Memória

A desilusão e a euforia em ‘Fa-tal’

Os 50 anos de 'Gal a todo vapor' e a apresentação recifense do espetáculo que dissolveu a aspereza de tempos sombrios

TEXTO Renato Contente

01 de Junho de 2021

A cantora no show 'Gal a todo vapor' no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, em 1971

A cantora no show 'Gal a todo vapor' no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, em 1971

Foto Thereza Eugênia/Cortesia

[conteúdo na íntegra ed. 246 | junho de 2021]

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Há 50 anos, tudo em volta estava deserto no cenário militarizado do Brasil. A censura era ampliada e a perseguição aos opositores da ditadura se tornava mais intensificada e elaborada, com a institucionalização de sequestros, sessões de tortura e assassinatos. Sob um regime crescentemente fatal, uma Gal Costa em estado de desolação e euforia, com seus maiores alicerces afetivos e artísticos exilados, protagonizou um dos grandes atos políticos contra a repressão no campo cultural brasileiro: o espetáculo Gal a todo vapor.

Depois do sucesso estrondoso de Baby, manifesto afetivo-consumista de Caetano Veloso, no segundo semestre de 1968, Gal se tornou a falsa face dócil do Tropicalismo. Com a partida de Caetano, Gilberto Gil e do empresário Guilherme Araújo para o exílio, após o AI-5, recaiu sobre ela o papel de manter o espírito transgressor tropicalista em terras brasileiras. Nesse contexto, a cantora deixou São Paulo rumo ao Rio de Janeiro. Na capital fluminense, encontrou colo e suporte artístico na cena contracultural, especialmente no músico Jards Macalé e no poeta Waly Salomão. Este último dirigiu o espetáculo, produzido por Paulo Lima e com arranjos do guitarrista Lanny Gordin.

Uma pequena revolução tomou corpo nas cerca de 10 semanas em que o espetáculo esteve em cartaz no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, desde o dia de sua estreia, na noite de 12 de outubro de 1971. No microcosmo daquele teatro-poleiro, de estrutura duvidosa, na sobreloja de número 49 de um shopping center da zona sul carioca, foi desenvolvida uma espécie de laboratório do que no futuro viria a ser a democracia brasileira, como definiu o músico Jorge Mautner.

Mautner se referia à extensão daquele microcosmo que correspondia a um pequeno trecho da Praia de Ipanema, antes abandonado por conta da construção de um emissário submarino para lançar dejetos ao mar. Um grande píer de ferro e madeira foi construído para o desenvolvimento da obra em alto-mar. Para instalar as pilastras, foi preciso remover areia do mar, o que gerou dunas volumosas. Era ali onde Gal se bronzeava, junto a Macalé e outras ovelhas negras, antes de subir ao palco à noite. Alçada ao posto de símbolo sexual e bússola da contracultura brasileira, Gal virou a grande atração do píer abandonado, que passou a ser frequentado por artistas, intelectuais, desbundados e outros opositores à ditadura. Viraram as Dunas da Gal.

Naquele momento, a cantora era a ponta de lança da resistência estética à ditadura no país, papel que havia incorporado em fins de 1968 e do qual progressivamente abriria mão ao longo dos anos 1970, especialmente após o álbum Cantar (1974). Em 1971, portanto, Gal ainda era tida como uma artista elitizada, voltada às camadas mais intelectualizadas da sociedade. Mesmo sendo conhecida popularmente desde o Tropicalismo, e com canções bastante populares em circulação em rádios e televisores, seu público ainda era restrito. Só na transição dos anos 1970 para os 1980, com um trabalho mais festivo e menos engajado, ela se tornaria uma grande domadora de multidões.

Em Gal a todo vapor, portanto, a artista vivenciava o auge de sua persona política. Diariamente, cerca de 600 pessoas iam ao Tereza Rachel assistir à mensagem na garrafa dedicada aos amigos exilados além-mar. A ambientação com palavras-destaque de Waly Salomão, com apoio dos artistas de filiação construtivista Luciano Figueiredo e Oscar Ramos, costurava o pano de fundo para dois atos cênicos incendiários. O primeiro, solitário e melancólico, com a cantora de violão no colo, emitindo o canto de um bicho triste; o segundo, colérico e febril, com a cantora acompanhada de uma banda enérgica, emitindo o canto de um bicho ferido. Sobre o palco avermelhado (onde se lia “–FA–TAL–”, ao fundo, e “VIOLETO”, no chão), longos cabelos ondulados, um batom muito vermelho e coletes mínimos demarcavam a presença quase sobrenatural de Gal.

A palavra-destaque –FA–TAL–, que nomeou o disco do show, veio da experiência de Waly no chão da prisão militar. Ainda sob a alcunha Waly Sailormoon, o poeta ficou 18 dias encarcerado por porte de maconha – o vapor barato. Os textos febris produzidos no encarceramento foram a base para o livro Me Segura Qu’Eu Vou Dar um Troço (1972), no qual o termo é evocado dramaticamente em alguns poemas, como no trecho: “repeat now: o poeta em seu leito de morte, objeto de cena: taça de cicuta, antes de sorver o líquido –FA–TAL–, declama o verso: Criança, não verás…”. À ditadura, em um sentido erótico e também de resistência, Gal era uma figura perigosamente fatal.

Gal a todo vapor nasce de um êxodo afetivo bastante doído. O repertório escolhido por Gal, Waly e o produtor Paulo Lima (que havia ocupado o cargo de empresário na ausência de Guilherme Araújo) estabelecia que já não havia mais espaço para a ternura cínica do baby, I love you tropicalista. Naquele momento, a ternura perdia espaço para a incerteza e a aflição, conforme sinalizava em Pérola negra (Luiz Melodia): “baby, te amo, nem sei se te amo”.

Ela adensava o sentimento de mergulho em areia movediça em Vapor barato, de Waly e Macalé. O baby dócil de antes não mais lhe cabia. Quem havia tomado o seu lugar era uma honey baby para quem Gal projetava um canto ora desolado, ora afrontoso. A essa narrativa, se alinhavam Dê um rolê (Moraes Moreira e Luiz Galvão), Luz do sol (Waly e Carlos Pinto), Como dois e dois, Chuva, suor e cerveja (ambas de Caetano Veloso) e Mal secreto (Waly e Macalé), assim como os clássicos Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e Antonico (Ismael Silva).

Em entrevista à Continente, o produtor Paulo Lima recordou que o repertório foi escolhido por ele, Gal e Waly. Partiu de Paulo a ideia de dividi-lo em dois blocos de atmosferas distintas. As músicas do ato intimista foram sugeridas por ele, a partir de sua observação do cotidiano compartilhado com Gal. “O bloco inicial praticamente continha as canções que Gal passava o dia dedilhando ao violão na época em que morávamos juntos. Ela estava bastante melancólica, ouvindo o repertório de João Gilberto à exaustão e novamente cantando como ele”, destacou. 

De fato, a cantora estava mexida por uma experiência marcante: em agosto de 1971, havia protagonizado um especial da TV Tupi ao lado do grande ídolo e de Caetano, que havia viajado de Londres apenas para a ocasião. A junção dessa experiência permeada de saudade com o seu repertório explosivo de então foi, possivelmente, a germinação inicial de Gal a todo vapor.

O registro em disco foi gravado entre os dois últimos dias da temporada, pensada para durar apenas duas semanas. Após 10 apresentações programadas, Gal embarcou para Londres para ver de perto os amigos exilados. Voltou em dezembro, a tempo de curtir o verão nas Dunas da Gal. A cantora retornou tão revigorada, que estreou uma nova temporada do espetáculo no primeiro dia de 1972. A empolgação certamente tinha a ver com o aguardado retorno de Gil, Caetano e Guilherme Araújo, que voltariam do exílio no dia 11 de janeiro. Além de incluir músicas como Detalhes (Roberto e Erasmo Carlos), Oriente (Gilberto Gil) e Para um amor no Recife (Paulinho da Viola) no ato inicial, ela criou um terceiro ato escandalosamente carnavalesco. Com marchinhas e frevos do exílio, instituía a festa como gesto político de afronta aos porões da ditadura.

Diferentemente de outros espetáculos antológicos que não saíram de seu lugar de estreia, Gal a todo vapor teve apresentações em poucas capitais brasileiras. Houve uma estreia paulistana no dia 8 de junho de 1972, no Teatro Ruth Escobar, onde seguiu em cartaz por duas semanas. Antes disso, chegou a ser apresentado em Salvador, no Teatro Vila Velha, no mesmo palco sobre o qual Gal e os outros doces bárbaros deram os primeiros passos da carreira artística, em 1964, em espetáculos amadores de música popular brasileira. O que pouco se sabe, no entanto, é que o espetáculo teve uma única sessão na capital pernambucana, antes de uma passagem por Fortaleza.

GAL A TODO VAPOR NO RECIFE
A apresentação de Gal a todo vapor no Recife ocorreu 11 meses após a estreia carioca do espetáculo. Marcado para o dia 2 de setembro de 1972, o evento foi pensado para ocupar os mais de 15 mil lugares do Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o Geraldão, na Imbiribeira. A própria escolha do lugar, inaugurado dois anos antes, foi uma experimentação ousada: à época, se discutia se uma artista como Gal, então situada em uma interseção entre o popular e o elitizado, conseguiria preencher sozinha aquele espaço a contento.

Seria a segunda vez de Gal no Recife. Ela havia estreado na cidade no dia 20 de setembro de 1969, anunciada como a “Musa do Tropicalismo”, em dois shows: uma festa grã-fina no salão do Clube Náutico Capibaribe, e um show com uma plateia mais versátil no Teatro do Parque. As apresentações foram anunciadas no Diario de Pernambuco como o “grande acontecimento deste ano no Recife”, “pois ela é, sem qualquer favor, a artista de maior sucesso no Brasil atualmente”. As duas apresentações foram um arraso de bilheteria, mas o fato de ter havido uma grande ocupação no Teatro do Parque (900 lugares) não garantiria, por si só, a repetição do mesmo feito sob as dimensões do Geraldão, três anos depois.


Jomard Muniz de Britto publicou crítica poética, em setembro de 1972, no Jornal do Commercio, sobre o espetáculo Gal a todo vapor, no Recife. Imagem: Reprodução 

Afinal, com uma arena central rodeada por arquibancadas, se tratava de uma estrutura voltada para receber competições esportivas e eventos agigantados. À época, a ideia da gestão municipal de cultura e turismo era tornar eventos culturais “diferenciados” mais acessíveis ao grande público, o que, invariavelmente, proporcionaria maior lucro para os agentes envolvidos nas negociações. A batida do martelo se deu em decorrência do sucesso de público dos espetáculos de Caetano Veloso (15 mil pessoas) e Chico Buarque (13 mil pessoas), em janeiro e abril daquele ano, respectivamente, no mesmo espaço. 

Em seu melancólico intimismo alternado a arroubos de euforia, Gal a todo vapor, a ponta de lança da contracultura mainstream, acabou tendo uma bilheteria bastante modesta no Recife, não revelada em números totais. Com rendimentos aquém do esperado, constatou-se que o público de Gal à época seria mais adequado para teatros menores, não para estruturas faraônicas. Por essa razão, seus espetáculos subsequentes ocorreram no Teatro de Santa Isabel, em curtas temporadas de quatro dias, ao exemplo de Índia (ainda sob o título provisório Divino Maravilhoso), em março de 1973, e Cantar, em abril de 1974.

A VOLTA DOS EXILADOS
Gal a todo vapor chegou ao Recife no ensejo de shows envoltos em grande expectativa. No dia 11 de janeiro de 1972, Caetano Veloso e Gilberto Gil retornaram ao Brasil após amargarem um exílio forçado de quase três anos na capital inglesa. Os primeiros shows de ambos após o exílio ocorreram justamente no Recife. Apenas 10 dias depois de retornar ao país, Caetano posou na capital pernambucana para uma traumática, mas bastante lotada, apresentação no Geraldão, no dia 22 de janeiro. O motivo do trauma: o cantor precisou reagir energicamente às vaias e impropérios homofóbicos vindos da plateia do ginásio, ao incorporar gestos afeminados à Carmen Miranda, no show que apresentava o álbum Transa e canções associadas ao período no exílio.

Em um jogo de espelhos com Gal, que havia mantido acesas as últimas fagulhas tropicalistas em sua ausência, Caetano também usava um batom vermelho, longos cabelos ondulados repartidos ao meio e um colete justo – “um retrato vivo de Gal, pensado como uma homenagem a ela ter encarnado os tropicalistas expatriados durante aqueles anos”, lembrou, em texto de 2011. O visual andrógino e a performance fluida do artista, em O que é que a baiana tem e outros números (como Asa-branca, cuja versão intimista e experimental foi interrompida por vaias robustas) podem ter contribuído para incendiar os ânimos de uma plateia, em grande parte, conservadora, machista e homofóbica.

Gil também teve alguns contratempos no espetáculo que marcou o seu retorno (dedicado ao repertório do disco Expresso 2222, também produto do exílio), mas nada que comprometesse a apresentação. O artista cumpriu uma bem-sucedida temporada no Teatro do Parque, no Centro do Recife, de 3 a 5 de março. No dia da estreia, faltou energia no teatro, o que fez com que o compositor prosseguisse o show praticamente às cegas. Na plateia, estava Gal, com um característico chapelão sobre os cabelos ondulados, ornamento que foi elogiado em uma coluna social recifense. A cantora havia saído de Salvador de carro para prestigiar o aguardado regresso do colega tropicalista aos palcos brasileiros.

Nesse contexto de euforia pelo retorno dos sacerdotes tropicalistas, Gal decidiu levar a poucas capitais o show que havia gerado o primeiro álbum duplo do país. E o Recife, que havia sido a primeira parada dos amigos após o exílio, seria uma escolha simbólica para apresentar seu canto de resistência política.

REPERCUSSÃO NA IMPRENSA
Se não havia sido unanimidade no escopo da crítica carioca, Gal a todo vapor foi amplamente ovacionado no âmbito da crítica recifense. No Jornal do Commercio de 7 de setembro de 1972, Celso Marconi escreveu que “Gal pôde mostrar toda a beleza de sua arte tranquilamente, numa verdadeira doçura”, e que, na primeira parte do espetáculo, em que ela cantava sentada em um tamborete japonês acompanhada apenas de seu violão, “o silêncio era total, e a gente podia até sentir os fluidos positivos que estavam pelo ar”.

O jornalista registrou que o ponto alto do show havia sido O dengo que a nega tem, uma música de Dorival Caymmi que não consta na versão do show registrada em disco. De violão no colo, Gal recriava sobre a composição “com improvisações que vão crescendo e podem durar infinitamente”, de uma maneira que anulava “tudo que já existia em matéria de vivenciar uma composição”. No Recife, Gal extrapolou o roteiro conhecido no disco em, pelo menos, mais quatro momentos: cantou João Valentão, também de Caymmi; Vale quanto pesa, de Luiz Melodia; A morte, de Gilberto Gil; e Fria claridade, fado de Amália Rodrigues.

Na crítica, Marconi ressaltou que o show surpreendeu positivamente por ter sido no Geraldão, uma vez que conhecia “muita gente que deixou de ir pensando que iriam acontecer aqueles mesmos inconvenientes ocorridos no show do Caetano”. No entanto, a ocupação foi visivelmente aquém da capacidade do espaço. Para Marconi, ficou a lição aos produtores locais: “Um artista de elite (embora com profundas raízes populares) como Gal, mesmo que vá para um grande estádio, não ganha o grande público; e poderá perder pessoas que têm medo de que se houver grande público o show seja prejudicado”.

A apresentação também motivou uma resenha em formato de atentado poético, de Jomard Muniz de Britto, publicada na mesma edição. Sob o título “Quem não viu a pérola negra de Gal?”, Jomard elaborou um poema complexo e contundente, com uma introdução e sete tópicos numerados, em que discorre acerca do papel político de Gal à época: “Não tenham medo de ouvir um grito (há muito tempo preso na garganta…), grito primal, grito liberado nestas águas de setembro que agora derramarei. Pela necessária impureza do terror lírico. Amor/terror. (…) Numa só noite, em menos de duas horas, Gal reviveu sete vezes sete seu itinerário como cantora mais que cantora. Como intérprete, como gracinha, como pessoa que não se assusta consigo própria. Como alguém que vem assumindo uma posição dentro da existência e da criação cultural brasileira. (…) Gal devorou sua plateia, que nem ao menos desconfiava que estava sendo comida, num dos maiores banquetes da música viva popular livre brasileira”.

Um detalhe infeliz marcou a apresentação recifense. Após descontar o cheque com os cachês do show, Paulo Lima foi surpreendido com uma solicitação de devolução do banco por falta de fundos. “Esse episódio marcou a dissolução da minha parceria com Gal, que havia iniciado no espetáculo Deixa sangrar, em 1970. Logo em seguida, ela retomou a parceria com Guilherme Araújo”, contou.

REPERTÓRIO ABRANDADO
Paradoxalmente, Gal a todo vapor também foi a semente inicial para o “reamansamento” de Gal em termos de interpretação, dada a atmosfera intimista do primeiro ato. Isso seria reforçado em Índia e, mais intensamente, em Cantar, uma volta evidente ao elo joão-gilbertiano primário da artista. Na memória de Gal, a crítica detonou o disco e o espetáculo produzidos por Caetano. Neles, ela recolhia as garras e retomava sua essência de cantora. Deprimida pela má recepção, Gal só voltou a pensar em um novo projeto quando vislumbrou uma garantia comercial no repertório de Caymmi, em 1976, já que Modinha para Gabriela, da novela Gabriela, havia sido um sucesso massivo no ano anterior.


Gal, na fase do show Tropical, iniciada em 1979, já incorporava uma persona mais festiva. Foto: Thereza Eugênia/Cortesia

Nesse ínterim, era Elis Regina quem tomava as rédeas da resistência estética à ditadura, com uma série de projetos engajados elaborados, como Falso Brilhante (1975/1977) e Saudade do Brasil (1980). Gal estava em um caminho oposto, em busca de repertório, performances e figurinos mais refinados. Gal Tropical (1979) demarcou a transição definitiva dessa nova persona, aos moldes do que o empresário tropicalista Guilherme Araújo havia sugerido. Com o país a caminho de uma lenta redemocratização, ela havia abraçado o papel de musa das massas: a grande entertainer da beleza capaz de empolgar e emocionar multidões, uma precursora das estrelas da axé music sobre trios elétricos.

Após Gal a todo vapor (à exceção do show coletivo Doces Bárbaros, com Caetano, Gil e Maria Bethânia, em 2 de outubro de 1976), a cantora só voltaria a realizar um show no Geraldão em 1982, em Festa do interior, também sob direção de Waly. O problema agora não era de bilheteria, mas a falta de segurança para comportar o que seria a “grande prévia carnavalesca de 1982”. Os promotores locais precisaram tranquilizar o público de que não venderiam além da capacidade do ginásio. Garantiram também que reforçariam a estrutura do evento e liberariam a entrada do ginásio seis horas antes. A imprensa local criticava até o sucesso dos frevos de Gal, que tomariam o espaço dos locais.

Em 4 de fevereiro de 1982, o Geraldão tremeu sob o carnaval febril de Gal. Ao Diario de Pernambuco, Waly recordou na ocasião: “Na época do Fatal, o Rio de Janeiro era um grande bode. O show de Gal – as pessoas me diziam – era a claraboia, o lugar de entrar a luz e o ar. A época hoje é outra”. O poeta definiu Festa do interior como “uma festa para a massa, concebida sem nenhum sentimento de culpa ou medo”, e finalizou: “estou com Oswald de Andrade: a alegria é a prova dos nove!”. Em uma espécie de ressaca antecipada da ditadura, Gal se afastava de sua persona política e abraçava plumas, paetês e performances esfuziantes. Conscientemente ou não, ela contra-atacava o terror diretamente das trincheiras da alegria, munida de potentes balancês, blocos do prazer e corações pegando fogo.

RENATO CONTENTE, mestre em Comunicação e doutorando em Sociologia pela UFPE. É autor do livro Não se assuste, pessoa! As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar.


EXTRA: Leia resenha do novo álbum de Gal Costa, o Nenhuma dor (2021) – acesse aqui.


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