Comentário

Paulo Miklos canta o amor em novo álbum

Em 'Do amor não vai sobrar ninguém', o ex-Titãs reúne músicas compostas durante o período pandêmico

TEXTO Márcio Bastos

01 de Agosto de 2022

Além da atuação na música, Miklos consolidou sua carreira como ator em filmes e séries

Além da atuação na música, Miklos consolidou sua carreira como ator em filmes e séries

Foto José de Holanda/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]

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Paulo Miklos quer cantar o amor – o que, em 2022, soa como um ato de resistência e, ao mesmo tempo, de utopia. Mas não lhe interessa o ideal romântico, artificial. Para o artista, que hoje se considera tanto músico quanto ator, falar sobre o sentimento é olhar para suas nuances, altos e baixos e o poder de transformação que ele é capaz de ativar. Foi em torno dessas investigações sobre o tema que ele desenvolveu seu quarto álbum, Do amor não vai sobrar ninguém, o segundo desde a saída dos Titãs, uma obra nascida do isolamento pandêmico e que captura a imersão de Miklos no trabalho solo, em sua produção mais autoral enquanto intérprete e compositor.

Foi no isolamento social, sentado na sala enquanto seus filhos assistiam às aulas online, que o músico paulistano, atualmente com 63 anos, começou a compor Um sopro, canção em que discorre sobre as belezas, dificuldades e vontades que movem a vida a dois. A criação, a princípio despretensiosa, foi se juntando a um conjunto de músicas que iam surgindo e apresentando o tema comum do amor, o que deu ao artista a clareza de que, inconscientemente, estava desenvolvendo um álbum.

“Assim como todo mundo, de início (o isolamento social) deu uma sensação estranha, que deixou a gente se questionando muito. Pensava: ‘Poxa, o que eu sei fazer?’. Acho que colocou a gente em uma situação de buscar a própria direção na vida. Havia também a frustração de não encontrar o público, os parceiros, os músicos, enfim, uma paralisação completa das atividades. Então, sentei ao violão, no meio da sala e comecei a rascunhar umas canções. Não foi calculado. Quando Um sopro surgiu, foi, de uma certa forma, uma chave para um portal, uma sensação de que eu estava sendo transportado para outro lugar, de realização, de poder criar um ambiente de leveza e, ao mesmo tempo, também levantar questionamentos, apontar um lugar crítico em relação à coisa romântica”, explicou em entrevista à Continente.

Ao contrário de seus trabalhos anteriores, fossem na criação com os Titãs ou mesmo em carreira solo, como no disco A gente mora no agora (2017), no qual trabalhou com nomes como Erasmo Carlos, Guilherme Arantes, Céu, Emicida, Nando Reis, Arnaldo Antunes, Silva, Russo Passapusso, Pupillo e Tim Bernardes, este foi um álbum desenvolvido inteiramente por Miklos, sem as trocas das parcerias, seja nas composições ou nas interpretações. O artista atribui a essa condição imposta pela crise sanitária a possibilidade de explorar sem restrições suas idiossincrasias, referências afetivas e musicais.

“Ao me ver sozinho, musicalmente falando, houve um resultado interessante. Eu não estava preocupado em seduzir o parceiro, de endereçar algo, de tentar criar uma ligação com o que ele gosta ou com sua história. Então, deixei aflorar um histórico meu de música pop, radiofônica, daquilo que sempre ouvi no rádio. Acho que o disco tem um pouco dessa característica, desse colorido. É muito autêntico, no sentido de que eu não tinha nenhum direcionamento, de que uma música precisava ser um rock, a outra uma valsa, por exemplo. Essa liberdade, além das canções e das letras, também está presente nas melodias”, explicou.

As possibilidades de criação citadas por Miklos permeiam Do amor não vai sobrar ninguém. Sonoramente, o disco é diverso, rico nas melodias e nos arranjos, passeia por diferentes gêneros musicais, ao mesmo tempo em que tem uma unidade, soa como uma obra com narrativa bem definida. As canções funcionam sozinhas, poderiam ser sucessos radiofônicos enquanto singles, mas, juntas, ganham mais força, com ótimas produções de Rafael Ramos. Existe algo de otimista e pulsante nas canções, que, criadas em um ambiente social inóspito, parecem querer lembrar que o amor, em seu melhor e pior, é uma arma poderosa.

Para o músico, o título é uma brincadeira com o amor romântico, mas é esperançoso, como proposição de um mundo ideal onde, no futuro, as pessoas possam voltar a ser felizes. Uma das faixas que captura esse sentimento com mais maestria é a vibrante Sabotage está aqui, homenagem ao rapper paulistano assassinado em 2003. Paulo e Sabotage trabalharam juntos no filme O invasor (2001), dirigido por Beto Brant, que marcou a estreia de Miklos no cinema.


O álbum, segundo solo desde a saída dos Titãs, foi criado durante o
isolamento pandêmico. Imagem: Reprodução

As conversas que tiveram nos bastidores e o impacto que o rapper e poeta deixou no nível pessoal e coletivo inspiraram a canção, que pede resiliência e coragem para viver. “Já escapei tantas vezes só com meus versos/ Sempre foi assim/ Já escapei tantas vezes desses perversos”, canta, citando os ensinamentos de Sabotage. A faixa tem um caráter político latente e dialoga com o momento conturbado pelo qual passa o Brasil. Há um chamado à transformação e uma esperança por dias melhores.

“Durante as gravações do filme, estive muito próximo da potência dele como poeta. Ele conversou sobre as dificuldades que sempre teve de ser visto como poeta, artista. Aqui perto da minha casa tem uma comunidade com Sabotage pintado no muro, quase na entrada, como se ele estivesse ali como um protetor. O poeta continua presente para uma nova geração que o reverencia, de rappers e jovens”, explicou.

Miklos enfatiza que a canção em celebração à memória de Sabotage, assim como outros elementos de sua carreira, evidenciam a simbiose cada vez maior entre a música e suas experiências no audiovisual e no teatro. Ele pretende tirar os próximos meses para se dedicar a trabalhar o novo disco, inclusive com turnê.

CINEMA E TV
Nesse mesmo tempo, é possível que Miklos seja visto no cinema e na televisão. Muitos projetos que ficaram em suspenso por conta da pandemia chegam às telas este ano, como os longas Jesus Kid, dirigido por Aly Muritiba, O homem cordial, de Iberê Carvalho, pelo qual Miklos ganhou o Kikito de Melhor Ator no Festival de Gramado, e O Clube dos Anjos, de Angelo Defanti, baseado na obra de Luis Fernando Veríssimo. Ele também terminou as gravações de Estômago 2, de Marcos Jorge, e a segunda temporada da série Manhãs de setembro, da Amazon Prime Video.

Com essa inserção em diferentes linguagens artísticas e plataformas, além de uma carreira que atravessa quatro décadas, Paulo Miklos tem uma visão privilegiada sobre as transformações da indústria cultural nos últimos anos. Os streamings de música, atualmente grandes potências de divulgação e consumo de música, por exemplo, impõem dinâmicas próprias de consumo, influenciando também a forma como alguns artistas têm criado seus trabalhos. Para ele, esse não é um fator que determinou a criação do novo álbum, mas há a compreensão de que uma nova dinâmica foi estabelecida.

“Na época em que a gente lançou o primeiro disco dos Titãs, a nossa luta era mostrar que éramos uma banda muito diferente, com oito pessoas cantando e compondo. A gente queria lançar um disco cheio, um LP, mas a gravadora queria lançar primeiro um compacto de Sonífera ilha. Gravamos um álbum, eles lançaram o disco single e foi a música mais executada do ano, puxou o disco. Acho que, nesse sentido, não vejo uma diferença muito grande com o que acontece hoje, exceto pelo grande desafio de entender os algoritmos. Gosto de ouvir o disco completo e, quando faço um álbum, essas canções conversam entre si, no tempo e no espaço, elas têm um lugar. Então, meu interesse, é que as pessoas ouçam inteiro, pois essa safra de canções tem uma ideia. Mas é difícil porque, como muita gente ouve no aleatório nos streamings, nunca chega completo no disco. O desafio é fazer chegar às pessoas”, situou.

Com o novo álbum, o artista pretende endossar a importância da arte e da cultura e também se posicionar politicamente contra a intolerância. Para ele, com a cultura do ódio enquanto pauta política, é preciso reativar um senso de coletividade e de empatia.

“Acredito que precisamos centrar todos os nossos esforços para prevenir uma ruptura democrática. E tenho feito isso com meu apoio a Lula, chamando a atenção das pessoas contra o ódio. Diante desse ódio que está sendo tão cultivado é importante falar de amor. Escolhi esse título principalmente pelo que ele faz pensar. Ninguém passa pela vida sem contato com o amor, sem se apaixonar. A nós, cabe sermos esperançosos – e com essa esperança quero inspirar as pessoas”, defendeu.

MÁRCIO BASTOS, jornalista, mestrando em Comunicação pela UFPE.

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