Ensaio

O documentário brasileiro e sua mirada para a política

Filmes que registram a turbulência política que trouxe o Brasil ao cenário das eleições deste ano

TEXTO Kel Gomes

01 de Setembro de 2022

Em 'Democracia em vertigem' (2019), Petra Costa associa ponto de vista subjetivo à ação documental

Em 'Democracia em vertigem' (2019), Petra Costa associa ponto de vista subjetivo à ação documental

Foto Netflix/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 261 | setembro de 2022]

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A primeira palavra que me vem à cabeça, quando penso em documentário brasileiro, é pluralidade. Variados temas, formatos, modos de produção e estéticas fazem com que nosso cinema documental escape às classificações fáceis. Afinal, em um país sul-americano tão vasto, são praticamente infinitas as possibilidades de histórias e sujeitos retratados, ainda que as escolhas dos documentaristas apontem para certas heranças e recorrências. Essa variedade de narrativas forma um mosaico de registros e olhares sobre contextos históricos, políticos e sociais que convocam representações, interpretações, conexões.

Analisando em termos estéticos, os campos de exploração dos limites fronteiriços entre o real e a ficção estão cada vez mais instigantes, assim como o entrelaçamento do pessoal ao coletivo, que mobiliza memórias, afetos e partilhas. Mas, especificamente sobre a linguagem documental, é possível perceber dois modelos de base principais: o cinema-direto e o cinema-verdade (ou cinema-verité). Apesar desses conceitos serem, muitas vezes, confundidos ou assemelhados, em linhas gerais, o primeiro designa a pouca intervenção do dispositivo e do(a) realizador(a) sobre a realidade apreendida, enquanto o segundo designa a interação da equipe com tal realidade, explicitando o dispositivo. Segundo a pesquisadora e crítica de cinema Luiza Lusvarghi, “desde o histórico documentário Aruanda (1960), o gênero documentário em versão nacional foi largamente influenciado por essas duas tendências, com certa margem de predominância para o cinema-verdade” .

Atenta a esses procedimentos e também a seus desvios, e vivendo um ano eleitoral tão aguardado e inquietante, me questiono: por quais lentes realizadoras e realizadores do cinema têm captado o caos político? Em tempos sombrios e exaustivos, diante da catástrofe em que se tornou o cenário da política no Brasil, torna-se necessário (e estimulante) destacar alguns filmes que se propuseram a investigar (ou ao menos revelar) aspectos de como nosso país chegou ao retrocesso democrático e desgoverno que tem hoje, que fazem refletir e abrem debates sobre os rumos possíveis e imagináveis.

Há que se considerar, no entanto, que imaginar panoramas, perspectivar, é cada vez mais complicado, dado o gosto amargo de distopia que estamos sentindo há alguns anos, entre golpe, crimes, violências simbólicas e literais, pandemia e múltiplas crises. E em um misto de cansaço e esperança é que vai se configurando o ano de 2022. A eleição presidencial, com o consequente acirramento de tensões, é o novo capítulo que começa a ser escrito. Então, filmes realizados até aqui podem nos ajudar a entender melhor as coisas? Ou já são anacrônicos?

CINEMA DO GOLPE
No que se refere aos bastidores do impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, chama a atenção que tenha se desenhado um momento de “cinema do golpe”, marcado, sobretudo, pelos recortes de renomadas diretoras mulheres: Maria Augusta Ramos, Petra Costa, Anna Muylaert e Lô Politi. Além delas, outros realizadores, como Douglas Duarte, Lula Buarque, Boca Migotto e Lucas Campolina, também buscaram extrair formas fílmicas sobre o golpe, cada um à sua maneira, ampliando as possibilidades interpretativas. Mas, considerando as relações de gênero, o machismo e a misoginia que envolveram a primeira mulher que presidiu o Brasil, as perspectivas femininas ganham destaque.

A urgência das cineastas por retratar esse acontecimento certamente não se deve apenas por este ser um marco traumático na nossa história política, mas também pela percepção das violências de gênero que o envolvem e como a trajetória de Dilma Rousseff se tornou um emblema para a luta das mulheres brasileiras por mais espaço e respeito, principalmente em relação a posições de liderança. Uma luta que, nas eleições de 2022, deverá se focar na retirada de Jair Bolsonaro do poder, dado que seu projeto de governo é patriarcal e sexista.

Desse trio de filmes de realizadoras, O processo, de Maria Augusta Ramos, foi o primeiro documentário a ser lançado, chegando aos cinemas em 2018. Acompanhando de perto a dinâmica parlamentar e os procedimentos jurídicos realizados pela equipe de defesa da então presidenta, o filme provoca angústia ao imergir o espectador e a espectadora na materialidade do jogo de poder fadado à vitória do inimigo. Percurso doloroso para quem não é indiferente ou cínico diante da farsa de todo o espetáculo institucional e da fraude do relatório que destituíram Rousseff de seu cargo.

Pelo método observacional (mais próximo ao cinema-direto) característico de Maria Augusta Ramos, com sobriedade na medida e inequívoco posicionamento, o documentário expõe o ritual: seus atores, espaços, burocracias, flagras e contradições, explicitando fragilidades de nossa democracia, nas entranhas do Senado e do Congresso. Assim, nos oferece consciência plena e constatação da injustiça e das artimanhas institucionais. Há ainda, ao final, a fala de autocrítica do ex-ministro Gilberto Carvalho sobre descaminhos de governança do Partido dos Trabalhadores. Como a cúpula do partido se pensa nos dias atuais é, inclusive, algo que eu gostaria de ter acesso desse tipo novamente.

Em Democracia em vertigem, lançado em 2019, Petra Costa se arrisca em associar seu ponto de vista subjetivo à ação documental e ir além do impeachment em si, abrangendo uma síntese didática de origens e diagnósticos, que faz da história da democracia em nosso país também uma personagem a ser descrita. A evidente construção de uma linha temporal coesa vai das manifestações de 2013 até a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018; mas Costa inclui, ainda, comentários sobre a trajetória de Lula, a construção de Brasília e o período da ditadura militar. Investindo em uma narração em primeira pessoa, a diretora relaciona sua história familiar e pessoal aos acontecimentos políticos nacionais, e, mesmo com limitações e aspectos questionáveis, mostra um poderoso trabalho de pesquisa, de registro de imagens raras e inéditas e de montagem, que ordena tudo de maneira eficiente.

Ademais, sua carga poética é o principal elemento que gera um tipo específico de envolvimento com quem assiste, num espelhamento de indignação e tristeza coletivas. Em determinado momento do filme, Petra Costa diz: “Eu não sei como essa história deve ser contada”, e esse também é um sentimento partilhado entre muitos. Do jeito que escolheu contar, ela acaba servindo de guia para os mais “confusos” e insere reflexões sobre as bases para a ascensão da extrema-direita.

Alvorada, de Anna Muylaert e Lô Politi, lançado depois, em 2021, parte do acesso exclusivo ao Palácio da Alvorada, residência oficial da presidência da República, retratando o cotidiano de Dilma Rousseff no período de seu julgamento, quando esperava pelo veredicto de sua destituição. As diretoras optam por uma abordagem predominantemente direta e observativa, sendo as intervenções muito pontuais. E, ao contrário dos outros dois filmes já mencionados, este abraça o protagonismo da ex-presidenta (ainda que ela mesma reivindique: “eu não sou um personagem”), trazendo seu ponto de vista para o primeiro plano. Além disso, mira o funcionamento interno do local onde ela passa os dias, desde que foi afastada de suas atividades, observando também rotinas, funcionários e visitantes.

Nesse encontro entre câmera, personagem e lugar, o documentário vai se configurando como uma negociação entre o que é íntimo e público, entre uma morada e um espaço de poder, entre o que é estruturalmente frio e o que é visivelmente afetivo, entre a convivência e a solidão, entre o que é ser uma figura próxima e uma figura heroica. Percebe-se, ainda, que a busca por mais proximidade é interrompida, não se concretiza, e essa tensão não é explorada como tal. Estabelece-se uma relação de confiança e respeito entre quem filma e quem é filmado, mas não de intimidade. Assim, o tom é de um distanciamento reflexivo, com imagens simbólicas e melancolia.


Em Alvorada, Muylaert e Politi tiveram acesso à rotina de Dilma durante o julgamento do seu impeachment. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação

A maior força do filme é agir como uma contranarrativa feminista, permitindo-nos ver e ouvir Dilma Rousseff por outros ângulos, dignos de sua inteligência, firmeza, capacidade de liderança e equilíbrio. Ângulos estes muito diferentes dos enquadramentos midiáticos hegemônicos que colaboraram para sua derrubada, mas que jamais a vencerão. É, ainda, bonito (e saudoso) ver o Palácio com pessoas diversas, na equipe da presidenta e entre grupos que se reuniram com ela, especialmente de movimentos sociais. Desde o governo interino e ilegítimo de Michel Temer e, atualmente, no desgoverno de Bolsonaro, isso se tornou uma imagem impossível.

Excelentíssimos, de Douglas Duarte, lançado em 2018, também adentra o cotidiano do poder: nesse caso, o Congresso Nacional. Com acesso aos bastidores, o projeto inicial era retratar a atuação do legislativo federal, mas no meio do caminho, bem no começo das filmagens, estas foram atravessadas pela autorização do processo de impeachment de Dilma Rousseff por Eduardo Cunha, o então presidente da câmara. Em entrevista ao jornalista Adriano Garrett, do site Cine Festivais , Duarte diz: “Quando a gente se toca que o filme foi sequestrado e que ele é um filme do impeachment, não adianta você segurar as rédeas e impedir que ele seja o que o material é. Então, isso criou, pra gente, um ímpeto muito forte”. Tal ímpeto levou a um filme que expressa a dinâmica intensa das circunstâncias, ao mesmo tempo em que revela a rotina dos parlamentares.

Cronologicamente e tematicamente, Excelentíssimos complementa a narrativa de O processo, mas sua linguagem e abordagem se diferenciam. Primeiro, por observar os opositores de Dilma, acompanhando partidos como o PSDB e PMDB e as bancadas religiosa, do boi e da bala. Segundo, pelos procedimentos documentais, pois, além da narração do próprio diretor, inclui entrevistas, imagens de arquivo e faz uso de outros tipos de intervenção, como a trilha sonora climática.

A aproximação com o gênero horror pode ser sentida por ficarmos diante de uma câmara de deputados majoritariamente masculina e branca com posicionamentos e falas tão repulsivas – incluindo a presença tenebrosa de Jair Bolsonaro, que o filme prevê como um personagem de destaque. Mas, curiosamente, outro personagem é quem encerra o filme: Lula. Naquele momento, a narração conta sobre sua perda dos direitos políticos. Mas, na imagem, vemos um enquadramento contra-plongée, que parece dizer outra coisa. Ele está num palco, discursando com um microfone, sob uma iluminação que cria certa aura sobre sua pessoa. Lula voltará triunfante? Aqui, do futuro, podemos dizer que sim, pelo menos por enquanto.

INFLEXÃO CONSERVADORA
Logo após o afastamento de Dilma Rousseff, o golpe continuou como projeto político com a posse de Temer e a situação brasileira foi reconfigurada com retrocessos assustadores da inflexão conservadora. Os impactos provocados em diversos setores da nossa sociedade pioraram ainda mais com a eleição de um presidente da extrema-direita, em 2018. Além do desmonte de programas sociais, estamos sofrendo, desde então, cortes de verbas nas áreas da educação, saúde, cultura, meio ambiente, ciência e tecnologia; violações aos direitos humanos se tornaram rotina; violências contra os povos indígenas se intensificaram; pobreza e desigualdades só aumentam. E, ainda, na eclosão da pandemia (que não acabou), vimos o país agonizar entre o negacionismo e a incompetência.

Sobre tudo isso, que mais parece um roteiro de filme de horror ou de filme-catástrofe, o conceito de necropolítica – desenvolvido pelo filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe – me parece bastante adequado para entender os últimos anos. As professoras e pesquisadoras Daniela Ribeiro Castilho e Esther Luíza de Souza Lemos, em artigo da Revista Katálysis, da Universidade Federal de Santa Catarina , dizem que “a necropolítica de Bolsonaro utiliza o Estado para subjugar qualquer possibilidade de vida ao poder da morte. Não se trata de ações desconexas, eventuais, pontuais ou excepcionais, trata-se, sim, de ações políticas que se transformaram em regra e não em exceção, que definem quem importa e quem não tem importância, quem é essencial e quem é descartável”. Pesadas palavras, mas lúcidas.

Amigo secreto (2022), de Maria Augusta Ramos, expõe a repercussão das reportagens conhecidas como “Vaza Jato”. Frame do filme Amigo secreto/ Nofoco

E o cinema brasileiro, sufocado pelos ataques, silenciamentos, desmontes e crise sanitária, passa por uma espécie de limbo no campo documental sobre este período e estes governos áridos. Muitos filmes (documentais, ficcionais e híbridos) trabalham temas e sujeitos que se conectam à nossa configuração política ou comentam sobre ela, mas o gesto de abordar, diretamente, atores e ações, peças e engrenagens do governo federal, ainda está em falta.

Investigações, por exemplo, sobre como a campanha de Bolsonaro se beneficiou de uma rede disparadora de mensagens em massa por aplicativos, desinformação, polarização e proliferação dos discursos de ódio nas redes interessam por serem efervescentes e definidores de um contexto – e, talvez, por se tratarem de assuntos tão quentes e complexos, ainda não tenham sido apreendidos para a linguagem audiovisual. Porém, volto alguns anos para citar Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa (2017), de Rubens Rewald, Tales Ab’Sáber e Gustavo Aranda, filme exibido pela primeira vez em 2017 no 50º Festival de Brasília, e que, utilizando-se de uma premissa simples, faz uma colagem de falas de anônimos e lideranças políticas da extrema-direita no Brasil, por meio de vídeos da internet entre 2015 e 2016. Certamente, na época de seu lançamento, poucos imaginavam que essas figuras alucinadas e reacionárias ascenderiam ao poder que têm hoje.

E, por falar em arquivo digital e voltar alguns anos para entender o presente, penso no documentário Memória sufocada (2021), de Gabriel Di Giacomo, que também tem a internet como base de seu material de pesquisa e elaboração. Nesse caso, as próprias buscas e a navegação delineiam os paralelos entre o período da ditadura militar e a atualidade do governo Bolsonaro. Os tempos distintos se entrelaçam e se espelham nos sons, imagens e discursos, apresentados e montados na estética das redes sociais. Para além do que é revelado, o filme é um gesto contra o esquecimento de uma história de dor que ainda tem reverberações e que devemos lutar para não se repetir.

Dos filmes mais recentes, Amigo secreto (2022), de Maria Augusta Ramos, é obra incontornável, que reflete sobre os últimos cinco anos no nosso país. O documentário acompanha os bastidores do trabalho investigativo de jornalistas do The Intercept Brasil e do El País durante a cobertura da Operação Lava Jato da Polícia Federal – mais especificamente durante a série de reportagens jornalísticas conhecida como “Vaza Jato”, que teve sua primeira publicação feita em junho de 2019. Facilitados por um hacker, os diálogos secretos vazados pela reportagem abalaram a credibilidade da Operação, ao apresentar algumas de suas graves distorções e a parcialidade do então juiz Sergio Moro nas acusações contra Lula, que foi impedido de disputar as eleições de 2018.

As jornalistas Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, da edição brasileira do El País, e Leandro Demori, do The Intercept Brasil, são os protagonistas. Indo além de um retrato de bastidores de seus personagens-guias, o filme apresenta uma organização de fatos, informações e interpretações sobre a Operação e seus desdobramentos a partir do trabalho deles. Desta forma, oferece uma narrativa criticamente consistente e aprofundada, em contraposição à mídia hegemônica, que inclusive colaborou para a construção da imagem de Moro como um herói absoluto contra a corrupção, ao lado do procurador Deltan Dallagnol. O filme desconstrói completamente essa imagem, expondo o lawfare, destacando que os prejuízos econômicos causados ao país pela Operação foram bem maiores do que seus benefícios, discutindo a interferência dos Estados Unidos e seu interesse na Petrobras e conectando todo esse degenerado modus operandi a um preparo de terreno que favoreceu o bolsonarismo.

Tal como em O processo, Maria Augusta Ramos explicita a farsa em mais um contexto onde se imbricam política, justiça e mídia. Porém, neste caso, seu procedimento documental se diferencia por acompanhar os procedimentos jornalísticos e, assim, incorporá-los ao filme, tornando-o mais dinâmico e abrangente, com momentos puramente observacionais, mas também com o uso de materiais de arquivo (gravações das audiências da Operação, coberturas de telejornais etc.) e entrevistas bastante reveladoras conduzidas pelos jornalistas com fontes como juristas, advogados, delatores (incluindo um ex-executivo da Odebrecht que fala sobre a pressão dos procuradores para que comprometesse Lula) e outros jornalistas. Nessa incorporação, fica evidente a importância do jornalismo comprometido com a democracia. Se não fosse a Vaza Jato, estaríamos vivenciando hoje a possibilidade concreta de uma reeleição do Lula?

Em todo este texto, muito foi dito sobre passado e presente. Mas, e o futuro? Confesso que concentrei meu otimismo, principalmente, na juventude que vi sendo retratada em filmes como Espero tua (re)volta (2019), de Eliza Capai, e Eleições (2019), de Alice Riff. Em ambos, o desejo e a ação pela democracia pulsam com muita energia e potência. São inspiradores, revigorantes e chamam a atenção para a importância da educação, da conscientização e da participação popular. Em Espero tua (re)volta, registram-se as manifestações dos estudantes secundaristas de São Paulo, entre 2015 e 2018, colocando em primeiro plano a luta dos movimentos estudantis.

Em uma linguagem jovial e didática, tendo como guias três estudantes representantes da luta e utilizando imagens de arquivo, o filme mostra de que maneiras as ocupações se desenrolaram e os jovens se empoderando a partir da defesa de suas causas. Já Eleições acompanha estudantes do Ensino Médio de uma escola pública, também em São Paulo, que se organizam para a corrida eleitoral de uma nova gestão do grêmio estudantil. Há diálogos, tensões e dinâmicas que são um verdadeiro preparo para a vida política adulta. Ainda que essa vida nos surpreenda com situações absurdas, pois, verdade seja dita: nada nos preparou para o baque que vivemos atualmente, não é mesmo?

Por fim, um adendo. Em matéria da Revista Gama , a professora de Antropologia da USP Heloisa Buarque de Almeida, integrante do Numas (Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferença), explica que a compreensão do corpo como agente político é fundamental para qualquer tipo de mudança. “Corpos são politicamente moldados, mas eles também podem moldar a política”, diz a antropóloga. Nesse sentido, faço uma nova pergunta: Somente filmes que retratam as engrenagens do poder são suficientes para nos convocar a pensar (e agir) sobre o status quo da política? Como resposta, quero deixar aqui alguns outros títulos recentes que enriquecem esta nossa discussão.


Chão (2019), de Camila Freitas, retrata as dinâmicas dos integrantes do MST de Goiás. Imagem: Vitrine Filmes/Divulgação

Começando pelo filme que traz já no nome essa ideia: Meu corpo é político (2017), de Alice Riff, que acompanha o cotidiano de quatro pessoas LGBTQIAP+ da periferia de São Paulo, incluindo a artista Linn da Quebrada; Indianara (2019), de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa, sobre a trajetória da ativista trans Indianara Siqueira; Quebramar (2019), de Cris Lyra, sobre um grupo de mulheres lésbicas; Transversais (2019), de Emerson Maranhão, sobre cinco pessoas atravessadas pela transexualidade – filme que foi censurado em edital por Bolsonaro; e O caso do homem errado (2017), de Camila de Moraes, o segundo longa-metragem dirigido por uma mulher negra a ter lançamento comercial nos cinema do Brasil e que retrata a violência policial e o racismo por meio da história de Júlio César, executado pela polícia em Porto Alegre, em 1987.

E ainda: Retratos de identificação (2014), de Anita Leandro, feito a partir de pesquisas nos acervos do Dops da Guanabara, no Rio de Janeiro, e que resgata histórias de violência brutal do Estado, crimes ainda impunes e que ainda nos assombram; Torre das donzelas (2019), de Susanna Lira, que se concentra nas memórias e no afetos de um grupo de mulheres ex-presas políticas da ditadura militar, incluindo a presidenta Dilma Rousseff; Chão (2019), de Camila Freitas, que retrata, de dentro, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, especificamente de Goiás, onde foi filmado, apresentando imagens, gestos e pessoas com dignidade; Martírio (2017), de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho, sobre a longa história de sobrevivência dos Guarani-Kaiowá, enfrentando a constante ameaça de extermínio de sua etnia; e Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa terra é nossa! (2020), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, espécie de cartografia audiovisual sobre a ancestralidade e a atualidade do território Tikmũ’ũn/Maxakali, cada vez mais cerceado pelos brancos.


Companheiras de luta e cárcere de Dilma Rousseff durante a ditadura são personagens do longa Torre das donzelas (2019). Frame do filme Torre de Donzelas/Distribuição da Elo Company/Divulgação

Importante lembrar que algo comum a toda lista é sentirmos falta de outras menções. Essa falta, inclusive, não é sentida apenas por quem a lê. Eu, enquanto escrevo, já sofro um pouco pelas “exclusões”. Ainda bem! Pois isso diz muito da nossa diversidade e riqueza audiovisual, como eu havia mencionado anteriormente. E, se meu recorte não fossem os documentários, estaria terminando este parágrafo com mais recomendações. Sinto que nunca o cinema foi tão necessário, em todas as suas formas.

KEL GOMES, jornalista pela UFMG, crítica de cinema filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Atualmente é editora do site Cinematório, onde também atua como crítica, repórter e podcaster

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