Na retórica aristotélica, o ethos é identificado como o caráter, a credibilidade e a identificação do orador com o público a quem fala, como ele se apresenta; já na Sociologia e Antropologia, ethos refere-se ao conjunto de traços comportamentais e/ou costumes e tradições que identificam determinado grupo social, povo, nação. Foi com essa palavra, tão inusual no nosso cotidiano, que o cantor e compositor Juba resolveu batizar sua estreia no mundo fonográfico. Em Ethos, seu primeiro álbum, lançado em novembro de 2020, o artista busca na expressão musical reunir os elementos que compõem o ser que ele é e o que ele carrega, como expressões e modos de cantar e se referenciar que o ligam ao nordeste brasileiro. É o ethos do artista, do “orador”, que, ao longo de 39 minutos e 21 segundos, oferece em sua narrativa traços da música e do jeito da arte nordestina que, afetivamente, têm sido seu alimento, sua inspiração.
Juba é Juliano Valença. O sobrenome entrega a filiação: é filho de Alceu Valença, um dos pilares da música pernambucana/nordestina/brasileira. Na verdade, não é só o sobrenome. Traços físicos também lembram o pai quando jovem, mas, certamente, a relação com a música pernambucana e as conexões com “a terrinha” o fazem referendar seus genes. Nascido há 28 anos, no Recife, com apenas quatro meses de idade, seguiu com os pais para o Rio de Janeiro, onde cresceu. Mas a ligação umbilical com Pernambuco sempre esteve presente, seja na convivência com o pai, ao vê-lo, na intimidade, entoar o cancioneiro popular nordestino, seja com as vivências nas férias que sempre passou em Pernambuco, ao menos, uma vez por ano. Com o desejo de estar cada vez mais organicamente ligado ao que, de alguma forma, estava latente na sua afetividade, Juba veio morar em Pernambuco. Desde 2017, ele reside em Olinda, na Cidade Alta, com a companheira e parceira (também no disco), Carol Montenegro. Essa mudança foi decisiva para desencadear o processo do que viria a se tornar seu primeiro álbum.
Lançado pela Deck Disc, Ethos traz 11 composições. Delas, nove são de autoria de Juba – algumas, em parceria. O álbum passeia por gêneros que demarcam o lugar de origem do autor: lá estão frevo, baião, xote, assim como, em algumas passagens, ouvem-se ecos do udigrúdi pernambucano e elementos da psicodelia, do rock, do ska e do brega. Uma antropofagia bem ao gosto pernambucano, que reflete o modus operandi herdado desde a geração da qual seu pai faz parte. Ethos foi gravado no Estúdio Fábrica, no Recife, e produzido pelo multi-instrumentista Júnior Do Jarro (Ave Sangria, Anjo Gabriel, Trio Queimando em Brasa), além de contar com a colaboração de um time de mais de 20 músicos participando das faixas, praticamente todos amigos surgidos após Juba desembarcar definitivamente em Olinda.
Em terras pernambucanas, Juba pode viver e experienciar in loco o que já lhe movia criativamente há algum tempo, desde o Rio de Janeiro, quando ainda integrava a Açucena, banda que fazia covers do cancioneiro nordestino, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale. “Com essa oportunidade, esse privilégio de vir para cá, morar em Olinda, eu pude ter o acesso mais profundo e verdadeiro à cultura e aos costumes da gente, acesso direto ao que é feito nas ruas e, também, na noite. Seja a tradição, o frevo na porta de casa, mas, também, ter contato com todo mundo que está produzindo música aqui”, conta Juba. “Tive esse período, de 2017 a 2019, para ir mastigando as coisas, entendendo o ritmo daqui, os costumes, e fui compilando as músicas que iam entrar no álbum. Em 2019, começamos a produção do disco.”
O DISCO
Em Ethos, Juba foi em busca dos aboios sertanejos, do arrasta-pé do forró, das batidas do coco, dos metais do frevo, do cenário afetivo sonoro que lhe cevou o imaginário. Mas também não se furtou em assimilar outras intenções musicais, além do tradicional. “Então, (o disco) tem essa mistura toda. Não hesitamos em colocar um sintetizador no frevo. Essa brincadeira da tradição com o moderno, de não ser tão purista”, diz.
A música que abre Ethos é Pra brincar o Carnaval, frevo que desemboca num ska mais acelerado. A música conta a história do menino que chega em Olinda diretamente para o carnaval. Em meio ao furdunço e à alegria que existem na celebração popular, já exaltada por tantos compositores, também há o lado mais “obscuro” da folia momesca: a repressão via truculência policial (com cassetetes e sprays de pimenta), a violência, citando, inclusive, agulhadas anônimas desferidas nos foliões, no meio da multidão. O clima de caos foi transposto para a música no arranjo de sopros de Henrique Albino, jovem instrumentista que escreveu e executou todo o naipe – saxes tenor, soprano e barítono, flauta e flautim. O andamento enérgico segue na faixa seguinte: Meia lua, lua e meia, que fica entre o galope e pitadas de hardcore.
Importante pontuar que duas canções abriram os caminhos de Ethos, antes do álbum completo: Mulher de ethos e Coco das flores foram os singles lançados por Juba e ambos ganharam videoclipes que estão no Youtube. A primeira, um xote, é a única música do disco composta antes da mudança para Olinda, e foi lançada ainda em 2019, no início do processo de criação do disco. Coco das flores veio mais recentemente, pouco antes do álbum, e traz a participação do icônico guitarrista Paulo Rafael – da Ave Sangria e músico do elenco de Alceu há mais de 40 anos. Além da guitarra de Paulo, a faixa ganhou vestimenta de um trio de cordas clássico – violino, viola de arco e cello – e da viola de 10 cordas de Philippi Oliveira.
Das canções presentes em Ethos, só duas não são assinadas por Juba. Xote manso, composição do artista Tyaro, que, assim como Juba, é um pernambucano que foi morar no Rio de Janeiro, onde reside. E O Sertão preciso é disso, música composta e gravada anteriormente por Alceu Valença, para a trilha sonora do seu longa A luneta do tempo (2016). Na faixa, Juba pinçou trecho de uma fala de Lampião no filme, com algumas adaptações. “O poder é irmão da polícia/ Que é prima carnal do Estado/ E de uma cega/ Chamada justiça”, entoa Juba na música, que tem a participação da banda de rock Anjo Gabriel.
Lançado pela Deck Disc, Ethos traz 11 composições. Ouça acima.
Foto de capa: Thayse Gomes/Divulgação
Outro grupo que também participa do álbum é o Trio Queimando em Brasa – Júnior Do Jarro (voz e sanfona de 8 baixos), Klauss Florêncio (triângulo) e Carlos Amarelo (zabumba) –, na faixa Bacupari, Cajuí, Cambará. Um forró “pé-de-bode”, feito em parceria com Carol Montenegro, listando uma série de espécies apresentadas no livro Cordel de plantas medicinais do Cerrado, de Evandra Rocha e Antonio Alencar.
A música Céu de ilusão – título que quase batizaria o disco, revela Juba – foi a escolhida para trabalhar o álbum, logo de saída. Ela também ganhou um videoclipe, lançado no início de dezembro. A composição de Juba e Júnior Do Jarro tem um sabor setentista, que nos remete diretamente ao udigrúdi pernambucano. Esteticamente, essa é uma referência bem presente e compartilhada por boa parte da geração de músicos pernambucanos de hoje em dia. Da fonte da qual beberam os jovens músicos que gravaram a canção de Juba vêm o andamento, os arranjos e os timbres dos instrumentos que vestem Céu de ilusão, tamanha a identificação. Há, inclusive, uma ligeira semelhança textual – inconsciente e não intencional, segundo Juba – entre Céu de Ilusão e Pontos cardeais, música de Alceu daquele período, gravada no LP Vivo! (1976). Se Juba canta “Eu quero três beijos molhados/ Um quarto assanhado/ Na mesma estação”, seu pai cantava “Eu quero um terraço com telhas de vidro/ Na beira de um lago/ de águas azuis”.
Duas faixas de Ethos caminham por fora dessa “matriz conceitual” do álbum, do nordestino: Algoritmos azuis, parceria com Feiticeiro Julião, se situa entre o brega e uma balada rock a la 60’s, cuja letra não fala de amor, mas das armadilhas do mundo virtual; e Observe a janela, um chamamento a um mergulho interno, com letra “dadaísta” e uma atmosfera psicodélica.
Começando na “porrada”, Ethos encerra em calmaria. A canção que finda o álbum, Alto mar, nos leva a um cenário praiano, a partir de um olhar que, da beira do Atlântico – poderia ser o Recife, poderia ser o Rio de Janeiro –, mira o “além-mar”, com uma certa dolência que há na música lusitana.
SOLO A VÁRIAS MÃOS
Apesar de ser um disco solo, com a assinatura de Juba, Ethos reuniu muita gente disposta a colaborar com o trabalho. Só de instrumentistas e coro, foram 25 pessoas que ajudaram a dar cria ao som ouvido no álbum. “É claro que eu fiz a concepção do disco, junto com Do Jarro, mas foi um disco feito a muitas mãos, todo mundo teve liberdade de botar ali o seu tempero. E fico feliz de ter juntado tanta gente bacana, que dedicou parte do seu tempo para esse trabalho. Foi muito astral. Tem uma leveza que ficou impressa ali, no som”, comenta.
Além de nomes como Paulo Rafael, Publius (bandolim em Céu de ilusão e Alto mar), André Julião (sanfona em Meia lua, lua inteira e Xote manso) e o percussionista olindense Viola Luz (em Coco das flores), Juba se cercou de jovens músicos pernambucanos, da sua geração, que comungam as mesmas preferências estéticas, e que não estão, necessariamente, no mainstream, mas fazendo a música independente reavivar-se sempre. Entre eles, estão os já citados Henrique Albino, Anjo Gabriel e Trio Queimando em Brasa, além de Feiticeiro Julião, Erick Amorim, Juvenil Silva, Marcelo Cavalcante, Márcio Oliveira. “Se eu tivesse feito esse disco lá no Rio de Janeiro, com certeza, o resultado seria outro. Primeiro, pelos músicos que estão aqui em Ethos; segundo, pela vivência que eu estou tendo morando aqui”, pontua o artista.
Ethos revela um intento de busca e de (re)encontro. Revela esse voltar-se ao cordão umbilical por onde trafegaram os nutrientes que alimentaram o imaginário e a potência criativa do seu autor. Para Juba, foi uma necessidade estar pisando e sentindo o chão que baseou seu nascimento e o nascimento da sua obra inaugural.
LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.