Resta a memória pessoal, que é intransferível, e estas palavras que afiançam algo dificilmente restituível a esta altura. Podemos lembrar também o desaparecimento de documentos, algo que afeta profundamente a escrita histórica. Ou ainda o novo desastre chamado “digital”, que desaparece tão rapidamente que uma estratégia (planejamento) minimamente adequada para fazer frente ao buraco negro que já se formou exigiria o tal trabalho coletivo, colaborativo, em rede, solidário, ecumênico, para fazer frente ao tsunami de produção do mundo contemporâneo. Teremos glimpses da nossa era no futuro.
O que vai escrito acima não tem, como parece, um tom fúnebre, descrente, melancólico. A dialética crítica já o exigiria, no mínimo, como resposta à violência e ao alcance das perdas. Mas há que considerar o alerta do preservador Paolo Cerchi Usai: a morte faz parte do processo e ele argumenta que é preciso deixar morrer também, sem traumas ou lamentos excessivos. A dialética da memória inclui o esquecimento, a lacuna, o vazio (hoje em dia talvez se acrescentasse o “cancelamento” – houve quem, após o incêndio da Vila Leopoldina, comemorasse efusivamente nas redes sociais o fim de acervos “coloniais”, em paralelismo com a queima da estátua do Borba Gato, desconhecendo que a maior parte dos filmes brasileiros não foi realizada pelas elites), a perda como parte do processo.
Mesmo no Castelo de Windsor, um quinto do acervo se perdeu em definitivo. A experiência aurática com essas peças se foi. Ficaram as informações, as fotografias, os diagramas, as plantas, em suma, a documentação do que uma vez existiu. Mesmo procurando ser exaustiva, ela não restitui a experiência subjetiva. Vira apenas um exercício intelectual ou de imaginação. Necessário, importante, mas limitado. É por isso que nada substitui o original, e porque a preservação é uma profissão e um segmento atravessado por essa contradição de base: retardar a morte inevitável.
O problema no Brasil é que o país, suas elites e seus governantes, com raras exceções, aceleram em vez de retardar as perdas inevitáveis. Somos adoradores do fogo e da água, camicazes identitários, talibãs do santo mercado imediato. A ironia é que camicaze significa vento divino e talibã, estudante. Tudo realmente trocou de sinal no mundo contemporâneo.
Como palavra final, gostaria de remeter o leitor à doce e nostálgica crônica de Ignácio de Loyola Brandão, em sua rememoração do primeiro contato com a Cinemateca Brasileira, em 1953, publicada em 13 de agosto de 2021, no jornal O Estado de São Paulo. O escritor nos conta o que esse contato lhe trouxe, não a descoberta da importância dos acervos, decerto óbvia para todos os envolvidos com arte, cultura, lazer, memória, estudo, ou abertura para a vida, mas a recepção calorosa a um anônimo, a generosidade no compartilhamento de um item das coleções, a ausência de uma negociação de posse, tão perversa quanto inútil quanto as chamas ou as águas vêm, que instaura um tempo quase mítico para os arquivos de filmes, agora entronizados nos jogos de poder, nas estruturas burocráticas e burocratizantes, no afastamento político do sentido da res publica.
Muitas vezes a comunidade de usuários não fez por merecer essa abertura original, mas nada a substitui como um pacto fundamental que deveria presidir as relações e a própria preservação do trabalho de preservação audiovisual como vida e não morte. Oxalá eu seja desmentido e tudo mude em breve, para melhor.
HERNANI HEFFNER, conservador-chefe da Cinemateca do MAM.