Aos 22 anos, exímia dançarina e estrela em ascensão com poucas novelas no currículo, Daniella Perez, filha mais velha de Gloria, era a Yasmin de De corpo e alma, “novela das oito” e carro-chefe da programação noturna da Rede Globo. Na noite de 28 de dezembro, uma segunda-feira, foi emboscada pelo ator e companheiro de cena Guilherme de Pádua num posto na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, vizinho à saída dos estúdios onde os dois haviam gravado as cenas em que seus respectivos personagens – o dele se chamava Bira – terminavam um relacionamento. No veículo dele, cujas placas haviam sido adulteradas com fita isolante preta, como todos os jornais noticiariam nos dias seguintes, estava a sua então esposa, Paula Thomaz, 19, grávida de quatro meses.
Guilherme nocautearia Daniella com um soco e a colocaria no seu veículo, partindo do posto – e sendo testemunhado por frentistas que seriam rastreados nos meses seguintes não pelos detetives da polícia carioca, mas, sim, pela própria mãe e por amigos da vítima – com direção a um matagal cerca de 7 km adiante. Hoje, a área corresponde ao número 511 da Avenida Cândido Portinari; há quase 30 anos, era um lugar desabitado, escuro, sombrio até. Com a atriz ainda desacordada, e muito provavelmente no interior do automóvel, Guilherme e/ou Paula (suas versões nunca convergiram) proferiram 18 estocadas com um instrumento perfurocortante, que num primeiro momento se conjecturou ser uma tesoura, mas cujas descobertas da autópsia revelaram ser um punhal – muito embora a arma nunca tenha sido encontrada. Os golpes se localizaram no pescoço e, em sua maior parte, no peito esquerdo, próximo ao coração.
As fotografias de Daniella morta, com calça jeans, um tênis branco de cano alto e uma blusa preta sem mangas, foram publicadas nas páginas dos jornais brasileiros em 30 de dezembro de 1992. A capa do caderno Cotidiano, da Folha de S.Paulo, trazia a manchete “18 golpes de tesoura matam Yasmin” e uma foto do cadáver em meio a uma espécie de storyboard com a linha do tempo do assassinato. As quatro páginas de cobertura se dividiam em várias retrancas, curtos textos a abordar a biografia de Daniella e de Guilherme, a reação do marido dela, Raul Gazolla, e a repercussão da tragédia – “Crime passional bate renúncia de Collor”, eis o título da página 5 deste caderno 3 de um dos periódicos de maior circulação no país.
“Passional” porque Guilherme alegava, àquele momento, que estava sendo assediado por Daniella e, portanto, sua mulher teria agido por ciúmes. E porque, em todo país, dezenas, centenas de revistas de fofocas (antes das redes sociais, a via para se cultuar e cutucar o panteão das celebridades televisivas) estampavam imagens do ator e da atriz em cena como se o namoro entre Bira e Yasmin houvesse se metamorfoseado em um caso na vida real. Em um dos momentos mais pungentes de Pacto brutal, Gloria Perez folheia alguns exemplares dessas revistas e vaticina que aquelas imagens eram muito piores do que as fotos do cadáver estirado no matagal: “Isso aqui é continuar matando a minha filha”.
O depoimento inédito de Gloria Perez tem papel fundamental na série, que reconta, combasenosautos processuais, o crime que chocou o país em 1992.
Imagens: HBO Max/Divulgação
Recontar com minúcias o crime, ancorando-se nos dados compilados no processo penal que condenou, em 1997, Guilherme e Paula por homicídio qualificado, e enquadrar a maneira como a imprensa narrou o ocorrido e buscou modos de mantê-lo aceso na mente dos leitores e assinantes ao longo dos meses seguintes são as chaves de Pacto brutal, que, segundo a assessoria de comunicação da HBO Max, foi a série documental mais assistida no Brasil nas últimas semanas de julho. Os dois primeiros capítulos, liberados em 21 de julho, e os três restantes, divulgados uma semana depois, constituem uma bem-urdida trama no formato true crime, como se configurou denominar tal gênero (ou não, posto que há quem defenda que se trate mais de um filão, ou subgênero, do que um gênero propriamente dito) que explora a recapitulação de, o nome explicita e dirime qualquer dúvida, delitos reais.
Curioso perceber, na nomenclatura em inglês, a presença do adjetivo true, que pode ser traduzido como “verdadeiro”. É como se cada produto abrigado sob o guarda-chuva true crime forjasse sua própria busca pela verdade por trás de sequestros, estupros, filicídios e outros tipos de assassinatos, ou ainda pelos meandros das mentes dos perpetradores de tais ações violentas e violadoras da legislação penal. Não deixa de ser, também, uma incursão pela tentativa de atualizar o conceito elaborado pela filósofa alemã Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, publicado em 1963 a partir do julgamento de Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela operacionalização da estrutura de extermínio nos campos de concentração nazistas.
O mal não seria prerrogativa exclusiva de psicopatas, mas também de homens comuns; no caso de Eichmann, um burocrata que, apenas por cumprir ordens, contribuiu ativamente para a morte de mais de cinco milhões de judeus; no caso de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz, um casal que acreditou que extinguir uma vida, por motivos torpes, era algo aceitável, assim como propagar mentiras deliberadas a respeito de quem havia matado – Guilherme declarou que as marcas na face de Daniela resultavam de um soco do marido, Paula afirmou que não estava no carro. “O resultado de uma substituição coerente e total da verdade dos fatos por mentiras não é passarem estas a ser aceitas como verdade, e a verdade ser difamada como mentira, porém um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real – incluindo-se entre os meios mentais para esse fim a capacidade de oposição entre verdade e falsidade”, escreve Hannah Arendt em Verdade e política, no livro Entre o passado e o futuro (Perspectiva, 2007).
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Em 3 de agosto, quando Tatiana Issa e Guto Barra falaram à Continente em uma videochamada no escritório da Producing Partners, nos Estados Unidos, Guilherme de Pádua, hoje um pastor em Belo Horizonte, havia subido um vídeo em seu canal no YouTube a fim de pedir perdão a Gloria Perez e Raul Gazolla. Responsável por diversos projetos premiados, como o curta-metragem Dominique (2019), no qual dividem a direção assim como em Pacto brutal, e a série Immersive.world, em que exploram justamente novas possibilidades narrativas, a dupla não havia visto a tardia confissão de arrependimento.
A série, por meio de depoimentos de Raul e amigos como Cláudia Raia e Eri Johnson, estabelece que Guilherme teria ido à delegacia para prestar solidariedade à família – “qualquer coisa, estamos aí”, dissera ao viúvo, decerto em um espelho da frase arendtiana de “um processo de destruição do sentido mediante o qual nos orientamos no mundo real”. Assim, “as insistentes inverdades que acabaram sendo perpetuadas durante tantos anos”, nas palavras de Tatiana Issa, tornaram-se razões pelas quais ela e Guto Barra pausaram os programas de variedades como Pedro pelo mundo (GNT) e documentários sobre arte e cultura, como Yves Saint Laurent: My Marrakech (2017), para enveredar pelo true crime.
“A vontade era mostrar que foi um crime premeditado, que não houve nenhuma dessas inverdades publicadas durante 30 anos, que não houve caso entre eles e que ela não foi por conta própria. E de mostrar a dor da mãe, a luta da Glória, e fazer o resgate da Daniela, que era muito importante para a gente. Quem foi essa pessoa? Por que ela ficou esquecida durante 30 anos e nunca pode ter voz nesse período”, explica Tatiana. “Esse era um assunto de que a gente sempre falava, porque marcou muito a nossa geração. Éramos jovens também na época do crime. Um dia, a Tati resolveu entrar em contato com a Gloria, que ela já conhecia, e mandou uma mensagem. A gente falava muito: talvez ela não queira falar mais sobre isso, talvez ela mesma queira fazer ela própria uma série, um livro, seja lá o que for… E tudo dependia de ela se sentir confortável em querer que essa história voltasse a público. Ela respondeu na hora. Foi o timing: ela estava pronta e querendo revisitar essa história, e já acompanhava nossa trajetória como documentaristas, e a gente estava com vontade de contar”, emenda Guto.
Como preceito norteador, o foco recairia nos autos processuais, na memória e no acervo de Gloria Perez, sem abertura para os assassinos condenados ou seus advogados. “Queríamos uma coisa com um ponto de vista, sabe? Não simplesmente uma reportagem jornalística, como muitas que já haviam sido feitas, e, sim, encontrar exatamente a mensagem que precisava ser passada e quais as discussões paralelas que esse crime trouxe, como a sociedade machista brasileira, os problemas de corrupção e problemas do sistema policial e da justiça e o papel da imprensa. Partimos do princípio de que esse crime era um lugar que podia impulsionar todas essas discussões e resgatar a humanidade da vítima do crime, né? No sentido de que, quando morrem, parece que elas viram uma descrição num papel: 22 anos, morena, 1,62m de altura. Parece que desaparecem a pessoa”, acrescenta o codiretor.
Pacto brutal se assemelha a tantos outros seriados reunidos sob a aba “Crimes verídicos” na Netflix – a exemplo do argentino Quem matou Maria Marta?, os norte-americanos O caso Gabriel Fernandez e Making a murderer, a produção brasileira Elize Matsunaga: era uma vez um crime e os franceses O assassino da minha filha e Grégory –, no sentido de que se utiliza de estratégias narrativas para fisgar quem os vê.
Pacto brutal se insere entre as narrativas que se debruçam sobre procedimentos de crimes. Imagem: HBO Max/Divulgação
“Creio que o formato que se estabeleceu como true crime, essa narrativa de fatos reais bastante jornalística, nem é um gênero mesmo, mas um subgênero. É que nem o noir, que já existia antes da narrativa criminal em outras obras. É um filão dentro das narrativas criminais. É um formato consagrado no Chile e na Colômbia, aqui na América do Sul, e também no mercado internacional e nos Estados Unidos, onde se trabalha muito a indústria dos julgamentos e a indústria do procedure, ou seja, os filmes e séries que se debruçam sobre os procedimentos dos crimes. No caso OJ Simpson, por exemplo, isso se cruza”, observa a jornalista e pesquisadora de cinema e audiovisual Luiza Lusvarghi, autora de O crime como gênero na ficção audiovisual da América Latina (Appris, 2018). “Tem essa dimensão de simulacro do real, que também é uma estratégia narrativa.”
Tatiana Issa revela que, a partir do roteiro de Guto Barra, a preocupação era “colocar o espectador ali acompanhando aqueles acontecimentos”. “O primeiro é naquele dia e naquela noite, quase como se o espectador estivesse vivendo aquilo junto com a família. Pela seriedade, por estarmos lidando com provas, testemunhas e tanta coisa delicada, não podia escapar nada ou nenhuma peça ficar solta. Construímos a direção de forma a viver aquele dia naquela angústia. Cadê a Daniela? Todo mundo sai para procurar, o Raul está procurando, a Gloria também. Um liga para o outro e por aí. No que a Gloria dá de cara com o corpo, o espectador dá de cara com o corpo também. E o choque que a família teve vendo aquela cena o espectador tem também. Estamos levando o espectador a sentir o que aquela família sentiu. Para a Gloria, era importante que as pessoas entendessem a brutalidade daquele crime tão bárbaro e violento que a filha dela sofreu”, comenta a realizadora.
Embora a série descortine, por diversas vezes, as fotografias da cena do crime, o momento do assassinato em si não é reconstituído. “Escolhemos usar o que é chamado, entre aspas, de ‘dramatização’ para passar sentimentos, para dar a sensação do medo, a sensação daquele matagal, do perigo iminente que nos ronda, de pessoas que podem nos rodear e que a gente pode não perceber… E deixar uma atmosfera, o que faz com que aquilo se torne quase palpável. Você tem um carro, um pouco de matagal, um perigo, a noite… Você tem um drone do mar, está tudo escuro e aquilo não quer dizer nada, mas te dá a sensação de algo que te rodeia e até de coisas que são ditas pelos nossos entrevistados. Por outro lado, depois você tem os sentimentos humanos da dor, da perda, da angústia, do desespero, da fé e de implorar para que não seja verdade. Mas, através de imagens, tentamos colocar o crime dentro de um lugar real. Quando colocamos, inclusive, as imagens de arquivo, estão dentro de televisões ou rádios no cotidiano, para mostrar, no cru, o quanto aquele crime foi real”, completa Tatiana.
Enquanto a série era difundida (“está disponível em todos os países da América Latina e Estados Unidos”, segundo a HBO Max), os dias de agosto transcorriam com notícias diárias relativas ao caso. Na quarta, 10, o canal Splash do portal UOL anunciava que “seguir a novela após morte de Daniella Perez teria revoltado Tarcísio Meira”. A jornalista Carla Albuquerque participara de uma live no canal Operação Policial, do YouTube, e dissera que o veterano ator, um dos protagonistas de De corpo e alma, em cuja equipe ela também estava, reclamara da decisão da Globo: “Toda uma equipe ficou devastada. É no mínimo estarrecedor. A novela se chamava De corpo e alma, mas a alma foi embora. Éramos só o corpo, um bando de zumbis (...) Ele era um ator muito interessante, correto, nunca reclamava, estava sempre focado... Um dia, ele não se aguenta e fala: ‘não entendo por que ainda estamos aqui gravando essa novela’”.
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Na rotina do advogado e professor universitário Maurilo Sobral, o fascínio por casos assim é recorrente. “A questão de consumir esse tipo de conteúdo é muito forte, tanto para alunos de começo de graduação como para estudantes de final de curso. Há um encantamento muito grande, sobretudo nos mais novos, sobre o Direito Penal. Particularmente, não vejo muito séries e filmes assim, porque já lido com crime corriqueiramente, e como objeto de estudo, mas sempre me chegam muitas perguntas e, às vezes, assisto a um episódio ou outro a partir do que é trazido à sala. Por exemplo, se estou dando um tipo penal específico, como crimes econômicos, surge A casa de papel. Mais recentemente, para falar de crimes mais violentos, veio Pacto brutal”, constata o mestre em Direito, que leciona as disciplinas de Sociologia Jurídica e Processo Penal da Uninassau do Recife.
E esse interesse não é exatamente novidade em uma “sociedade extremamente dependente do Direito Penal”, como ele sublinha. “Talvez o Direito Penal chegue antes, para os alunos, do que qualquer outro tipo de direito. Porque é o que todo mundo vê, de uma forma ou de outra, logo cedo. Meu pai, por exemplo, gostava de assistir a programas como Aqui agora. Quando me tornei professor, entendi por que os alunos viam o programa de Cardinot na hora do almoço e, quando iam para aula à tarde e à noite, queriam conversar sobre aqueles crimes. Porque isso se reproduz ao longo das gerações. Com os podcasts no Spotify ou essas séries na Netflix, o acesso mudou. Em vez de perguntarem “professor, viu Cardinot hoje?”, perguntam “e o caso de Daniella Perez?”, destaca Maurilo, que também integra a Comissão de Advocacia Popular – CAP da Organização dos Advogados do Brasil da OAB – PE e o coletivo Força Tururu, de Paulista, na Região Metropolitana do Recife.
Porque o caso de Daniella, como ele lembra, reverberou também no Código Penal Brasileiro, instituído pelo decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pelo então presidente Getúlio Vargas. A lei 8072/90, que versa sobre os crimes hediondos e veio cinco décadas depois, foi alterada a partir da mobilização provocada por Gloria Perez, que arregimentou apoio entre amigos, parlamentares e outras mães de vítimas de crimes cruéis, e conseguiu mais de um milhão de assinaturas para solicitar que homicídios qualificados figurassem no rol daquelas infrações mais graves – o que terminou acontecendo, porém não de modo a incidir no julgamento dos assassinos da sua filha.
“Foi uma situação de impacto nacional que provocou o legislador”, recorda Maurilo. “Mas anos depois, outro fato, aquele caso das pílulas anticoncepcionais de farinha, levou à inserção do delito de falsificação de medicamento na mesma lei de crimes hediondos. Tanto medicamento, aliás, como produtos saneantes, como, por exemplo, água sanitária. Acho perigosa essa expansão fácil da lei por conta de pressão social, até porque nunca tivemos uma reforma substancial do nosso Código Penal, que é inspirado no Código Rocco, da Itália, criado durante o fascismo”, afirma.
A ideia de trial by media é explorada tanto na série homônima lançada em 2020 pela Netflix, vertida no Brasil para Condenados pela mídia, como em outros casos em que o furor social e o engajamento da imprensa desempenharam papel fundamental no desenrolar e desfecho do julgamento. Quem se dedicou a estudar isso na sua tese de doutorado, defendida em 2007 na Uerj sob orientação do jurista Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, foi a desembargadora federal Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Sob o título A publicidade opressiva de julgamentos criminais – Uma investigação sobre as consequências e formas de superação da colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito a um julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição de 88, a pesquisa partia da premissa de que os crimes são acontecimentos públicos que interessam à sociedade e alguns, mais do que outros, engendram uma comoção popular tamanha, que contamina o tribunal do júri.
A série Eu terei sumido na escuridão se baseia na caça a um criminoso na Califórnia.
Imagem: HBO Max/Divulgação
“Entendi que determinadas situações, várias características e circunstâncias que vão se somando aqui e ali, permitem que se afirme que um determinado crime é uma situação de trial by media, que em português chamei de publicidade opressiva. Esse caso da Daniella Perez, indiscutivelmente, é um. Porque o público imediatamente se engajou naquele evento que, claro, teve um contorno muito dramático e particular, por se tratar de protagonistas da novela das oito, com todos os ingredientes de espetacularização e o próprio movimento que a mãe da vítima fez para engajar a opinião pública para assegurar o que eles chamam de funcionamento da justiça”, situa a magistrada, integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD e professora de Direito Processual Penal da Unirio.
Ela entende que o tema não se circunscreve apenas ao âmbito jurídico, mas extrapola a academia e o judiciário para se instalar no magma cultural que nos constitui como nação. Tanto que oferece aos seus alunos o projeto de extensão Crime e cinema, com exibição de filmes e debates sobre os elos entre arte e essa violência capaz de nos atrair como um ímã, mais ainda em casos de clamor universal.
Como situa na entrevista por vídeo chamada à Continente: “Nesses ambientes de publicidade opressiva, é como se a imprensa assumisse o papel de fazer a justiça funcionar como ela deveria. Como se, não fosse o acompanhamento da imprensa ou determinada campanha, o julgamento não fosse conduzido de forma correta. A pressão é alimentada pela imprensa, mas, ao mesmo tempo, o público adere àquilo e é óbvio que isso tem um potencial importante de influenciar no resultado do julgamento”.
Exemplo cabal é o caso Suzane von Richthofen. Em A menina que matou os pais e O menino que matou meus pais, obras dirigidas por Maurício Eça e lançadas em setembro de 2021 pela Amazon Prime Video, o assassinato de Manfred e Marísia von Richthofen é revisitado com a liberdade da ficção. Coube à atriz Carla Díaz interpretar a filha mais velha do casal de descendência alemã, que, em outubro de 2002, planejou, junto ao namorado Daniel Cravinhos e ao irmão dele, Cristian, o parricídio e o matricídio que escandalizaram o Brasil. Quatro anos depois, Suzane, Daniel e Cristian encararam o julgamento, que em 2021, no bojo da publicidade gerada pelos filmes, foi trazido à tona pelo Correio Braziliense. “Em 17 de julho de 2006, Suzane e os irmãos Cravinhos sentaram no banco dos réus para o primeiro dos cinco dias de julgamento pela morte de Manfred e Marísia. A audiência ocorreu no Primeiro Tribunal do Júri do Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães, na Barra Funda, Zona Oeste de São Paulo, e foi acompanhada como uma novela. Chegaram a ocorrer sorteios de convites para assistir o julgamento da tribuna, e até mesmo a apresentadora Luciana Gimenez estava entre os presentes”, reportava a cobertura do jornal.
Simone Schreiber analisou o caso Suzane von Richthofen em sua tese. “Foi bem interessante, porque ela já estava com uma situação de liberdade e, ao falar no Fantástico em decorrência dessa entrevista que teve uma repercussão muito ruim, voltou a ser presa”, aponta, ressaltando a relação de retroalimentação entre mídia e justiça. “O que eu defendi é que o juiz, numa situação dessa, tinha que tomar medidas para diminuir o impacto da publicidade opressiva no julgamento. De um lado, a gente tem o direito de liberdade de expressão e de informação, que tem total proteção constitucional e é relevantíssimo numa democracia. Ninguém discute isso. Só que, do outro lado, você tem outros direitos que estão ali na balança e é preciso ponderar e decidir qual direito prevalece e qual pode, eventualmente, ser restringido. Minha tese era que, se for um ambiente de trial by media, sim, de uma campanha muito massiva pela condenação dos réus, você poderia impor algumas restrições à liberdade de expressão. O problema é que hoje em dia existem muitos juízes fisgados pela publicidade”, constata.
Ou, para usar uma formulação típica do true crime, capturados pela ideia de construir e protagonizar sua própria narrativa.
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Em texto escrito em março deste ano para sua coluna Mirante, hospedada no site da Continente, a repórter especial Débora Nascimento discorreu sobre “os crimes reais como entretenimento”. “O problema não é chamar a atenção do espectador para conhecer ou se aprofundar em histórias tenebrosas. Não é de hoje que se informar sobre a desgraça alheia atrai as pessoas, seja para se compadecer, ajudar, proteger-se de situações semelhantes, saber de falhas na investigação policial (como explicado na série Olhos que condenam) ou por puro entretenimento mesmo. Isso já rendeu incontáveis livros, filmes, documentários, séries, composições e agora podcasts”, argumentava.
Como exemplo desse interesse temos a cobertura dos crimes de Jack, o estripador, entre 1888 e 1891 em Londres; A sangue frio, escrito por Truman Capote em 1965, a partir da chacina de uma família inteira em uma pequena cidade do Kansas; e a inquirição vigorosa que Janet Malcom faz dos limites da ética jornalística em O jornalista e o assassino (1990), no qual examina o elo entre o escritor e jornalista Joe McGuinniss e Jeffrey McDonald, acusado de matar a esposa e as duas filhas em 1970 – McDonald contratou McGuinniss para ouvir o seu lado da história, porém depois o processou quando Fatal vision (1983) saiu corroborando sua condenação. As duas miradas para a morte de Kathleen Peterson: The staircase, documentário de Jean-Xavier Lestrade, filmado a partir de 2004, quando o marido e acusado de assassinato Michael Peterson aguardava julgamento na Carolina do Norte (EUA), no catálogo da Netflix, e A escada, a versão ficcional estrelada por Colin Firth e Toni Colette, em cartaz na HBO Max.
Prossegue a lista: Linha direta, programa veiculado pela Globo de 1999 a 2007, e o Linha Direta Justiça, que uma vez por mês, entre 2003 e 2007, reconstituía “crimes famosos que abalaram o Brasil”, como o caso dos irmãos Naves, o naufrágio do Bateau Mouche e o assassinato de Ângela Diniz pelo seu namorado Raul Doca Street; já em 2020, o podcast Praia dos ossos remontou, em oito episódios, a morte de Ângela, a pantera de Minas, com zelo e acuidade extrema na apuração das informações, o que se vê também em Serial, podcast de jornalismo investigativo que, desde 2014 e em três temporadas apresentadas por Sarah Koenig, vai esmiuçando casos como a morte de uma estudante em Baltimore ou o desaparecimento de um soldado no Afeganistão.
Serial foi o primeiro podcast descoberto pela produtora Carol Ferreira, jornalista de formação e consumidora voraz do filão true crime. “Lendo, ouvindo ou vendo, consumo muito true crime. Acho que a violência atrai, sim, e que isso é algo que fascina mesmo, talvez até inexplicavelmente. Pode ser a nossa morbidez ou o fato de existir um certo charme perverso nesse negócio de mergulhar em histórias macabras. Ou ainda porque quem faz esses produtos sabe bem construir as narrativas. É uma estrutura meio formulaica, mas que dá certo. É excelente e absolutamente viciante. Não consigo parar”, atesta.
Um dos seus prediletos é Eu terei sumido na escuridão (no original, I’ll be gone in the dark), concebido pela escritora Michelle McNamara como a publicação que espelharia a sua caça ao criminoso que ganhou uma alcunha sua – Golden State Killer, o assassino do Estado dourado, a Califórnia. Michelle criou um blog sobre crimes não solucionados em 2006 e não escondia sua obsessão pelo East Area Rapist ou Original Night Stalker. Quando morreu por overdose medicamentosa acidental, em 2016, deixou anotações incompletas e uma imensa pesquisa. Em fevereiro de 2018, seu livro, concluído por amigos e pelo viúvo, o ator e comediante Patton Oswalt, saía nos Estados Unidos (no Brasil, via editora Vestígio, chegou cinco meses depois).
Naquele mesmo ano, um ex-policial aposentado chamado Joseph James DeAngelo, de 72 anos, pai e avô, foi preso – graças a evidências de DNA desenterradas por detetives amadores e também a partir do trabalho de Michelle – sob a acusação de ser o responsável por vários homicídios. De acordo com o Federal Bureau of Investigation – FBI, ele estava ligado a 12 assassinatos, 45 violações e mais de 120 assaltos dentro e nos arredores de Sacramento, na área oriental da Baía de São Francisco e no sul californiano. Finalmente, o Golden State Killer tinha sido pego.
Seriado da Globoplay, O caso Evandro foi realizado a partir do podcast produzido por Ivan Mizanzuk. Imagem: Globoplay/Divulgação
Em 2020, a HBO lançou a série em seis episódios (sete se contarmos o epílogo disponibilizado em setembro de 2021, após a condenação de DeAngelo), apostando na convergência midiática típica da esfera true crime. Na semana de fechamento desta reportagem, por exemplo, as amigas e, literalmente, parceiras no crime Carol Moreira e Mabê Bonafé estavam em Curitiba para divulgar o livro Modus operandi – Guia de true crime (editora Intrínseca), fruto direto do podcast homônimo que apresentam há dois anos. “Desde muito pequenas, eu e Mabê gostávamos muito dessas histórias de crime mesmo: séries relacionadas à investigação, como CSI, histórias de Agatha Christie. Éramos as únicas amigas uma da outra que gostávamos disso. Conversávamos tanto sobre o tema, que um dia ela sugeriu que a gente fizesse o podcast”, relembra Carol.
Em um dos episódios semanais da primeira quinzena de agosto, Modus operandi #128 discutia o caso de Suzanne Sevakis, vulgo A garota da foto, protagonista in memoriam do filme que a Netflix produziu e lançou neste ano. Mesmo sendo um crime (na verdade, vários, pois Suzanne foi sequestrada e abusada sexualmente ao longo de anos por um mentecapto que se passava por seu pai) já notabilizado pela exposição na plataforma de streaming, sempre há uma nuance a sobressair em cada plataforma. “Crime é o que não falta. As pessoas perguntam se a gente não tem medo de acabar as histórias. É muito difícil. Infelizmente, sempre teremos histórias para contar”, diz a podcaster.
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Em 2018, quase quatro anos antes de Pacto brutal, um outro portal se abriu para conduzir o país a uma viagem também endereçada a 1992. Em 31 de outubro, apareceu o primeiro episódio da quarta temporada do podcast Projeto Humanos. Na sucinta descrição, um perfeito resumo do que seria debulhado em O caso Evandro: “No dia 6 de abril de 1992, na cidade de Guaratuba, litoral do Paraná, o menino Evandro Ramos Caetano desapareceu. E a partir desse dia, Guaratuba nunca mais foi a mesma”.
No decorrer de 37 episódios, alguns com até 2h30 de duração, e três anos, a voz calma de Ivan Mizanzuk, o produtor, roteirista, editor e apresentador do Projeto Humanos, guiou os ouvintes por um labirinto de evidências forenses, depoimentos contraditórios, revelações obtidas sob tortura, preconceito religioso, abuso de autoridade policial e excessos na cobertura midiática de um caso que ficou nacionalmente conhecido como “As bruxas de Guaratuba”. Evandro sumiu após sair de casa rumo à escola, a 150m de distância.
Poucos dias depois, seu corpo foi encontrado em estado tenebroso: mãos decepadas, cabelos cortados e vísceras extirpadas. Em julho de 1992, sete pessoas são presas: Celina e Beatriz Abbage, respectivamente, mulher e filha do prefeito do município, Aldo Abagge; o pai de santo Osvaldo Marcineiro; o pintor Vicente de Paula Ferreira (falecido no encarceramento, em 2011); o artesão Davi dos Santos Soares; Francisco Sérgio Cristofolini; e Airton Bardelli dos Santos. A polícia apregoa que o grupo sacrificou o menino em um ritual satânico.
“Eu nem conhecia o termo true crime quando comecei a fazer O caso Evandro”, revela Ivan em uma conversa por videochamada com a Continente. “Como eu gosto de olhar para casos criminais, sabia que queria contar aquela história porque, esteticamente e narrativamente falando, tem essa questão do mistério – o que será que aconteceu? Vamos pegar as peças e investigar. Era essa dinâmica narrativa que me interessava mesmo. Agora, como eu sempre produzi histórias reais, fazia sentido pegar um caso que era aqui perto de casa, com o qual eu tinha algum contato e que também tinha uma influência em mim quando era criança”, complementa.
Usando todas as técnicas narrativas possíveis para moldar seu estilo (“tenho minha experiência acadêmica como professor, fiz mestrado e doutorado e dei aulas de Metodologia Científica”) e agindo simultaneamente como um arqueólogo, detetive, jornalista e craque na arte do storytelling, Ivan radiografou diversos equívocos no processo penal que prendeu, julgou e condenou os acusados. “O que aconteceu nesse caso é que a pergunta não era mais quem matou, e, sim, se essas pessoas acusadas são culpadas. Acho que essa é a pergunta central, assim como eu acho que um consumo maior do true crime é uma maneira do grande público começar a refletir sobre questões de segurança pública”, sintetiza.
Os nove episódios do seriado O Caso Evandro, produzido pela Globoplay, foram exibidos entre maio e julho de 2021 e tiveram reações cruciais para uma reavaliação do caso. “O alcance da série é, de fato, muito maior, a ponto de o secretário de justiça aqui do Paraná ter visto a série, e não ter ouvido o podcast, e ter aberto um grupo de trabalho na secretaria. Já no início de 2022, ele emitiu uma carta de pedido de perdão a toda a família das vítimas e dos acusados”, coloca Ivan. Uma ossada foi encontrada e foi identificada como sendo de Leandro Bossi, outro menino que sumiu na mesma época de Evandro. “Tudo isso foi muito por conta da pressão da série”, crê o podcaster.
Em abril de 2022, ele descerrou a quinta temporada do Projeto Humanos, voltada para um caso tão labiríntico e violento quanto o de Evandro: as dezenas de garotos emasculados entre 1989 e 1993 em Altamira, no Pará. Dezesseis episódios foram apresentados até julho, quando houve uma pausa. Mas quem já ouviu o podcast e conhece seu método rigoroso, alicerçado em evidências, mesmo que caudalosas, e em tudo que pode ser legitimado, sabe: ele vai voltar. “Acho que vou encerrar o caso Altamira e não mais voltar. Agora, para Guaratuba, muito provavelmente eu volte em algum momento. Eu nunca vou esquecer o Evandro e o Leandro. E quero saber o que aconteceu lá. Se eu acredito na inocência das sete pessoas, se eu acho que tem alguma relação entre Evandro e Leandro e ninguém fez essa relação até hoje, eu vou tentar fazer”, arremata Ivan Mizanzuk.
A julgar pela amplitude do interesse que o Brasil vem demonstrando por true crime e seus derivados, e pelas histórias violentas que nos constituem como nação, público, engajamento e audiência não lhe faltarão.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.