A construção de uma iconografia singular baseada na relação com outras mulheres negras periféricas é um gesto político que denuncia os efeitos da colonização na memória. Larissa recria o mundo e refunda um discurso crítico aos mitos do Brasil colonial, trilhando um caminho percorrido por suas ancestrais na arte.


Larissa de Souza em seu ateliê. Foto: Fábio Setti/Divulgação

O cotidiano registrado e celebrado em situações marcadas pelo afeto, especialmente em encontros entre mulheres, dialoga diretamente com a citada Maria Auxiliadora, artista que também nos lembra de que o campo da arte nunca esteve imune aos preconceitos e rótulos eurocêntricos como “primitiva”, “popular” ou naif.


Tia Carmem do Ximbuca. Tinta acrílica e pérola de mica, sobre linho
e aplicações sobre resina, 40 x 49 cm. Imagem: Larissa de Souza/Divulgação

Do contágio com as coisas do cotidiano, Maria Auxiliadora subverte qualquer enquadramento e se faz artista a partir de sua radical singularidade, descobrindo no território do doméstico a força do indomesticável e do que escapa, utilizando-se de materiais incomuns, como a massa plástica Wanda (massa poliéster recomendada para pequenos reparos) e mechas do próprio cabelo crespo, usado para dar volume aos corpos negros que pintava. Ao afirmar sua identidade africana e original com a dança, a comida, a religião, os ritos, Maria Auxiliadora concerne ao seu trabalho uma força política que não é um manifesto, mas a materialização da expressão pessoal de uma mulher negra que encontra voz olhando para perto, para si e para os seus.


Ná Agontimé. Tinta acrílica e pérola de mica, sobre linho e aplicações
sobre resina, 39 x 50 cm. Imagem: Larissa de Souza/Divulgação

Ela nunca estudou técnicas formais de pintura e desenho, tendo como único ponto de referência o olhar sensível e seu entendimento de mundo, assim como Larissa de Souza que, nas fronteiras da poesia e nos rasgos do real, faz surgir a arte como ética e exercício de filiação e de escrita de uma linhagem, a partir do feminino e também da fé. Na pintura A reza da mãe essa dimensão está presente como dádiva e uma espécie de dom que, igualmente, se presentifica também em A bênção das crianças.

A obra de Larissa de Souza sustenta e tensiona os problemas estruturais que a artista vive desde a infância como mulher negra e periférica, e revela o Brasil como um todo. Seu trabalho dialoga não só com Maria Auxiliadora, mas também com Sônia Gomes, Rosana Paulino, Aline Mota e outras artistas que sustentam a dimensão biográfica em seus trabalhos, com gestos que perseguem com tenacidade a reparação histórica, reinventando o lugar de seu corpos e de tantas outras mulheres.

***

Da infância, morando com a mãe em uma ocupação, da pintura iniciada nas paredes do quarto, a obra de Larissa de Souza segue hoje às paredes do Masp, perfazendo um caminho de mitos próprios, de histórias surgidas do encontro com a fricção da rua. Nesse percurso extraordinário, ela resgata das ruínas da história a possibilidade de, mesmo de forma fragmentária, reescrever o país, juntando cacos para destacar rostos, mistérios, presenças e ausências, envolvendo retratos com passamanarias de armarinhos, pequenas conchas e caquinhos coloridos – materiais com forte carga simbólica e afetiva.


Eu e meu amor (Anos 1980), série Retratos perdidos.Tinta acrílica sobre
linho e resina, 21 x 14 cm. Imagem: Larissa de Souza/Divulgação

Os cacos – fitas, rendas ou azulejos – utilizados em volta de molduras de resina são materiais simples que revelam o extraordinário da vida. As aplicações e impregnações da matéria sensível de que sua vida é constituída provocam o resgate de uma história quebrada e fragilizada que encontra força, justamente, em cada fragmento. Búzios, espelhos e pontos de luz com folhas são utilizados para fazer cintilar algo mágico e mítico. E há a observação atenta da rua, das casas antigas, portas, portões e uma paixão obstinada pela força cromática e pela geometria das coisas, das habitações.

A artista se lembra de que tinha um caderno em que desenhava rostos que lembravam máscaras africanas. No seu trabalho, os rostos têm lugar importante. São pontos para onde o olhar é fisgado, e o sentido de reparação histórica é também permeado pela reparação simbólica, subjetiva e afetiva. É o que vemos na obra Cura da alma ou em Nunca estaremos sozinhas. Com a brasa que faz arder o singular, reencena-se a vida a partir da força de um legado silenciado.


Autorretrato Em processo de cura. Tinta acrílica,
bordado, aplicações, folha de prata e lápis de cor
sobre linho.
Histórias brasileiras – Masp.
Imagem: Larissa de Souza/Divulgação

Na sua pintura, muitas vezes Larissa utiliza o próprio corpo como referência de um gesto ou matriz de onde a pulsação pode derivar, como em Retratos perdidos, série em que o insondável escreve o que é impossível ser escrito, reinventam-se linhagens e restauram-se destinos. Corpos e presenças se desenham com fineza ímpar e perplexidade luminosa que se presentificam pelo dourado, cor que remete a Oxum – deusa da beleza, orixá do amor e das águas – cuja cor é o amarelo. O dourado das folhas de ouro simboliza a riqueza e a abundância de Oxum que, no trabalho de Larissa, ganha um significado para além da riqueza, trazendo um brilho que compõe as imagens e encarna a magia que a artista parece querer tocar pela pintura.

A mulher que carregou a água. Tinta acrílica e aplicações sobre tela, 110 x 110 cm, 2021. Imagem: Wallace Domingues/Divulgação

Além disso, há um elemento que se repete e porta sentido especial, como o sankofa, ideograma presente no Adinkra, conjunto de símbolos ideográficos que significa possibilidade de retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Larissa explica o lugar desse símbolo na sua obra: “É um ideograma muito presente em nosso cotidiano, vemos muito em janelas e portões. É uma herança ancestral da África Ocidental e acho que esse símbolo condiz muito com o que produzo e acabo trazendo em portais e molduras de retratos, por exemplo”.


A morada. Tinta acrílica e folha de ouro sobre linho, 110 x 110 cm, 2022. 
Imagem: Wallace Domingues/Divulgação

Dos ecos, cantos, falas, assombros e alumbramentos originários a artista transfigura a dor, sem escamotear o sofrimento que há na sua e em tantas histórias, convoca a força de seu corpo e o de outras mulheres – ancestrais e contemporâneas – e o poder da transmissão de uma história que renasce em imagens pulsantes que lembram que o pessoal é também político, em retratos de figuras de resistência invisibilizadas como Tia Carmem do Xibuca e Na Agontimé.


A mulher que vê a lua de dia é a mais bela.Tinta acrílica e folha de
ouro sobre linho, 100 x 120 cm. Imagem: Wallace Domingues/Divulgação

Da incontornável brutalidade, Larissa de Souza escreve um corpo radicalmente seu e de tantas outras. Ao nomear uma obra e afirmar que “Há riquezas dentro de mim”, ela inventa um lugar de festa para além da dor, apesar de todo quinhão de horror. Uma festa, um grito, uma celebração, em que algo da vida e do milagre se encontram, como destaca Jean-Luc Nancy, no belíssimo livro Corpo, fora: o corpo floresce, desabrocha na pele, a pele é sua eclosão, mistério e presença. 

BIANCA COUTINHO DIAS, crítica de arte.

Publicidade

Banner Prêmio Cepe

veja também

Falas curtas

Cecília Ramos

A geografia afetiva de Morgana e Paulo