Políticos, executivos e um grupo de empreiteiros foram presos.
Em 2016, o procurador Deltan Dallagnol, chefe da Operação, apresentou denúncia contra o ex-presidente Lula.
Em 2017, Lula se apresentou ao Juiz Sergio Moro.
Com esses letreiros no início, Amigo secreto (Brasil/Alemanha/Holanda, 2022), novo documentário de Maria Augusta Ramos, entrou em cartaz no dia 16 com números superlativos: "49 cinemas, 53 salas e 85 sessões diárias em 24 cidades de 19 estados", como informa o material repassado pela assessoria de imprensa. Na primeira semana, cerca de 7,5 mil foram vendidos. E cidades tão longe, como Afogados do Ingazeira, no sertão pernambucano, e Balneário Camboriú, em Santa Catarina; e tão perto, como Aracaju (SE) e Maceió (AL) e Rio de Janeiro e São Paulo, receberam e ainda recebem o filme que compila, em seus créditos, a Nofoco Filmes, Docmakers e Gebrueder Beetz Filmproduktion e ainda a Vitrine Filmes, em sua primeira coprodução e, mais uma vez, como distribuidora das obras assinadas pela realizadora.
Que é, como bem sabemos, uma diretora interessada em travessias, deslocamentos, no registro de algo em curso – sejam os mecanismos da estrutura judicial do país, como em Justiça (2004) e Juízo (2007), sejam os vínculos entre várias pessoas que vivenciaram as turbulentas jornadas de 2013 e a Copa do Mundo em 2014 em Futuro junho (2015) ou seja ainda o golpe de Estado que destituiu Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita e reeleita para a presidência do Brasil, como O processo (2018). A palavra “processo”, aliás, é evocada por Maria Augusta Ramos quando fala de Amigo secreto à Continente. Mesmo em trânsito, indo do Rio de Janeiro para uma outra pré-estreia em Brasília, e naquela correria típica de aeroporto, ela conversou conosco por telefone.
"O filme está dentro da proposta do meu cinema, de observação de processos, de investigação, onde os protagonistas são os personagens centrais, reais, que nos guiam por tudo. Assim como em todos os meus outros filmes, como vimos a Gleisi Hoffman em O processo, nesse são os jornalistas que vão nos conduzir. É uma via de mão dupla, de confiança e dedicação ao projeto, mas também de colaboração para que pudéssemos contar aquela história da melhor maneira possível, revelando questões importantes para o nosso país", afirma a diretora.
A realizadora Maria Augusta Ramos. Foto: Ana Paula Amorim/Divulgação
E que questões são essas? Bem, logo após os créditos que contextualizam a gênese da Lava Jato e a denúncia contra Luiz Inácio Lula da Silva, Amigo secreto traz uma significativa fatia do interrogatório de Lula pelo então juiz Sergio Moro. Ali, institui o primeiro dos eixos sobre os quais se alicerça a narrativa: as investigações da Lava Jato, operação que, no seu furor punitivo amplamente apoiado pela mídia, prendeu Lula e dezenas de pessoas, entre elas executivos de empreiteiras como a Odebrecht. Em seguida, sem pressa, com destreza e tenacidade, como se tivesse debulhando espigas de milho para fazer uma iguaria da culinária junina, Maria Augusta nos apresenta o trabalho de jornalistas do The Intercept Brasil e do El País Brasil na apuração da Vaza Jato. Leandro Demori, do Intercept, e Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, do El País, foram e são vetores cruciais o país conhecer, em 2019, o teor das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores do Ministério Público Federal no aplicativo Telegram - mensagens essas que atestavam a ilegalidade de uma operação em que a acusação e a magistratura combinavam de testemunhas a abordagens.
Temos aí um outro eixo dessa trama documental - a imprensa, tanto aquela que aceitava e publicava todas as informações divulgadas pela assessoria da Lava Jato como a que, com a Vaza Jato, rasgou e expôs a ilícita teia de cumplicidade entre Moro, Deltan Dallagnol e outros profissionais. E, como o rejunte aplicado para consolidar a coesão entre os azulejos de um banheiro, justamente para que nada vaze, a via percorrida para erguer e descortinar esses dois eixos é uma compilação cronológica de imagens, decorridas da observação da cineasta para esses nebulosos anos recentes da vida política, social e cultural de uma nação que, em outubro de 2018, elegeu Jair Bolsonaro como presidente da República.
Quando O processo foi exibido na Berlinale, em fevereiro do ano em que Lula foi preso e Bolsonaro venceu as eleições, Maria Augusta Ramos disse, à Continente, que queria um tempo para descansar do projeto denso e meticuloso de narrar o rito do impeachment de Dilma no Senado Federal. “Agora, nesse exato momento, só quero lançar esse filme em todo o Brasil e tirar um tempo para mim. Foi um filme muito pesado, muito difícil… Um material muito cabeludo. Não foi fácil de filmar. Não é fácil de digerir”, comentou, na entrevista publicada em maio de 2018, na Continente online, quando o documentário teve estreia nacional - o público final foi de 60 mil, marca expressiva para o gênero. Mas ela sabia que era importante acompanhar a movimentação que, três meses depois, resultaria na prisão do ex-presidente - só que não seria ela: “Não, não tenho mais energia. Acho que tem que ter alguém filmando o processo do Lula”.
Pergunto a ela a razão dessa mudança súbita de opinião - ainda mais levando em consideração que, entre 2018 de O processo e 2022 de Amigo secreto, ela lançou Não toque em meu companheiro, em 2020. “Era essa a minha intenção, de tirar um tempo, pois estava muito cansada e a última coisa que queria era entrar novamente num filme tão pesado. Mas aí mudei de ideia porque, em algum momento, recebi uma provocação de um grupo de advogados, criminalistas e juristas que já estavam denunciando as arbitrariedades e as violações que estavam ocorrendo no âmbito da força-tarefa, como o conluio entre os procuradores e ex-juiz Sergio Moro. Algumas daquelas pessoas estavam vivendo tudo isso por estarem defendendo alguns dos acusados da Lava Jato, outros juristas estavam refletindo sobre o devido processo legal sendo dilacerado, digamos assim, porque os fins justificam os meios. Em nome de um pseudocombate à corrupção, tudo era possível, até mesmo vermos o Ministério Público querer limpar, purificar a classe política. Aí me provocaram, me contaram coisas e achei era muito importante revelar essas coisas que estavam acontecendo por debaixo do pano, com a Clara Moreira colocou no desenho do cartaz dela, que ficou maravilhoso”, responde Maria Augusta.
Cartaz de autoria da artista pernambucana Clara Moreira.
Imagem: Reprodução
A artista visual pernambucana Clara Moreira, autora do cartaz de Não toque em meu companheiro, é apenas um dos nomes que se repetem na equipe. Pois já vimos antes, nos créditos dos documentários anteriores de Maria Augusta, Karen Akerman, a montadora; a própria Vitrine; a assessoria de imprensa da Primeiro Plano; a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal - FENAE, que a convidou a rodar Não toque em meu companheiro e agora é um dos patrocinadores de Amigo secreto; Diogo Lajst, diretor de fotografia; e Eva Randolph, que editou algumas sequências. Tantos mesmos parceiros e o mesmo modus operandi: analisar com criticidade e criar, com maestria e domínio da linguagem documental, uma mise-en-scène que nos leva ao cerne das discussões mas não nos alija de conhecer, de perto, aquelas pessoas que são força matriz e motriz do filme.
Há, contudo, uma novidade para a obra da realizadora, que é a radiografia da própria imprensa. Amigo secreto fala de Judiciário, política, Lula, Moro e do fazer jornalístico que, no Brasil, tem, merecidamente, outorgado à imprensa o epíteto de “quarto poder”. “Era impossível fazer esse filme sem falar da função da imprensa. A participação da imprensa na Lava Jato foi fundamental para conseguir manipular a opinião pública. Infelizmente, isso aconteceu. O filme não é só sobre isso, mas era importante refletir sobre o impacto que a participação da imprensa teve para a Lava Jato e para nosso país”, constata.
Um outro aspecto de suma relevância é a convergência entre o que se vê, na tela, e ao que assistimos no contracampo caótico e dinâmico que é o Brasil de 2022. A narrativa se estrutura na cronologia que se inicia em 2017, quando Moro interroga Lula, e segue até maio de 2022 - a última cartela do filme traz informações do dia 26 do mês passado, ou seja, menos de três semanas antes da estreia. Nesse alinhavar de informações de extrema importância para o desenho de país que vemos hoje, há a prisão de Lula, a eleição de 2018, Moro no Ministério da Justiça em 2019 e a reunião - ou show de horrores, a bem da verdade - entre Bolsonaro e seus ministros em abril de 2020, já sob a pandemia - com direito à já antológica peroração presidencial: "Se não puder trocar o chefe, troco o ministro".
Já em 2021, vemos a sessão do Supremo Tribunal Federal que considera suspeito o ex-juiz e, àquela altura, já ex-ministro e, no apagar das luzes do ano em que mais de 410 mil pessoas morreram de covid-19, o fechamento da sucursal brasileira do El País. Ou seja, ver o filme é, também, revisitar tudo isso sob o prisma do incisivo poder de síntese de Maria Augusta Ramos - algo perceptível, também, em O processo, Futuro junho e Morro dos prazeres (2013). Mesmo quando seus filmes retratam processos históricos acelerados, tumultuados ou socialmente atravessados por questões contraditórias, não (se) atropelam nem tropeçam no afã de uma contextualização excessiva ou em lacunas fundamentais. Tudo se encaixa.
Nesse caso, o quebra-cabeça começou a ser delineado em 2019. "Já estávamos filmando quando veio a Vaza Jato. Convidei o Leandro, que era diretor-executivo do Intercept, e propus que ele fosse protagonista, assim como Carla, Regiane e Marina, que eram pessoas que estavam escrevendo e investigando as mais de mil páginas de mensagens vazadas. E aí muita coisa aconteceu. Alguns acontecimentos dramáticos, e muito trágicos, como a pandemia. Aí tivemos que parar mesmo e só filmamos eventos importantes, como o julgamento da suspeição do Moro no STF. Em julho de 2021, Eva Randolph e eu começamos a trabalhar o material e editar as cenas separadamente. Em novembro, já com Karen Akerman, comecei a montar o filme. E foi nesse momento em que a gente bateu o martelo e optou por uma estrutura cronológica: já era claro, ali, que o ex-presidente Lula seria candidato”, rememora a diretora.
Lula e Moro no interrogatório de 2017. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação
Porque, ela prossegue, era importante que tivesse início, meio e fim. “Não queria esperar até as eleições para terminar o filme. A intenção não era dar conta de tudo. Até porque não dá. Mas queremos que o filme seja visto agora porque é uma releitura de um momento histórico importante para o futuro do Brasil, com fatos que não foram tratados como deveriam ter sido, distorcidos por uma máquina de produzir notícias, a máquina da Lava Jato, e todo o outro lado precisava ser colocado em questão. Além do filme, queríamos contar da melhor maneira possível essa questões importantes sobre economia, a Petrobras e a destruição das empresas de infraestrutura. É possível, sim, ter ferramentas para se combater a corrupção sem destruir essas empresas. O agente corrupto é uma coisa, mas destruir as empresas é algo completamente diferente”, crê Maria Augusta.
Nessa perspectiva de trazer o lado ignorado pela imprensa, Amigo secreto é mais contundente ainda em dois momentos cruciais: o depoimento de um ex-executivo da Odebrecht, que afirma, sem pudor ou temor, como nas sessões para se fechar o acordo de delação premiada a mira dos procuradores era Lula (“ele foi muito corajoso, vários até hoje têm medo de serem retaliados e sofrerem represálias”), mesmo que ele falasse em caixa 2 direcionado para candidaturas do PSDB, e um encontro entre Leandro Demori e petroleiros da Federação Única dos Petroleiros - FUP. “O Leandro me ligou e disse que um pessoal da FUP queria trazer um presente pra ele, que era a jaqueta, e perguntou se eu não queria filmar. Acho que o filme transmite isso: aquelas conversas, aquelas entrevistas, eram as que os jornalistas também queriam fazer”, ratifica a cineasta.
Tão logo estreou, no último 16, o documentário virou alvo de críticas em jornais do Sudeste sobre a ausência do “outro lado”. Porém, Amigo secreto, assim como O processo, é esse “outro lado”, em oposição ao único lado ouvido e amplificado desde o início da operação Lava Jato - o lado do lavajatismo, que possui incontornáveis pontos de convergência com o bolsonarismo. É preciso, afinal, historiografar novas narrativas que se contraponham ao discurso vigente. E o cinema, assim como o jornalismo, é um veículo para se ofertar, ao público, um outro olhar, um espelho para que possamos nos encarar e um farol para iluminar tempos sombrios. “Quero dizer que contactamos dois procuradores da Lava Jato para que nos dessem entrevistas, mas eles se negaram. E por duas vezes, falamos com o assessoria do ex-juiz Sergio Moro. A resposta: ele estava com a agenda lotada, não tinha horário para essa entrevista”, recorda a realizadora.
Carla Jiménez, Regiane Oliveira, Marina Rossi e Leandro Demori. Foto: Vitrine Filmes/Divulgação
Decerto o ex-juiz, ex-ministro e agora muito provavelmente ex-quase-futuro-candidato Sergio Moro teve menos coragem para sentar diante dos jornalistas e da câmera de Maria Augusta Ramos em Amigo secreto ou talvez menos ousadia do que a demonstrada por ele nos anos de conversações estabelecidas no Telegram. Veio, aliás, do Telegram, de um dos grupos criado entre os procuradores da força-tarefa, o título do filme. "Não era essa, tínhamos um título de trabalho que não era tão forte, na verdade. Mas acho que foi uma ideia da Karen, que sempre dá nome aos nossos filmes. Tinha aquela história do crucifixo, que o Leandro traz para uma matéria do Intercept, e que os procuradores acreditavam que o Lula tinha, de fato, roubado um crucifixo feito pelo Aleijadinho. Aí tivemos essa iluminação, digamos assim, e surgiu o título", situa a diretora.
Amigo secreto, esse presente antecipado de Natal que chega no São João: o jornalismo, o cinema e a verdade resistem.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.