EXTRA: Leia o Prefácio e a Apresentação do livro
Nesta entrevista, concedida por videochamada para a Continente, Simone comenta sobre o tema no qual se debruça nos últimos anos, a pirâmide de valores que hierarquiza gêneros na música brasileira, a presença feminina na indústria musical, a importância das políticas públicas no fomento à cultura no país e semelhanças entre as cantoras Anitta e Carmem Miranda.
Lançado este ano, o livro (capa acima) é o resultado de mais de 10 anos de pesquisas realizadas com a colaboração do LabCult. Imagem: Reprodução
CONTINENTE Simone, na sua trajetória acadêmica em Comunicação, como você se direcionou para a pesquisa em música?
SIMONE PEREIRA DE SÁ Na verdade, sou formada em Ciências Sociais pela UFRJ. Sempre tive interesse por Antropologia Urbana. Depois, fui fazer o mestrado, também na UFRJ, mas já na Escola de Comunicação, na ECO-UFRJ. Tanto no mestrado quanto depois, no doutorado, também na ECO-UFRJ, sempre me interessei muito pelas culturas urbanas, mais precisamente pela cidade do Rio de Janeiro. No mestrado, fiz uma dissertação sobre Copacabana, sobre o imaginário urbano em torno do bairro. E sobre como a música foi importante para construir esse imaginário urbano lá atrás, nos anos 1930. No doutorado, desdobrei um pouco essa conversa, pensando no lugar da Carmem Miranda como um ícone do Brasil, aquela cantora que vai pro exterior e representa uma imagem pop do Brasil lá fora. Nesse momento, não me via como uma pesquisadora de música, eu me via muito mais como uma pesquisadora de culturas urbanas, de fenômenos urbanos, de cultura brasileira, que é como me vejo até hoje, de alguma maneira. Além disso, a gente não tinha uma subárea, um subtema de pesquisa em Música e Comunicação consolidado no momento em que eu era doutoranda, por exemplo. Estamos falando do final da década de 1990 ainda. E foi naquele momento que comecei a conhecer alguns dos colegas – que se tornam meus grandes amigos, como o Jeder Janotti, por exemplo, o Micael Herschmann e outras pessoas que também estavam pesquisando música – e a gente começa a perceber que tínhamos pontos em comum. Daí, a gente vira quase que protagonistas, sem planejar, dessa consolidação da área de Comunicação e Música, que hoje é uma subárea muito consolidada dentro da Comunicação. Mas, na verdade, naquele momento, nossos interesses eram mais difusos. Ou seja, nunca tive uma coisa assim: “Vou ser uma pesquisadora de música”. Isso foi acontecendo a partir dos meus interesses em cultura brasileira, em identidade nacional, em representações do Brasil. E sempre gostei muito de música, sem dúvida. Faz parte da minha vida.
CONTINENTE Você falou de Micael Herschmann. Na virada do século, ele escreveu o livro O funk e o hip-hop invadem a cena (2000). Nessa época, a abordagem que o jornalismo costumava dar para essas expressões culturais era sempre através da ótica da violência. Esse livro meio que representa uma mudança nisso. O que você acha que mudou de lá pra cá? Principalmente, na maneira com que o jornalismo e a academia tratam essas manifestações culturais.
SIMONE É interessante pensar o seguinte: o primeiro trabalho acadêmico sobre funk, na verdade, é o trabalho do Hermano Vianna, que apresenta o funk para a academia, no final da década de 1980. Logo depois, a gente vai ter, nos anos 1990, aqueles grandes arrastões na cidade do Rio de Janeiro, que são associados a funkeiros. A mídia explora muito essa ideia. A associação entre violência e funk vai aparecer muito forte na mídia. Inclusive, é possível encontrar esses registros até hoje. Outro dia, eu estava vendo no YouTube um registro do Jornal Nacional mostrando um arrastão. “São funkeiros!”. Essas eram palavras quase que novas naquele momento. As pessoas não tinham muita familiaridade com o funk, mas começam a associá-lo à violência. Quando o Micael escreve o livro dele, está mostrando que o funk é mais do que isso. Mas ele está muito mergulhado naquele momento, quando a ideia de violência e funk eram muito associadas. Nesse sentido, o livro dele é bacana, por mostrar o quanto de demonização vai acontecer a esse movimento através da imprensa. Mas, por outro lado, tem uma outra questão do livro que acho muito interessante e que mudou muito hoje.
O funk e o hip-hop não conversavam, não dialogavam. Quer dizer, ele fala: “O funk e o hip-hop invadem a cena”. O funk, no Rio; o hip-hop, em São Paulo. Como expressões territoriais, cenas locais, vamos dizer assim. Inclusive, existia muita rixa entre o funk e o hip-hop. Naquele momento, o rap via o funk como leviano, como muito bem-humorado, (um gênero) que não tratava de questões sérias. E o funk não tinha nenhum interesse pelo rap. De maneira geral, claro que podia haver uma ou outra exceção. Dando um salto, de alguns bons 20 anos, acho que hoje o funk se tornou um gênero muito conhecido no Brasil. Ele saiu do território local. Mas, de alguma maneira, alguns estigmas permanecem. Mesmo hoje, é interessante ver como para parte do jornalismo e para a crítica musical, a noção de “música boa”, por exemplo, não está associada ao funk. Pelo contrário, ainda se torce o nariz para expressões como a do funk. E do rap também, de alguma maneira. Então, acho que é interessante que, na academia, por exemplo, a gente já tem toda a consolidação de quase uma linha de pesquisa em torno desses gêneros, do funk e outros gêneros periféricos. Acho que a gente contribuiu muito para isso com nossos trabalhos. E isso foi crescendo e ganhando uma força que é muito bacana de perceber.
Mas, ainda existem estigmas. Tanto que, quando eu uso esse gênero – pop periférico – e discuto isso no livro, não estou querendo essencializar a noção de periferia, nem romantizá-la. Mas, ao mesmo tempo, estou querendo apontar para essas contradições que ainda atravessam esses gêneros, que não conseguem ir para o topo da cadeia de valor no Brasil. Quer dizer, eles podem ganhar visibilidade, podem ser os gêneros mais consumidos, mas, me parece que eles têm dificuldade em serem reconhecidos como música do Brasil. Recentemente, em um prêmio, Rick Bonadio falou que funk não é música. Volta e meia, a gente vê coisas assim. Roberto Medina, até 2018, dizia que a Anitta não cantava no Rock In Rio porque essa música, esse gênero, não era compatível com o Rock In Rio. Mudou de ideia, né? Mas mudou muito recentemente. Então, esse tipo de tensão e de contradição parece que ainda atravessa esses gêneros hoje.
CONTINENTE Se pudesse sintetizar, o que é a Música Pop Periférica que você traz nesse novo livro? E como esse termo se relaciona com o outro, no caso, a Música Popular Brasileira?
SIMONE Quando estou falando de Música Pop Periférica, estou falando desses gêneros musicais que se consolidam e que ganham visibilidade através das redes sociais e que têm origem nas periferias brasileiras. Estou falando do funk, mas também do tecnobrega, do arrocha e de outros gêneros que têm origem ou nas periferias, ou nas favelas, ou nas pequenas cidades. Eles têm essa marca da periferia, em primeiro lugar, e são gêneros que têm essa desvalorização por parte da crítica musical. Não são reconhecidos como de qualidade musical. Eles carregam estigmas dos lugares e da classe social de onde eles vêm, ainda que não sejam consumidos só por essas classes sociais. Eles já ampliaram muito as suas visibilidades para além das classes populares. E já ampliaram muito as suas visibilidades para além de seus territórios de origem. Mesmo assim, essas marcas ainda impregnam esses gêneros. O argumento principal do livro é de que, justamente por eles não terem tanto espaço no mainstream, pelo menos até o início dos anos 2000, eles vão se aproveitar do ecossistema das redes digitais para circularem e ganharem visibilidade.
Minha pesquisa começa lá atrás, em 2009. O primeiro artigo que escrevi, que deu origem a essa pesquisa – que durou mais de uma década, acompanhando esses gêneros na internet – foi com a batalha do passinho, que é um subgênero do funk em que os meninos do Rio de Janeiro gravavam coreografias feitas por eles com celulares e circulavam pela internet e aquilo começa a ganhar visibilidade. Esses vídeos começam a circular para além das favelas, para além dos seus territórios. Aí, começa a se construir essa rede que vou chamar de “rede de Música Pop Periférica”. No livro, estou mostrando como essa rede é pop, por um lado. Ela quer conversar, ela quer ter diálogos mais amplos. A Anitta, por exemplo, surge nessa rede. Olha para a Anitta hoje! Eu venho acompanhando a carreira dela, aqueles primeiros vídeos com os quais ela começa a explodir, o Show das poderosas (2013), e mesmo antes, os covers que ela fazia, estão inseridos nessa lógica, de ganhar visibilidade e espaço. A partir de 2013, dos 10 vídeos mais vistos no Brasil, sete ou oito são de alguns desses gêneros que estou citando, por exemplo.
A outra questão que você pergunta, qual é a relação entre a Música Pop Periférica e a MPB, entre a Música Pop Periférica e a Música Brasileira. Acompanho um argumento já de vários autores de que a MPB, na verdade, é uma parte da música brasileira. Ela não é toda a música brasileira. Quer dizer, ela se constrói a partir dos anos 1960 baseada em alguns critérios, baseada em alguns críticos que ajudam a promover essa música. A consolidação da MPB está muito ligada a dois elementos: primeiro, a ideia de resistência à ditadura militar; segundo, a ideia de inovação, de modernização da música. Só que essa não é toda a música do Brasil. Você vai ter um monte de outros gêneros que existem no país que deveriam, que devem ser chamados de brasileiros, mas que não se encaixam nessa alcunha. Então, acho que a Música Pop Periférica Brasileira, a MPPB, vamos dizer assim, é importante para o Brasil. Agora, ela não se encaixa naquilo que o Caetano (Veloso) vai chamar de linha evolutiva da Música Popular Brasileira. Ela está circulando transversalmente. Ela faz outras redes, ainda que não seja incompatível. A gente vai ver encontros também. Caetano, Anitta e Gil cantando juntos. Caetano gravando em um dos mais recentes álbuns da Anitta. Esses diálogos acontecem o tempo todo, mas a música do Brasil é maior que a MPB. E, nesse sentido, a Música Pop Periférica vai ocupar outros lugares, vai tratar de outros temas, vai expressar outras visões de mundo, e acho que isso tudo também é muito importante.
CONTINENTE Gosto do termo Música Pop Periférica porque ele traz duas questões. A questão do periférico, que você já falou, mas também a questão do pop. Historicamente, dentro dessa ideia de música brasileira e dentro da discussão sobre cultura em geral, há uma resistência ao pop, porque ele é visto como algo que não é sério, que é efêmero. Queria então lhe perguntar: você acha que o pop ainda é periférico dentro da academia ou isso está mudando? Ainda existe essa resistência?
SIMONE Nos últimos tempos, tenho achado que a gente está tendo uma explosão de trabalhos sobre cultura pop. E isso é muito bem-vindo. É muito recente, talvez de dois, três anos pra cá. As nossas redes de pesquisa estão implementando, inclusive, eventos (com essas temáticas), e isso tem ganhado muita visibilidade. Agora, é claro que a academia tem uma corrente marxista adorniana, vamos dizer assim, que vai sempre torcer o nariz para esse tipo de expressão. E não vai reconhecer esse tipo de expressão como legítima, como de qualidade. Mas, sinceramente, acho que cada vez mais temos conseguido mostrar que é através da cultura pop que as questões mais importantes da atualidade são debatidas e entram em pauta. Questões políticas, questões sociais, questões de gênero. Tudo isso foi encampado, me parece, como pauta pela música pop, pela cultura pop, por séries, pelos quadrinhos. Então, sim, a gente tem uma mudança muito importante. A questão é que tem uma parte da academia que é muito conservadora, não só com esse tema, mas com qualquer tema que não esteja dentro da caixinha, que não seja “muito importante”. Só mais uma coisa: há 20 anos, eu tinha que defender a relevância social dos meus estudos para colegas. Hoje, me parece que é muito fácil defender essa relevância, mostrar como a música pop está pautando as questões políticas da atualidade. Talvez muito mais do que a MPB, se quisermos fazer uma provocação. Não tenho certeza, mas pode ser.
A MC Carol, em show de 2018. Foto: Fernanda Piccolo/FotoArena
CONTINENTE Você poderia falar sobre o LabCult? Como é a experiência de coordenar esse grupo de pesquisa?
SIMONE O LabCult é um grupo que surgiu na Universidade Federal Fluminense, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, onde trabalho desde que entrei na UFF. Este ano, estamos comemorando os 15 anos do grupo de pesquisa. Ele reúne pesquisadores no nível de doutorado, mestrado e graduação. E tem sido, por excelência, o lugar onde essas ideias que a gente desenvolve florescem. É uma experiência muito bacana, porque a gente discute textos, apresenta nossos textos para o debate. Não é exatamente um grupo de leitura, a gente não costuma muito pensar em bibliografias. É um laboratório para se testar ideias. Ele funciona principalmente testando as ideias dos seus pesquisadores e muitas outras que a gente tem durante os encontros. Acho que essa experiência, não só a do LabCult, mas dos grupos de pesquisa em geral, é um dos pilares de força da nossa pesquisa. Eu acho que os grupos de pesquisa são muito importantes, justamente por conta de tudo isso que a gente estava falando antes. É ali que as ideias, as trocas, as coisas que a gente não tinha pensado florescem. O grupo está sempre em movimento. Pessoas saindo, pessoas entrando; alguém defendendo; alguém entrando para o mestrado naquele momento; alguém saindo do doutorado já defendido; os pós-doutorandos que vêm também trabalhar com a gente trazem um enorme gás. O grupo acompanha o meu amadurecimento, minha trajetória. Ele está fazendo 15 anos, mas, na verdade, antes disso, ele já funcionava, só não tinha o nome da LabCult. Desde que entrei na UFF, criei um grupo de pesquisa em Música. A gente também tem interesse – e eu já orientei trabalhos – na área de Cultura Digital, sempre com esse foco em música, entretenimento, alguma coisa de games. E é uma troca muito importante, acho, para a gente.
CONTINENTE Ainda nesse assunto, lembro que o LabCult participou da elaboração de um documentário com a MC Carol. Queria saber como é a relação de vocês com os artistas que são temas das pesquisas. Se falarmos de Música Pop Periférica, são artistas que costumam vir de um lugar de deslegitimação por parte da crítica. Como funciona essa relação de vocês com esses artistas?
SIMONE É legal você perguntar isso. Existem duas coisas que acho que são bacanas. Uma é um braço meio de empreendedorismo musical. A gente já teve vários projetos nessa área, de conversar com músicos. Com músicos de Niterói, com músicos do estado do Rio de Janeiro. A gente teve um projeto em parceria com um coletivo chamado Ponte Plural, de Niterói, organizado pela Luiza Bittencourt, que era minha orientanda na época, e pelo Daniel Domingues. É um coletivo premiado nessa área de empreendedorismo musical. A gente desenvolveu um conjunto de projetos nos quais convidava músicos para falarem na UFF. Para trocas, para entender o que está acontecendo no mercado musical, tentando ser o mais amplo possível. Dentro dessa conversa, uma outra ideia que surgiu, e que a gente tem implementado e investido, é a criação de produtos audiovisuais, para também contemplarmos nossas pesquisas.
No caso do documentário sobre a MC Carol, juntamos as duas coisas. Já tínhamos interesse em chamá-la para conversar, como parte desse interesse mais amplo, concorremos a um edital, junto com alunos de graduação que eram do LabCult. E ganhamos esse edital. Foi uma verba pequena, mas suficiente para a gente fazer esse documentário, que depois foi premiado, foi bem bacana o resultado. Era um edital do estado do Rio de Janeiro. Foi muito legal, porque fomos para a casa da MC Carol, gravamos lá, acompanhamos ela em shows, foi uma troca superinteressante, superbacana, em que a gente pôde devolver para ela, um pouco, da inspiração. Devolver um pouco do diálogo que a gente propõe fazer com ela.
Um outro exemplo, muito modesto: neste momento, estou divulgando o meu livro novo e a renda do livro, os exemplares que eu consegui vender independente da editora, estou direcionando para um projeto que é o Mães da Favela, da Cufa (Central Única das Favelas). Acho que a gente tem obrigação, no lugar em que está, de propor algum tipo de ponte, algum tipo de conversa e de colaboração. Claro que de acordo com o que cada um pode fazer. É muito modesta essa minha colaboração, por exemplo, mas me parece que é o mínimo que posso fazer nesse momento, inclusive, de pandemia, de crise, de fome das pessoas, para dar um retorno, uma vez que estou trabalhando com esses temas.
CONTINENTE Como você enxerga o protagonismo feminino na música brasileira atualmente?
SIMONE Historicamente, a gente tem cantoras. O lugar da mulher na música brasileira é, antes de tudo, o de cantora. Esse lugar está garantido. Sempre tivemos grandes divas da canção, de Carmem Miranda, passando por Ângela Maria, por Elis, a geração Bethânia… Vamos encontrar toda uma ocupação, digamos assim. Mas se limita a isso. Não sou especialista nesse tema, mas tenho acompanhado alguns trabalhos. Estou orientando, por exemplo, um trabalho sobre o “feminejo”, o sertanejo das mulheres. A gente tem conversado muito sobre isso, eu e a Pauline (Saretto), minha orientanda. Ela quem me apresentou essas informações. Na história do sertanejo sempre teve mulheres. Mas, quando se conta essa história, ela é contada por homens e os homens recebem maior destaque. Desde os anos 1930 que tem mulher no sertanejo, mas elas aparecem pouco nessa história. Outras mulheres são compositoras, mas não aparecem, essa autoria não ganha visibilidade. Sem falar do mundo da produção, da técnica, que é um mundo muito difícil para as mulheres. Eu estive numa banca, recentemente, na UERJ, em que o trabalho era sobre isso, sobre a participação das mulheres em outros setores da música que não sendo o de cantoras. Dependendo do gênero musical, mesmo como cantoras, é muito difícil. Ela me mostrava dados alarmantes, preocupantes. Machismo, assédio, tudo isso. Eu acho que a gente precisa mudar muito em relação a isso, em todos os gêneros musicais. Inclusive eu tive uma querida orientanda que tinha um blog sobre metal, ela e mais duas amigas, que eram pesquisadoras também. E elas eram muito desrespeitadas enquanto fãs de metal, na cena de metal. Há uma histórica marcação de gênero nessa cena e isso dificultava muito o trabalho delas, por exemplo.
CONTINENTE Agora, uma pergunta um pouquinho difícil. Nos últimos anos, se você pudesse apontar um álbum ou uma obra – porque a gente sabe que existem muitos artistas que não trabalham com álbuns – que lhe chamou atenção na música brasileira, que acha incontornável, qual seria?
SIMONE Nossa, difícil mesmo, viu? (risos). Mas acho que escolheria alguém do funk. Acho que Tati Quebra Barraco, com Boladona (2004).
CONTINENTE E o que tem mais chamado sua atenção na música brasileira hoje em dia?
SIMONE Fico muito mergulhada nessas cenas que a gente pesquisa, acompanho mais essas cenas. Então, continuo a achar muito interessante toda essa movimentação, principalmente de gênero, vamos dizer assim, e de minorias, dentro das cenas de Música Pop Periférica. Toda essa geração, que vai desde o pop total, de Anitta mesmo, até coisas menos mainstream como a MC Carol, como a galera de São Paulo, Linn da Quebrada, Gloria Groove, Lia Clark, a galera da Bahia, que tem uma cena maravilhosa… É muita gente que acho que está produzindo música que nos traz essa potência da Música Pop Periférica, a MPB Trans, a MPB Gay. Acho que é tudo isso que mais me interessa. É claro que, ao lado disso, a gente continua a ter grandes referências nos nossos clássicos compositores. Eu jamais vou deixar de ouvir Caetano, Chico, Gil e também uma geração roqueira, dos anos 1990, que gosto muito, Pato Fu etc. Mas acho que a efervescência está, neste momento, nessas novas movimentações. Principalmente, como eu já disse, porque elas trazem não só a música, elas trazem músicas e pautas juntas, mas sem perder a questão estética. Quer dizer, não acho que toda música tem que ser um manifesto, mas a forma como a maioria dessas cantoras, cantores, compositoras e artistas têm trazido questões para a gente discutir, para abrir nossa reflexão para outras questões. Acho que é muito importante.
CONTINENTE Já que estamos falando de artistas e das suas pesquisas, é impossível não falar de Anitta, que está tendo uma grande repercussão internacional. Recentemente, ela esteve no MET Gala, já gravou com Madonna e artistas como Lil Nas X já declararam que queriam gravar com ela. Mas me parece que aqui no Brasil, com exceção de seus fãs, ela ainda não tem muita legitimação, não só junto à crítica mas também ao público mesmo. Parece que parte do público brasileiro – e aqui eu não falo nem de reconhecer a qualidade –, parece ter uma dificuldade de reconhecer a importância dela, suas conquistas, inclusive enquanto representante da cultura brasileira lá fora. Como é que você enxerga isso? Você falou de Carmem Miranda, que foi uma artista que, me parece, passou por um processo semelhante.
SIMONE Em primeiro lugar, vendo a Anitta e vendo Carmem Miranda, permanece uma questão inexplicável: por que a música brasileira não consegue estourar fora do Brasil. Até consegue, a bossa nova conseguiu, mas como é difícil romper a barreira da língua! Esses dias, eu estava conversando com um pesquisador americano e ele me falou assim “Ah, mas a Anitta ainda tem algum sotaque e americano não gosta de sotaque”. Jura que a Anitta ainda tem sotaque? Ela fala inglês bem pra caramba! Ou seja, é muito difícil furar esse mercado internacional pop não sendo de origem anglo-saxônica. Essa é a primeira coisa que precisamos reconhecer.
Pesquisadora observa que Anitta passou a ser criticada por alguns, no Brasil, após seu sucesso internacional. Foto: Divulgação
Agora, me parece que tem um segundo problema, que é algo que o Tom Jobim já falava, que o brasileiro implica, tem vergonha e tem ciúme de quem faz sucesso fora do Brasil. Não sei se isso é verdade, mas em alguns momentos parece que é! (risos) Quando a Anitta aparece lá no VMA, ela ganha um monte de haters. É isso que você falou, não são só os elitistas. Fica uma galera implicando, dizendo que ela tem “muita estratégia”. E eu não tenho resposta pra isso. Quando olho para isso, concordo com você.
É engraçado perceber como é difícil construir uma unanimidade, vamos dizer assim, no Brasil e em qualquer lugar. Tom Jobim reclamava disso. A Carmem Miranda, coitada, foi quase assassinada em vida, teve que responder “Disseram que eu voltei americanizada”. Quer dizer, não é fácil fazer sucesso fora do Brasil e continuar com sucesso no Brasil. É um desafio e talvez tenha alguma coisa a ver com o fato de já termos um mercado de música no Brasil que é muito grande, que já é autossuficiente, mas são especulações, não sei lhe dizer ao certo.
CONTINENTE Ainda falando um pouco sobre o lugar do Brasil no mundo, a gente tem uma dificuldade histórica de se reconhecer parte da América Latina. Mas também me parece que, quando esses nossos artistas vão para fora, eles já são automaticamente colocados nessa posição. Como você vê isso nos dias de hoje?
SIMONE Eu acho que esse é outro desafio, que é a gente vencer a batalha das classificações e dos rótulos. Porque, de novo, isso não é só com a Anitta. Quando você vê o Milton Nascimento ganhando um prêmio de world music ou de latino, isso, para a gente, soa bastante desconfortável, de alguma maneira. Porque a gente não reconhece o Milton nessa categoria, a gente vê o Milton como um compositor universal. Que, se cantasse em inglês, teria uma visibilidade universal, globalizada, vamos dizer assim. Mas aí, mais uma vez, a gente está lidando com um conjunto de camadas de classificações e de construções. Com o que o mercado anglo-saxônico espera do resto do mundo, com as caixinhas nas quais ele coloca o resto do mundo. E esse ainda é o mercado dominante. Ainda que o K-Pop, por exemplo, esteja chegando com muita força, o mercado dominante me parece que ainda é o anglo-saxônico. E você tem esses mútuos estranhamentos. Mais uma vez, você tem toda razão, a nossa conversa com a América Latina é pequena. Agora, ao mesmo tempo, é interessante ver que, em artistas do pop, essas pontes têm sido construídas. Anitta gravando com Maluma, ainda que ela tenha brigado com ele depois (risos).
Há alguns esforços de conexões latino-americanas dentro do pop, passando ou não pelos Estados Unidos, que, de repente, conseguem driblar isso de alguma maneira. Mas isso é parte do desafio da gente se tornar visível. Acho que a pergunta que você está fazendo, e que não sei responder, é: como é que se torna visível para além dos clichês? É muito difícil se tornar visível não lidando com clichês. “Ah, eu sou a brasileira gostosa, que dança, que tem um corpão”. Ou “Ah, sou o brasileiro alegre, do país do Carnaval”. Quer dizer, esses clichês sobre o Brasil, que são muito difíceis. Agora, para o resto do mundo, a percepção do Brasil é sempre acoplada à América Latina. Tanto que Carmem Miranda, nos filmes lá de Hollywood, aparece como uma latina. Ela não é exatamente brasileira, mesmo que às vezes ela fale português. E ela foi xingada e foi criticada por isso também, no Brasil, por ela estar lá fazendo uma coisa meio rumba.
CONTINENTE Já que estamos falando de classificações: no seu novo livro você discute a relação de Anitta com o termo diva pop. Queria que você falasse um pouco sobre como é essa relação e o que seria uma diva pop no Brasil.
SIMONE Quando a gente pensa na diva pop, está pensando nas convenções da música pop. Tem um artigo que eu e o (professor da UFPE) Thiago Soares escrevemos em que fazemos um pouco a genealogia dessa ideia da diva. Esse termo, diva, vem da ópera. Lá, começam a usar essa expressão, sempre ligada a mulheres. A diva tem uma conotação meio ambígua. Por um lado ela é elogiada, mas, por outro, também aponta para uma mulher temperamental. Daí ela vai ser usada, posteriormente, para as grandes figuras carismáticas da música pop. Principalmente a partir dos anos 1970, com a Motown. Então, também há uma ligação das divas com a cultura da Motown e isso vai se consolidando naquele momento, se formos pensar historicamente.
Ser uma diva significa praticar certas convenções da música pop. Cantar músicas com refrões chiclete, fazer coreografias, a troca de figurinos no palco, isso tudo faz parte dessa performance da diva pop. Mas a diva pop vai além disso. Ela vai construir uma persona, vamos dizer assim, uma personagem carismática, que sabe falar sobre tudo, que é descolada. Então, basicamente, quando a gente está pensando na diva pop, a gente está pensando nesse conjunto de elementos. Alguns elementos musicais e alguns elementos extramusicais, que surgem também do universo anglo-saxônico, mas que vão sendo apropriados em outros lugares.
Acho que o bacana é a gente pensar o seguinte: temos uma matriz de convenções da música pop e dos gêneros musicais que vem desse lugar anglo-saxônico, mas elas vão sendo apropriadas e ressignificadas nos contextos locais. Então, nesse momento, quando falo da Anitta enquanto uma diva pop, estou dizendo que ela dialoga com todas essas convenções que falei, mas ela não é uma cópia disso. Ela coloca elementos brasileiros. Neste sentido, ela é uma “diva periférica”, porque ela vai trazer elementos do funk, ela vai trazer o shortinho, ela vai trazer uma coreografia do rebolado que não é igual a da Beyoncé, ainda que Beyoncé rebole também. Tudo isso vai dialogar com os cenários locais e, nesse sentido, me parece que é legítimo também chamá-la de diva pop, porque ela está interessada nesse diálogo com as referências da música globalizada.
CONTINENTE Recentemente, tivemos a Rebeca Andrade, atleta olímpica, que utilizou a canção Baile de favela (2016) em seu solo nas Olimpíadas de Tóquio. Essa performance trouxe à tona, novamente, uma discussão de que o funk, não apenas ele, mas algumas manifestações de origem periférica têm letras machistas e contribuem para a opressão da mulher. Fico pensando, falando no Rio de Janeiro, por exemplo, que havia machismo também na bossa nova. Por que você acha que certos machismos que se revelam na música brasileira acabam incomodando mais do que outros?
SIMONE Eu acho que a gente volta para essa questão da hierarquia e dos valores. Quando penso nos gêneros musicais brasileiros, penso em uma pirâmide de valor. Não para mim, mas que foi criada por uma certa crítica musical. E, nesse sentido, me parece que você já deu a resposta na sua pergunta, quer dizer, parece que, em certos gêneros, o machismo passa mais velado e, em outros, ele imediatamente chama atenção. Acho que, sem dúvidas, a gente deve combater todos os machismos. A gente precisa de mais letras feministas no funk, no rap, em todos os gêneros. Músicas que retratem as falas, as vozes femininas e também de minorias. Mas, de qualquer maneira, acho que tem essa dimensão. Porque, pensa bem, a Rebeca não estava tocando a letra, ela estava tocando a música, que estava orquestrada. Então, essa discussão não faz o menor sentido, sobre a letra. Na verdade, a letra é mais sexual, no caso daquela música, tem uma putaria. Mas acho que é totalmente, mais uma vez, desnecessário, preconceituoso. Desconhece a dimensão erótica das músicas, que vai ter em todos os gêneros. Agora, isso está ligado a toda essa construção de valor.
CONTINENTE Para finalizar, Simone: qual é a importância das políticas públicas para as expressões culturais periféricas?
SIMONE Acho que é fundamental. Estou acabando, neste momento, uma outra pesquisa, que é sobre as cooperativas musicais brasileiras. A história das cooperativas musicais brasileiras que surgem durante a gestão do (Gilberto) Gil e depois do Juca Ferreira, no Ministério da Cultura. Elas foram fundamentais para a consolidação das cenas locais de músicos e musicistas nos mais diversos lugares do Brasil, entre 2005 e 2013. E, já no primeiro governo Dilma, elas começam a entrar em crise por conta da mudança, quando Ana de Hollanda entra no Ministério e as políticas públicas já têm uma guinada no sentido de estimular menos essas cenas locais. Estou lhe dando esse exemplo para mostrar exatamente como é importante.
Nesse projeto, a gente conclui isso. Fizemos entrevistas com os protagonistas de várias das cooperativas, no Sul, no Norte, no Nordeste, em São Paulo – que foi o maior – e fica muito claro que eles responderam a um chamado do Ministério e começaram a se organizar. Tem aquela belíssima frase do Gil, em que ele propõe que fazer política cultural é fazer um do-in cultural. A cultura brasileira é efervescente, ela é muito rica, mas o que cabe, como política cultural, como política pública, é fazer do-ins culturais. Quer dizer, uma pequena intervenção aqui, uma pequena intervenção ali, que a cena floresce. Acho essa uma metáfora linda e tenho fé de que a gente vá voltar a esse momento em breve, a partir de 2022. Acho que é isso, as políticas públicas são fundamentais para o florescimento da cultura no país. Porque cultura a gente tem, mas a gente precisa de um mínimo de recursos. É comprovado, através dessas estratégias, que com o mínimo de recurso, a cultura floresce.
ANTONIO LIRA, jornalista, músico, pesquisador em Comunicação e mestrando pelo PPGCOM/UFPE.