A vida dos outros e a minha
Em autoensaio, Claudia Cavalcanti rememora intercâmbio na Alemanha Oriental entre 1984 e 1989
TEXTO Adriana Dória Matos
01 de Outubro de 2021
Autorretrato de Claudia Cavalcanti nos anos 1980, na RDA, com sua câmera analógica
Foto Acervo pessoal/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed.250 | outubro de 2021]
Então você é uma garota de 20 anos e quer muito estudar alemão fora do Brasil, morar na Europa e provar o gosto da independência. Não tem autonomia financeira para isso, mas encontra a possibilidade de realizar esse sonho recheado de expectativas com uma bolsa de estudos que cobre todos os gastos. Luxo dos luxos. Só tem um detalhezinho: esse combo maravilha vai levar você para o outro lado da Cortina de Ferro. “Cortina de Ferro”, expressão carregada, significa que você vai viver um tempo sob uma ditadura socialista, por escolha própria.
Foi nesses termos que a germanista recifense, há muito radicada em São Paulo, Claudia Cavalcanti, fez sua formação acadêmica em Leipzig, cidade localizada na Saxônia, a 193 km de Berlim, no leste do país, onde permaneceu por cinco anos, estudando na Karl Marx Universität (hoje Universidade de Leipzig). E essa temporada dela na então Alemanha Oriental, ou República Democrática Alemã (RDA), se deu num momento crucial para o fim da Guerra Fria, entre 1984 e 1989, ano da queda do Muro de Berlim.
Mas, claro, quem vivia aquele presente não sabia que o muro que dividia capitalistas e comunistas, erguido em agosto de 1961, estava prestes a ser destruído, em novembro de 1989, depois de 28 anos de um regime político no qual ele serviu para proibir o livre trânsito dos cidadãos da RDA. Foi na RDA também que se criou a maior rede de espionagem registrada na história: a polícia secreta que ficou conhecida como Stasi.
Esse fato dramático para o povo alemão – e, por extensão, para o mundo ocidental – vem sendo registrado, narrado e revisto em várias plataformas, desde pesquisas acadêmicas, livros de História, livros-reportagem, documentários e em incontáveis obras ficcionais, tanto produzidas em textos quanto em linguagem audiovisual. E é no contexto da produção cultural relativa a esse período que entram Claudia Cavalcanti e o seu A vida dos outros e a minha, livro lançado neste segundo semestre pela Cultura e Barbárie.
Capa do livro A vida dos outros e a minha. Imagem: Divulgação
O título escolhido por ela para a breve narrativa de 111 páginas, que definiu como autoensaio, nos remete ao ótimo longa-metragem A vida dos outros (2006), dirigido por Florian Henckel von Donnersmarck e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007. Claudia se apropria do título do longa porque ele conta a história de um agente da polícia secreta alemã-oriental destacado para espionar um casal formado por um dramaturgo e uma atriz expoente da cena artística local. O filme retrata o horror que era viver sob a Stasi, uma vigilância onipresente numa sociedade em que todos eram potencialmente suspeitos e passíveis de constrangimento, perseguição, prisão, tortura, banimento e – muito frequentemente – coação para também se tornar um colaborador do regime.
Tendo morado em Leipzig, justo naquela segunda metade dos anos 1980 e tendo sido uma universitária que – embora não fosse uma ativista –, participara de manifestações públicas contra a ditadura na RDA, circulara pelos países vizinhos com seu passaporte de brasileira e enviara muitas correspondências para amigos e familiares, Claudia sempre desconfiou de que estivesse sendo espionada por pessoas de sua convivência durante aqueles anos, já que aquela era uma prática extensiva.
“Desde quando cheguei na RDA, eu assistia à derrocada do socialismo em pequenos detalhes, dependendo do país que visitava, mas sobretudo em Leipzig, palco das primeiras manifestações populares que aceleraram o tempo sem pular os dias, para culminar na queda do Muro, em 9 de novembro de 1989”, escreve ela. De volta ao Brasil, naquele começo dos anos 1990, ela não teve a iniciativa de solicitar à Alemanha unificada acesso aos possíveis documentos que tivessem sido produzidos a seu respeito, quando foi promulgada, no final de 1991, a Lei sobre os Documentos do Serviço de Segurança do Estado na Antiga República Democrática Alemã.
Mas, à medida que o tempo foi avançando, Claudia foi recebendo estímulos, sobretudo afetivos, para querer mexer nesse passado. A vida dos outros e a minha é sobre isso, sobre esse muro pessoal que ela derrubou. Mesmo sabendo que a dimensão de drama da sua experiência como residente da Alemanha Oriental é mínima, e mesmo insignificante, se comparada a acontecimentos trágicos que marcaram ou acabaram com a vida de milhares de pessoas que se opunham àquele regime, ela também tem uma história para contar, e o faz de maneira instigante neste pequeno volume.
Desde que estudou na Alemanha, Claudia se manteve conectada com o país de sua declarada admiração, onde cultivou amizades e para onde sempre voltou, atuando como difusora de sua cultura no Brasil, sobretudo a partir do trabalho de edição e tradução literária. Mas o primeiro impulso que ela conta ter tido para cascavilhar sobre seu passado estudantil aconteceu em 2009, quando esteve em Berlim com as duas filhas, nas comemorações aos 20 anos da queda do Muro. “Nina e Dora não haviam tirado tantas fotos da Torre Eiffel quanto tiraram daquele pedaço do Muro de Berlim. Só então percebi de verdade que eu havia testemunhado um momento importante da história contemporânea, que custou o sofrimento de tanta gente”, pontua.
“Pois que só em 2019, ano em que se comemoraram os 30 anos da queda do Muro de Berlim, solicitei acesso aos documentos produzidos sobre mim”, escreve em seguida. E a graça da narrativa que ela cria é essa expectativa do “enquanto espero, escrevo”, que é o desencadeador da história, que tem início em 2019, passa pelo pandêmico 2020, até chegar ao desfecho no presente ano, quando ela revela que, sim, foi espionada, e comenta alguns dos conteúdos dos documentos que recebeu do governo alemão.
Os leitores “esperam” junto com ela, que aproveita esse tempo narrativo para unir informações de variadas fontes sobre a Alemanha Oriental, sobre como ela experenciou aquele intercâmbio, faz belas rememorações de família, mas, sobretudo, ela compartilha várias de suas leituras de obras relativas ao assunto ou não diretamente, mas de interesse. Além do emblemático e evidente filme A vida dos outros, ela articula referências e comentários a livros como Austerlitz, de W.G. Sebald, Stasilândia, de Anne Funder, Massa e poder, de Elias Canetti, e Sociedade incivil, de Stephen Kotlin, além de outros títulos não disponíveis em português.
Também somos instigados pela autora a assistir a outros filmes, documentários, acessar arquivos fotográficos digitais e a acompanhar séries como a Deutschland, que teve duas temporadas sensacionais – 83 e 86 – e se encontra na expectativa do lançamento da última, 89. O livro é ilustrado com fotografias feitas pela autora na época e ela teve o cuidado, ainda, de disponibilizar uma playlist em streaming (Spotify) para o seu livro, que é, como tudo neste autoensaio, uma memória daquilo que ela viveu intensamente quando tinha vinte e poucos anos num país que se mostrava hostil, mas lhe possibilitou realizar um fabuloso sonho.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.