O Caso Evandro: de quem é a culpa?
Em livro e podcast, Ivan Mizanzuk aborda elementos de uma história intrincada, cheia de contradições, personagens complexos, reviravoltas e conflitos de interesses. Tragédia também gerou minissérie
TEXTO JOCÊ RODRIGUES
01 de Outubro de 2021
No início da década de 1990, foram muitos os casos de crianças desaparecidas além do menino Evandro
IMAGEM PROJETO HUMANOS/ REPRODUÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]
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Era o fim de uma tarde de outubro de 2018, quando recebi a ligação da minha namorada. Depois de falarmos amenidades, veio a pergunta dirigida a mim: “Você conhece a história das Bruxas de Guaratuba?”. Com algum desconcerto, confessei que não. Eu estava por fora, precisava admitir. Logo na sequência, a indicação: “Você precisa ouvir o podcast O Caso Evandro!”. Na hora, a dica passou batida, mas foi por pouco tempo. Ela mora em Curitiba, no Paraná, e foi lá que a febre do programa criado por Ivan Mizanzuk se espalhou primeiro. Pouco menos de uma semana após a nossa conversa, percebi com certo espanto que aquele já era um dos assuntos mais comentados na imprensa, no boca a boca e no diz-que-me-diz entre amigos e colegas. O podcast viralizara e seria por muito tempo tema de conversas e de debates acalorados.
O Caso Evandro faz parte da quinta temporada do Projeto Humanos, que Mizanzuk mantém desde 2015 e que traz histórias reais contadas com esmero em formato storytelling. Essa temporada, especificamente, reconstruía os principais eventos e os bastidores do cruel assassinato do menino Evandro Ramos Caetano, de apenas seis anos, em 1992. O menino foi encontrado em um matagal, com os pés e as mãos cortados, cabeça raspada e os órgãos retirados. O crime macabro aconteceu na cidade de Guaratuba, litoral do Paraná e ficou popularmente conhecido como o caso das Bruxas de Guaratuba. Nome chamativo que se devia ao possível envolvimento de uma seita satânica, que assombraria a região ainda por anos.
Para contar essa escabrosa história, o professor universitário, escritor e jornalista dedicou tempo e sanidade mental para se debruçar sobre milhares de arquivos, entrevistas e documentos relacionados ao caso e encontrou detalhes que haviam passado batido até aos olhos mais atentos. Acontece que Ivan foi paciente. Paciente o suficiente para revirar, esmiuçar e revisar uma montanha de autos processuais. Não só isso. Ele teve coragem e determinação para fazer um jornalismo puro-sangue. Para se inteirar ao máximo do que havia acontecido, ele gastou a sola dos sapatos, queimou grana e asfalto para apurar fatos e entrevistar os envolvidos, interpelando-os com perguntas precisas e, por vezes, desconcertantes. Assim, na lata.
Seguindo a linha de iniciativas estrangeiras como Serials e S-Town, que traziam uma união harmoniosa entre produção, trilha sonora e tato para a criação de um ambiente cativante que enriquece a experiência do ouvinte, Ivan Mizanzuk soube distribuir os complexos elementos de uma história intrincada, cheia de contradições, personagens complexos, reviravoltas e conflitos de interesse. Além disso, escancarou a pouca habilidade das autoridades responsáveis no manuseio das provas – uma sucessão de erros capaz de causar infarto a qualquer pessoa com o mínimo conhecimento sobre a cadeia de custódia. Tudo isso costurado de modo muito cuidadoso e responsável.
O resultado foi uma história envolvente, muito bem- produzida e amarrada; cheia de reviravoltas, teorias satânicas, conluios políticos e que logo se transformou num estrondoso sucesso como nenhum outro podcast havia alcançado por aqui. Tanto que rendeu um livro e uma série com oito episódios na Globoplay.
Ivan Mizanzuk produziu podcast depois vertido em livro e em série televisiva. Foto: Globoplay/ Divulgação
PÂNICO SATÂNICO
Em meio a tantos assuntos e camadas que se alternam durante a narrativa, um dos aspectos interessantes da investigação e da montagem feita por Ivan gira em torno de como ele aos poucos vai desmistificando e desarmando os aspectos satânicos e sobrenaturais dos acontecimentos, abrindo as portas para a entrada de uma realidade mais suja e mais humana. Esforço presente no podcast e, principalmente, no livro publicado pela editora Harper Collins. Para ilustrar a maneira como o pavor e as teorias da conspiração envolvendo forças sobrenaturais e pactos macabros afetam nossa mentalidade, Mizanzuk recorreu a estudos sobre o fenômeno conhecido como pânico satânico, que começou a ser estudado mais seriamente nos Estados Unidos a partir da década de 1980.
“Geralmente, a narrativa era a seguinte: em uma pequena cidade do interior de algum estado, há uma seita satânica em operação”, explica Ivan no livro. “Seus integrantes são policiais, políticos, empresários e até membros da igreja local. Eles são responsáveis pelo abuso sexual sistemático de crianças. Em outros casos, sacrificam os menores, tudo em nome de Satã. Há variações disso, mas a estrutura é sempre a mesma: uma seita satânica secreta com membros poderosos fazendo mal às crianças da comunidade.”
O tal pânico satânico faz parte do conjunto de pânicos morais, estudados detalhadamente pelo sociólogo e criminólogo sul-africano Stanley Cohen (1942-2013) no livro Folk Devils and moral panics (MacGibbon and Kee, 1972), que prevê também a grande influência na mídia de massa para a difusão do medo. No caso do menino Evandro, esse fator não foi diferente. A jornalista Maria Celeste Corrêa verificou na época o local onde o corpo de Evandro foi encontrado e escreveu um relatório em que questionava se a criança não teria sido vítima de um ritual satânico. Comentário que foi mais que suficiente para começar uma onda de desconfiança e paranoia que só iria crescer.
Um exemplo bastante atual disso pode ser encontrado no caso Lázaro Barbosa de Souza, que chocou o país com a onda de crimes que cometeu. Choque que potencializou o psicológico e gerou maior comoção de norte a sul, quando foi noticiado pela imprensa que ele seria praticante de magia negra e que estaria sendo ajudado por forças diabólicas.
Para entornar ainda mais o caldo do caso da morte de Evandro Ramos Caetano, naquela época, a televisão brasileira ainda sentia o impacto da minissérie A Ilha das Bruxas, produzida e exibida pela extinta Rede Manchete, com um enredo sinistro e repleto de rituais, sacrifícios de crianças e invocações do mal. E não se deve esquecer também os boatos que circulavam de que o então presidente Fernando Collor estaria envolvido com ritos de magia negra para manutenção do seu poder político. Tudo do jeito que o Tinhoso gosta. Ele, e os jornais sensacionalistas. A mídia, é claro, adorou e agarrou com unhas e dentes a oportunidade de explorar o assunto, colaborando na disseminação de revolta e pânico entre a população, que àquela altura já havia se transformado em uma grande massa furiosa e sedenta por sangue.
Postura que corresponde muito bem àquilo que o psicólogo francês Gustave Le Bon (1841-1931), chamou de psicologia das multidões: “Só pelo fato de pertencer a uma multidão, o homem desce vários graus na escala da civilização (…) O indivíduo em multidão é um grão de areia no meio de outros grãos que o vento arrasta a seu bel-prazer”. Toda unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues (1912-1980), apoiado pelo pensamento do poeta estadunidense Henry David Thoreau (1817-1862), que em seu livro A desobediência civil (Penguin, 2012), mui certeiramente escreveu: “Há escassa virtude nas ações de massa dos homens”.
Capa do livro, que nasceu do podcast O Caso Evandro. Foto: Divulgação
FINAL ABERTO
Podcast, série e livro do Caso Evandro possuem abordagens particulares e se complementam como num time que se junta para contar melhor a mesma história. A série da Globoplay, por exemplo, dirigida por Aly Muritiba, conta com a participação do próprio Ivan, explora alguns pontos com habilidade, mas deixou muita coisa de fora. Um dos méritos da série, no entanto, é a abordagem dos momentos de tortura sofridos pelos acusados e a impunidade dos executores. As imagens são fortes, a edição cria um clima de suspense e de tensão, mas que comove e gera impacto e indignação que levam a reflexões sobre o funcionamento do sistema judicial brasileiro.
Já o podcast e o livro são relatos mais completos, aos quais o interessado pode recorrer para se aprofundar no emaranhado de fatos que vão dando nós na cabeça e, em seguida, os desfazem. Ou, pelo menos, tenta, já que são muitas as rotas e caminhos possíveis de serem seguidos. Essa é, inclusive, uma das qualidades do trabalho de Mizanzuk, pois ele faz questão de que ouvinte e leitor sigam por essas rotas sem muitas certezas. Ele erige argumentos que, à primeira vista, são irretocáveis; mas, na sequência, aponta suas fragilidades e incongruências, fazendo-os desabar como castelo de cartas assentado em terreno instável. Isso acontece mais de uma vez, sempre sem aviso prévio. O que torna a experiência de imersão ainda mais interessante.
Ao passo que as investigações avançam num jogo de erros, um misto de repulsa e de anseio pelo desfecho vai se alojando também em quem as acompanha. Quem está falando a verdade? Quais os interesses de fulano e de sicrano? Por que está sendo feito isso e não aquilo? As respostas, quando existem, chegam a conta-gotas, como remédio amargo diluído em copo de incertezas. E o efeito não é imediato. Ele demora, porque vai sendo filtrado pela dúvida e frieza calculista.
No caso das péssimas e criminosas investigações, acabamos chegando a algumas conclusões e conhecendo alguns culpados, mas outra grande interrogação permanece em relação à morte de Evandro e de outras crianças desaparecidas na mesma época: quem é, ou quem são os verdadeiros culpados? Uma pergunta incômoda sobre a qual o próprio Mizanzuk especula com talento e perspicácia maiores do que o de alguns dos investigadores oficiais do caso.
“O cenário que desenho é o seguinte: havia um serial killer em Guaratuba, que, por qualquer motivo, matava crianças. Suas vítimas teriam em torno de 7 a 8 anos, e aquele matagal na cidade seria seu local de despejo dos cadáveres. Apesar da localização remota, com o intuito de dificultar os trabalhos da polícia, caso os corpos fossem achados, ele tirava as mãos, os dedos dos pés e o couro cabeludo de suas vítimas. Por fim, retirava os órgãos internos para que o processo de esqueletização fosse acelerado. É sempre bom lembrar: a tecnologia de identificação por DNA ainda era pouco conhecida. Logo, ele devia acreditar que, se as crianças fossem encontradas com seus cadáveres reduzidos a ossadas, seria impossível identificá-las. Com ‘sorte’, o corpo jamais seria encontrado.” Uma hipótese que ele levanta no livro, no podcast e, apenas de passagem, na série.
Serial killer ou não, o culpado continua livre, enquanto a vida de pessoas inocentes foi virada de cabeça para baixo graças ao despreparo e à crueldade de verdadeiros monstros blindados por patentes. Muito mais reais, tangíveis e palpáveis que qualquer entidade ou força demoníaca. Enquanto isso, ainda ressoa, após quase 30 anos, a urgente pergunta em relação às crianças que não tiveram a chance de crescer: a culpa é de quem?
JOCÊ RODRIGUES, jornalista.