Desalento muito pessoal II
Especialista em preservação escreve sobre o incêndio da Cinemateca Nacional
TEXTO Hernani Heffner
01 de Outubro de 2021
Cartaz exposto em manifestação da Associação dos Amigos da Cinemateca e outras entidades (agosto, 2021)
Foto Cris Faga/Nurphoto via AFP
[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]
A preservação audiovisual no Brasil carrega duas grandes tendências desde os seus primórdios: a rápida e concentrada destruição de acervos em devoradores incêndios e liquefazes inundações; e a lentíssima constituição de ações em contracorrente para a salvaguarda do decrescente patrimônio remanescente. A falta de transparência sobre perdas e acréscimos só faz perdurar a incerteza sobre o quanto se avançou ou o quanto se regrediu a certa altura desse trajeto acidentado e perseverante. Os bastidores obscuros do colecionismo fílmico no Brasil por vezes parecem minorar o trágico panorama – já assisti a alguns títulos considerados “perdidos” –, por vezes o acentua ainda mais tragicamente pela incapacidade de compartilhar mesmo que temporariamente os materiais que poderiam preencher lacunas importantes. Chegar no momento em que rolos, fitas e papéis viraram pasta ou cinzas tem sido uma constante ao longo da vida de preservador.
Paulo Emílio Sales Gomes já salientou, em seus textos sobre preservação e a Cinemateca Brasileira, o quanto a ciclotimia da área lembra a do próprio Cinema Brasileiro, em suas idas e vindas, altos e baixos, surtos de produção e de paralisação. Não por acaso, o atual paralelismo, casando a suspensão da produção cinematográfica nacional com o fechamento do arquivo paulista, parece confirmar o vaticínio e o destino inglório da área. Mas um exame mais detido da situação em sua progressão histórica não só indica a persistências de um quadro, como sua sutil transformação. Não se pode mais lançar mão do subdesenvolvimento como explicação, ainda que persistam variáveis como a ingerência estadunidense na cena audiovisual local, com direito a repetição de contexto pandêmico e tudo.
Em 1918, a gripe espanhola ajudou a consolidar o sistema de estúdios e a hegemonia hollywoodiana em boa parte do mundo, incluindo um Brasil despreparado para o rolo compressor e eternamente seduzido pelos novos flautistas de Hamelin. Em tempos recentes, a pandemia levou todos para dentro de casa e os executivos da Netflix chegaram até mesmo ao Conselho Superior de Cinema, que ainda se mostra infenso a considerar a preservação como parte integrante da “cadeia produtiva do audiovisual”, como advogava o saudoso Gustavo Dahl.
Como o país, a preservação saiu de uma condição de extrema precariedade para um desempenho aparentemente notável no começo do século XXI. Sexta maior economia de um lado, 400 milhões de reais injetados na Cinemateca Brasileira ao longo de uma década do outro. Nada fazia prever o desastre recente. Seria conjuntural ou o fenômeno tem raízes mais profundas e uma dinâmica em espiral em que a condição se refina, mas não muda?
De forma não tão dramática quanto as palavras e as paixões políticas fazem soar, um país e uma cena de preservação audiovisual se consolidaram de fato nos últimos anos do século anterior e começo deste. Uma elite pouco sensível à arte e a cultura, ainda que travestida e sujeita a prosaísmos, nem sempre esteve no poder como agora, mas, como nos lembra Laura Bezerra em seus estudos sobre políticas públicas para a preservação audiovisual, mesmo a mais esclarecida, a modernista, excluiu a patrimonialização do cinema de seu projeto de Nação. Foi a preservação que ousou, persistiu, em se imiscuir no baile dos vencedores, vira e mexe enxotada, aqui e ali acolhida pró-forma, habitando a periferia do audiovisual. Ela teve que cuidar de si mesma, aprendendo a duras penas, aproveitando as brechas, sendo repetidamente atingida em sua condição indefesa. Se ninguém for por ela, ela mesma não será. Uma retórica, sem dúvida, para tentar mudar os espíritos.
O desprestígio, quando não o desprezo, que rondam os arquivos de imagens em movimento (cinema, televisão, publicidade, jogos eletrônicos, web, redes sociais, filmes de família, vídeo, algoritmos, instalações etc.) é proverbial na área. Traduz-se como fator estrutural pela falta de legislação, recursos financeiros, capacitação, insumos, recursos humanos, políticas públicas, equipamentos, laboratórios, racionalidade, planos de contingência e controle de sinistros, desastres, catástrofes; em uma palavra: falta de políticas e de planejamento. Estamos sempre na UTI, muitas vezes no balão de oxigênio, como regra, e nunca exceção. Um corpo isolado e enfraquecido, que se mostra incapaz de ser solidário (atuar em rede) mesmo no câncer. Somos mais de 60 entidades no século XXI.
A dinâmica, que nunca vira dialética, em que parte da elite vê com bons olhos a patrimonialização, sem se envolver mais concretamente, a não ser pela mobilização de setores médios que assumem de fato a tarefa de preservar, pode explicar a falta de comoção e de mobilização concreta até mesmo quando os incêndios atingem grandes conjuntos de obras de arte, como foram os casos do marchand Jean Boghici e do galpão da Alke Logística. Para além do fato de que não se sabe ao certo o que a Nação perdeu na maioria dos sinistros, salta aos olhos a falta de planejamento, pois qualquer profissional sabe que problemas ocorrerão, mais cedo ou mais tarde.
O plano de contingência serve para isso. A presença de uma equipe (e não uma brigada, que combate incêndios em vez de salvar acervos) serve para isso, como o demonstrou o famoso incêndio do Castelo de Windsor em 1992. Os preservadores, e o príncipe Andrew, igualmente treinado para a improvável eventualidade em cenário aparentemente tão rico e preparado, sabiam exatamente o que retirar, por onde retirar, como abrigar e até onde levar essa operação que salvou literalmente milhares de itens do acervo do castelo sem arriscar a própria pele, alguns dos quais com 30, 40 metros de comprimento e centenas de quilos. Um exemplo de preparação (planejamento) para o óbvio.
Se o colapso sempre vem, pois é inerente à disputa com a morte, o recomeço é igualmente obrigatório. E este é o momento da decepção maior. Podemos contabilizar as perdas, mas dificilmente rola uma cimeira do setor, um planejamento horizontal, uma desviada do ranço autoritário e centralizador. Na verdade, nunca rolou, e nunca vai rolar, estou certo. Cada um por si e Deus contra todos a sina do Brasil é, já vaticinava Mário de Andrade um século atrás. Resta o sinuoso percurso por entre tragédias anunciadas desde sempre.
Há as antigas, associadas ao nitrato (restam poucos hoje em dia, menos de cinco mil rolos, se tanto, no país inteiro), perdido em grandes incêndios como o do Teatro Carlos Gomes em 1929 (perdeu-se toda a filmografia dos Segreto), a do cinema Alhambra em 1940 (perdeu-se toda a filmografia do produtor Francisco Serrador), a do estúdio da Atlântida em 1951 (perdeu-se boa parte da filmografia do estúdio em seus 10 primeiros anos), a do Serviço de Informação Agrícola em 1952, onde a filmografia documental de centenas de pequenos cinegrafistas como os irmãos Botelho, ao par de ficções de produtores como Antônio Leal e Paulo Benedetti, virou pó, a do Laboratório Cinegráfica São Luiz em 1955, já atingindo o nascente suporte de acetato, substituto do inflamável nitrato, que ceifou o cinejornalismo dos 20 anos anteriores, a do estúdio Brasil Vita Filme, onde se perderam muitos Humberto Mauro e quase toda a carreira de Carmem Santos, e a da Cinemateca Brasileira, ainda em seu endereço original, dentro do Museu de Arte Moderna de São Paulo, quando boa parte do silencioso brasileiro se perdeu, ambos os incêndios em 1957, e a do realizador Isaac Rozemberg, em 1960, que acabou com seu volumoso trabalho inicial em nitrato e acetato.
E há as modernas e contemporâneas, que são mais dispersas, pontuais, silenciosas, com os acetatos de películas e videotapes se diluindo em pasta viscosa dentro de latas, cartuchos e capas. Vez por outra uma comoção maior, como a das enchentes que atingiram a Líder Cine Laboratórios em 1966 e 1968, liquefazendo alguns negativos originais do Cinema Novo, como o de Capitu, a do incêndio da Rede Globo de Televisão em 1971, que levou telenovelas e outros programas (neste segmento e durante décadas a destruição foi mais prosaica, como o apagar sistemático de fitas, para economizar custos; afinal, para que lembrar?), e os vários incêndios e enchente da Cinemateca Brasileira, dos anos 1980 até o último, ocorrido em julho de 2021.
Um século de destruição. É preciso se esmerar para tanto e nós nos esmeramos. Mas isso é só uma face do problema. Há muitas outras. Uma delas, mais impactante a esta altura, é a qualidade do que restou, tamanha é a degradação não só física, mas principalmente estética e artística das obras. Lembro de ver tardiamente nos anos 1980 uma projeção de Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, em uma cópia 35mm, feita para o lançamento original. O brilho, a paleta de cinzas, a rarefação do branco, nada disso restou na nova cópia feita já nos anos 2000. E aquela desbotou com o tempo, arrefeceu o contraste, o brilho e outros componentes. Apesar de a projeção ser sempre uma experiência subjetiva, uma mesa comparadora pode colocar os dois materiais lado a lado e a diferença (perda) ficar perceptível, o que fiz há alguns anos com esse que é um de meus filmes preferidos.
Ação dos bombeiros durante o incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira em julho. Foto: Reuters/Folhapress
Resta a memória pessoal, que é intransferível, e estas palavras que afiançam algo dificilmente restituível a esta altura. Podemos lembrar também o desaparecimento de documentos, algo que afeta profundamente a escrita histórica. Ou ainda o novo desastre chamado “digital”, que desaparece tão rapidamente que uma estratégia (planejamento) minimamente adequada para fazer frente ao buraco negro que já se formou exigiria o tal trabalho coletivo, colaborativo, em rede, solidário, ecumênico, para fazer frente ao tsunami de produção do mundo contemporâneo. Teremos glimpses da nossa era no futuro.
O que vai escrito acima não tem, como parece, um tom fúnebre, descrente, melancólico. A dialética crítica já o exigiria, no mínimo, como resposta à violência e ao alcance das perdas. Mas há que considerar o alerta do preservador Paolo Cerchi Usai: a morte faz parte do processo e ele argumenta que é preciso deixar morrer também, sem traumas ou lamentos excessivos. A dialética da memória inclui o esquecimento, a lacuna, o vazio (hoje em dia talvez se acrescentasse o “cancelamento” – houve quem, após o incêndio da Vila Leopoldina, comemorasse efusivamente nas redes sociais o fim de acervos “coloniais”, em paralelismo com a queima da estátua do Borba Gato, desconhecendo que a maior parte dos filmes brasileiros não foi realizada pelas elites), a perda como parte do processo.
Mesmo no Castelo de Windsor, um quinto do acervo se perdeu em definitivo. A experiência aurática com essas peças se foi. Ficaram as informações, as fotografias, os diagramas, as plantas, em suma, a documentação do que uma vez existiu. Mesmo procurando ser exaustiva, ela não restitui a experiência subjetiva. Vira apenas um exercício intelectual ou de imaginação. Necessário, importante, mas limitado. É por isso que nada substitui o original, e porque a preservação é uma profissão e um segmento atravessado por essa contradição de base: retardar a morte inevitável.
O problema no Brasil é que o país, suas elites e seus governantes, com raras exceções, aceleram em vez de retardar as perdas inevitáveis. Somos adoradores do fogo e da água, camicazes identitários, talibãs do santo mercado imediato. A ironia é que camicaze significa vento divino e talibã, estudante. Tudo realmente trocou de sinal no mundo contemporâneo.
Como palavra final, gostaria de remeter o leitor à doce e nostálgica crônica de Ignácio de Loyola Brandão, em sua rememoração do primeiro contato com a Cinemateca Brasileira, em 1953, publicada em 13 de agosto de 2021, no jornal O Estado de São Paulo. O escritor nos conta o que esse contato lhe trouxe, não a descoberta da importância dos acervos, decerto óbvia para todos os envolvidos com arte, cultura, lazer, memória, estudo, ou abertura para a vida, mas a recepção calorosa a um anônimo, a generosidade no compartilhamento de um item das coleções, a ausência de uma negociação de posse, tão perversa quanto inútil quanto as chamas ou as águas vêm, que instaura um tempo quase mítico para os arquivos de filmes, agora entronizados nos jogos de poder, nas estruturas burocráticas e burocratizantes, no afastamento político do sentido da res publica.
Muitas vezes a comunidade de usuários não fez por merecer essa abertura original, mas nada a substitui como um pacto fundamental que deveria presidir as relações e a própria preservação do trabalho de preservação audiovisual como vida e não morte. Oxalá eu seja desmentido e tudo mude em breve, para melhor.
HERNANI HEFFNER, conservador-chefe da Cinemateca do MAM.