Obituário

Contardo Calligaris, uma palavra para o outro seguir

Psicanalista italiano, radicado no Brasil, faleceu no dia 31 de março deste ano, deixando uma legião de admiradores que o acompanhavam em sua coluna semanal, em seus livros, eventos e palestras

TEXTO Luciana Veras

03 de Maio de 2021

Contardo Calligaris (1948 - 2021)

Contardo Calligaris (1948 - 2021)

FOTO Karime Xavier/ Folhapress

[conteúdo na íntegra | ed. 245 | maio de 2020]

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Recife, agosto de 2011: faltava uma hora para a palestra que fecharia a última noite do A letra e a voz, porém, a fila já se formava dentro da Livraria Cultura. Havia jovens com exemplares de livros em suas mãos, senhoras de cabelos tonalizados, amigas que combinaram de se encontrar no local, um adolescente com a camisa de um time de futebol, um homem, já idoso, de bengala... Era um grupo heterogêneo e já um tanto ruidoso, o que levou o segurança a pedir silêncio algumas vezes, pois uma outra programação do 9o Festival Recifense de Literatura se desenrolava no mesmo auditório que, instantes depois, receberia o psicanalista e escritor Contardo Calligaris – razão pela qual estavam ali aquelas pessoas de diferentes bagagens, contudo enfeixadas pela vontade de ouvi-lo.

Quando a plateia já estava acomodada, algumas pessoas de pé, outras sentadas no chão do auditório, e o convidado para aquele A Letra e a Voz do Autor adentrou o recinto, com um sorriso a cumprimentar todas as pessoas, mesmo o segurança não conteve o espanto: “É esse cara que vai falar? É ele que esse povo está esperando?”. Cabelos grisalhos, porte altivo, um sotaque curioso que mesclava as origens italianas ao acento de quem rodou o mundo: esses elementos caracterizavam o palestrante daquela noite, mas talvez – a julgar pelo rebuliço da plateia antes de sua aparição – o funcionário da livraria achasse que encontraria um galã, decerto alguém mais novo, musculoso até…

Caso ele tivesse permanecido lá, constataria o encanto que aquele cidadão nascido em Milão, em 1948, despertava e sua incrível habilidade, como interlocutor, de erigir uma fértil via para concatenar ideias e fatos nos mais variados campos do pensamento – da filosofia à psicologia, da literatura à psicanálise, da música à cultura pop. Mas o segurança não ficou, eu tampouco; envolvida com a organização do evento, precisei sair para resolver um problema e, da conversa entre Contardo e o jornalista Cristiano Ramos, só vi os primeiros minutos, o bastante para cristalizar uma admiração que nutria por seus escritos, tanto nas tramas ficcionais O conto do amor (2008) e A mulher de vermelho e branco, lançado naquele mesmo ano, como na coluna semanal que ele assinava na Folha de S.Paulo.

Uma década se passou. A Livraria Cultura não existe mais no Bairro do Recife, o festival A letra e a voz também não. E Contardo Calligaris já não nos brinda com suas charmosas argumentações: em 30 de março de 2021, ele morreu em São Paulo, cidade que adotara como lar. “‘Espero estar à altura’. Diante da proximidade da morte, essa foi a frase do meu pai. Ele se foi agora. 1948-2021”, escreveu seu único filho, Max, em uma postagem no Instagram, logo após seu pai falecer em decorrência de um câncer. Não era a primeira vez que enfrentava a doença, sobre a qual era reservado, mas não se furtava a falar. Aliás, é difícil vislumbrar um tema – morte, vida, sexo, amor, sociedade, coletividade, mães/pais e filhos – que ele não pudesse desenvolver. 

Mas, em uma entrevista publicada na revista Marie Claire, em junho de 2008, ao responder à última questão proposta por Milly Lacombe – “A morte não mete medo?”, ele respondeu: “Há 10 anos tive um diagnóstico chato, apavorante, que, graças a Deus, não deu em nada. Mas tive que encarar, fazer uma cirurgia e só aí o médico disse: ‘olha, desculpa, a gente abriu por nada, não tinha nada’. Tá certo, melhor assim. Mas, durante meses, achei que ia viver no máximo dois anos, era o que os médicos diziam. Foi uma experiência interessante porque tive que considerar que morrer ia ser triste, mas que, por outro lado, tinha feito coisas bacanas. Claro que tinha coisas que eu gostaria de fazer e não ia mais dar tempo, como, por exemplo, escrever esse romance. Mas, no fundo, a ideia que ficava é a de que tinha sido uma puta jornada. Eu ia embora em paz. Então, talvez morrer não seja tão ruim assim (ri)”.

livro o conto do amor
Capa do romance O conto do amor, lançado em 2008. Imagem: Divulgação

No hiato entre essa declaração e sua despedida, é possível perceber como sua “puta jornada” contribuiu para popularizar o debate sobre a psicanálise, e o próprio fazer analítico, nesta contemporaneidade que ele não se furtou a radiografar. Na sua última década de vida, por exemplo, obteve êxito em transpor Carlo Antonini, seu alter ego e protagonista das duas obras de ficção publicadas pela Companhia das Letras, e a sua linguagem sofisticada, sempre ancorada na caligrafia coloquial de quem compreendia a importância de se comunicar bem com seus interlocutores, para os 42 episódios do seriado Psi

Contardo foi a liderança criativa da adaptação televisiva que a HBO produziu e exibiu entre 2014 e 2019, em um set permeado por tudo que nos afeta e que por nos é afetado: Max Calligaris, seu filho, era um dos diretores, ele próprio passou a dirigir na segunda temporada e algumas das histórias pelas quais trafegava Carlo, vivido por Emílio de Mello, haviam sido pinçadas das suas vivências – logo no primeiro capítulo, o terapeuta se envolve com uma malabarista que conhece no trânsito, o que o autor sempre reconheceu como fato. 

Nos dias após sua partida, vários tributos evidenciaram essa sua capacidade de viver o que pregava, com a coragem de experimentar – ou como diziam suas próprias palavras, compiladas em uma breve antologia de frases que a Folha de S.Paulo distribuiu no dia da sua morte: “Fora isso, minha aspiração dominante não é a de ser feliz: quero viver o que der e vier, comédias, tangos e também tragédias – quanto mais plenamente possível, sem covardia. Meu ideal de vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas”, escreveu em 2011. 

Na primeira semana de abril, a psicanalista e escritora Maria Homem – sua companheira nos últimos anos (no derradeiro dos oito casamentos, aos quais se referia com bom humor e uma ênfase menos na incandescência da paixão e mais na aposta da convivência diária com o outro) e com quem publicou Coisa de menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo (2019) – partilhou delicadezas íntimas. Malu, como ele a chamava, sublinhou: “Cada um vive a morte à sua maneira. A inexoravelmente solitária forma de cada um ter seu corpo e seu ser sendo atravessados pela morte. A morte de quem morre e a morte de quem fica. Na véspera, a pergunta era séria e talvez sem resposta: o que vai ser de mim sem você? Você estava consciente, olhou no meu olho e disse: ‘Vai ser o que você quiser’. Parei de chorar naquele instante. Olhei atônita: você conseguia ser analista até debaixo d’água. Você ofertava ao outro uma palavra para ele seguir. E conseguia ser fiel ao seu mais caro princípio até o final: crie sua vida. Esse é o sentido que ela tem e que você criará para ela.”

***

Ele criou uma vida e tanto. Seu pai lutara contra o fascismo na Itália e se tornara um cardiologista fã de Norberto Bobbio. Era próximo da mãe e do irmão, mas na adolescência começou a exercer a liberdade que sempre lhe seria tão cara. “Fugi de casa aos 15 anos, fiquei um ano vivendo de expedientes. Voltei, mas não queria fazer faculdade, queria ser fotógrafo. Comecei a trabalhar, traduzia romances policiais do inglês para o italiano, e me casei com 19 anos, sem ter absolutamente nada com que viver”, recontaria em uma conversa com Pedro Herz, em dezembro de 2017, para o Sala de visita, programa do YouTube da Livraria Cultura. 

Com seu ímpeto de explorador, foi aluno de Jean Piaget, na Suíça, e orientando de Roland Barthes, na França; integrou a Escola Freudiana de Paris e, por lá, acompanhou as apresentações dos casos clínicos de Jacques Lacan. Morou nos Estados Unidos, foi professor de antropologia médica e ele mesmo um analisando antes de se destinar à prática de ouvir. 

Anos depois, aliou a bagagem do consultório à experiência de todos seus estudos para oferecer conselhos destinados a quem se interessava pela escuta. Assim nascia Cartas a um jovem terapeuta (2004), até hoje tido como referência por pares como Jurandir Freire Costa. “Quem admite a dúvida sobre o que é pode ser ajudado a assumir a responsabilidade para com a incompletude; quem acha que já achou a verdade, dificilmente abandonará o gozo com a irresponsabilidade para consigo e com a crueldade para com os outros”, observou o psicanalista e psiquiatra pernambucano radicado no Rio de Janeiro, para quem o livro era “uma meditação psicanalítica simpaticamente oferecida a todos”. “Um texto denso sem prepotência e irônico sem ressentimentos. É bom encontrar alguém que faz, com mais perícia e talento, o que gostaríamos de ter feito. Ganhamos todos”, elogiou Jurandir, em artigo de 2004. 

Contardo Calligaris e o ator Emilio de Mello, que interpreta o personagem central da série Psi, exibida na HBO e escrita pelo psicanalista. Foto: Fabio Braga/ Folhapress

“Os embates de ideias entre ele e Jurandir eram conversas muito férteis”, conta a psicanalista e psicóloga pernambucana Susana Mello, que foi aluna de Jurandir nos anos 1990, em grupos de estudo e supervisão na capital carioca. Oriundos de contextos bem distintos – quatro anos mais velho, Jurandir nasceu em Camaragibe, vizinho ao Recife, enquanto Contardo veio do norte da Itália –, viraram amigos muito próximos e pareciam bailar ao intercambiar pontos de vista. “Às vezes, eram formas de pensar a mesma coisa, mas por caminhos diferentes. Eles tinham encontros fabulosos. Quem teve a chance de acompanhar essas trocas foi muito privilegiado em sua formação”, pontua. Foi no campo da formação, e na esfera da clínica de atendimento psicológico da UFRGS, em Porto Alegre, que os dois criaram, ao lado de Octavio Souza e Luiz Tarlei de Aragão, O Sexto Lobo – Clínica do Social

Tratava-se de “fórum de trabalho em que seus coordenadores pretendem publicar textos que atestem que não existe uma psicanálise do ‘individual’ e outra ‘aplicada’ ao sintoma social, pois o sintoma é sempre social. O que se denomina de individual, a singularidade, é sempre o efeito de uma rede discursiva que é a rede mesma do coletivo”, na descrição da orelha de um volume de ensaios publicado em 1991. O “sexto lobo” se refere ao sonho do homem dos lobos, um dos basilares para Sigmund Freud. Ao revisitar as memórias oníricas diante do Pai da Psicanálise, o paciente falou de seis ou sete lobos, mas, ao desenhar, só esboçou cinco animais. “É legítimo se perguntar então onde passaram o sexto e o sétimo lobos. E, mais especificamente, escolhendo o sexto, fazer dele o emblema de algo que às vezes possa – no cotidiano da prática psicanalítica – vir a ser desconhecido. De que se trata?”, indagavam os quatro.

À Continente, Octavio Souza envia suas lembranças dessa época: “O Sexto Lobo foi um grupo reunido por Contardo para pensar a extensão da psicanálise no campo do social. Desde quando começou a viajar para o Brasil, já vinha pensando essa extensão, como testemunham seus seminários em Salvador, em 1986, sobre a perversão como laço social. De início, fomos quatro lobos: Contardo, Jurandir, Luiz Tarlei de Aragão, saudoso amigo antropólogo, discípulo de Louis Dumont, sobre a obra do qual Contardo se detinha especialmente na época, e eu. Depois veio se juntar a nós o também saudoso Manoel Berlinck. No meu entender, a ideia mais forte de criar o grupo veio a Contardo provocada pelo intenso diálogo que estabeleceu com Jurandir, iniciado por seu interesse e admiração pelo artigo que Jurandir escreveu em 1988, Narcisismo em tempos sombrios. Contardo e Jurandir foram os faróis que iluminaram O Sexto Lobo ao longo dos tantos anos de sua existência. E hoje só estamos aqui Jurandir e eu…”. 

Do Rio de Janeiro, onde é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, ele acrescenta outros detalhes ao revisitar o amigo que se foi. “Sobre as características de Contardo que mais me chamavam a atenção, destaco, além de sua notória inteligência, erudição e originalidade, sua coragem e generosidade. Contardo era corajoso de muitos modos: na impetuosidade que dedicava a seus projetos, no modo pelo qual revelava sua personalidade mais íntima em seus escritos e em suas conversas, em suas decisões de partir em busca de novas experiências, pela segurança com que enfrentava as situações novas que encontrava e, mesmo, na coragem do confronto pessoal. Lembro quando teve um carro roubado e saiu pela noite de Porto Alegre procurando por seu carro, pronto para enfrentar o ladrão e tomar satisfações. Felizmente, não o encontrou. Quanto à generosidade, devo dizer que poucas pessoas em minha vida me proporcionaram tantas experiências formadoras em minha trajetória pessoal e profissional. O convite para participar de O Sexto Lobo é apenas uma delas. E como Contardo também amava aproximar as pessoas, devo a ele a formação de amizades que me são até hoje muito caras”, complementa Octavio. 

***

De relatos como esse, dos textos e da conduta de Contardo Calligaris, uma impressão que perdura é o compromisso com a dúvida, a instigação pelo desconhecido, bem como seu apreço pela partilha. Dotado de vasta generosidade intelectual, não encastelava seu saber, nem o restringia ao seleto círculo que podia pagar suas sessões ou desfrutar da sua amizade. Ele era um psicanalista pop, na acepção literal do termo, e assim era capaz de discorrer sobre o conceito de banalidade do mal em Hannah Arendt ou a derrocada de Donald Trump, de mergulhar nas questões estruturais em Adolescência (2000) ou compilar crônicas a partir do trinômio política-comportamento-cultura em Todos os reis estão nus (2013). 

E não se fechava para convites a renovações – de pensar, estar, ser e agir –, enquanto escolhia a chance de ousar, o arrojo do risco. “Entre os jovens excessivamente achados e os perdidos, tenho preferência pelos perdidos”, disse certa vez, apontando para a juventude, mas iluminando também todos aqueles que, ao se manter abertos aos chamados da vida, não se cansam de buscar. Como ele. 

“Contardo viveu sua vida de forma plena e incandescente”, anotou o cineasta e amigo pessoal Walter Salles. “Viveu os dias de Maio de 68 e o legado de Barthes e Lacan. Lecionou em Berkeley, berço da contracultura americana que admirava. Mas se apaixonou mesmo pelo Brasil – não faltaram avisos em contrário. ‘Esse país não presta’, ouviu. No momento em que Contardo escreveu Hello, Brasil!, estávamos, como hoje, numa profunda crise identitária. Isso não o impediu de pensar que poderia haver um futuro possível aqui, e lutar por ele. Foi um dos pensadores que, não tendo nascido no Brasil, sentiram o país com profundidade”, completou Salles. 

Publicado pela primeira vez em 1991, Hello, Brasil! e outros ensaios: psicanálise da estranha civilização foi o livro que Walter Salles e Daniela Thomas leram enquanto rodavam Terra estrangeira. Era o Brasil no divã. “Comecei a viajar ao Brasil em 1985, em 1989 decidi fechar meu consultório e vender o apartamento de Paris, entre 1989 e 1990, portanto, foi a época em que descobri o Brasil. Com esse subtítulo, foi escrito quando o Brasil me parecia estranho. Hoje em dia eu não poderia mais escrever esse livro, porque já me acostumei. Estou integrado, sou brasileiro de alguma forma. Nessa nova edição, revista e ampliada, tem uma introdução em que explico como o livro foi decisivo. Foi a partir dele que fui convidado a escrever na Folha e que achei, entre a psicanálise, uma maneira de escrever que fosse ou seja para todos”, situou Contardo em 2017, ano em que Hello, Brasil! foi reeditado.

Ele postula que o brasileiro trazia, como componente subjetivo ontológico, a dualidade colono/colonizador. “Como quem acaba de descer do barco, vindo da Alemanha ou da Itália, tem uma exigência comovedora e quer se fixar aqui, mas também como o colonizador, que quer gozar dessa terra até deixá-la totalmente esgotada”, sintetizou. Nos mais de 30 anos de residência no nosso país, observou as mudanças nos estratos sociais advindas dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e sentiu os ventos fascistas que começaram a soprar. Mas sempre sinalizava a resistência. Como lembrou Walter Salles, que se preparava para rodar um documentário a partir dos escritos do amigo, Contardo sentenciou: “Quero viver em Bacurau”: “Aquela sociedade libertária, impura e resiliente o fascinara. O colono se vingava finalmente do colonizador, cumprindo a utopia prenunciada em Hello, Brasil!”.

Seis dias depois da passagem do milanês para as outras misteriosas veredas da existência, seu amigo Jurandir Freire Costa, participando de uma reunião virtual do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, revelou naquela sala do Google Meet que havia descoberto o músico Emicida no documentário AmarElo - É tudo para ontem. “Não conhecia, achava que era mais um DJ. Fiquei muito impressionado”, comentou. Logo em seguida, uma psicanalista respondeu: “E eu que sempre tive um grande preconceito com música sertaneja, mas, depois que li o artigo de Contardo sobre o filme Dois filhos de Francisco, passei a ser uma admiradora do gênero?”. Entre risos, e com afeição, ele resumiu: “Ah, mais um milagre de São Contardo”.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente.

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