Crítica

Literatura, documento, arquivo

'Talvez Esther', da ucraniana Katja Petrowskaja, e 'Arquivo das crianças perdidas', da mexicana Valeria Luiselli, usam recursos da ficção para refletir sobre trauma e violência

TEXTO KELVIN FALCÃO KLEIN

31 de Janeiro de 2020

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo na íntegra | ed. 230 | fevereiro de 2020]

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Lançado
originalmente na Alemanha, em 2014, o romance Talvez Esther, da escritora de origem ucraniana Katja Petrowskaja, é a história de uma investigação familiar: a narradora vai atrás dos rastros de seus parentes das últimas gerações, tendo como núcleo principal de irradiação da memória o trauma da Segunda Guerra Mundial e da máquina de extermínio dos nazistas.

Arquivo das crianças perdidas, por sua vez, escrito em inglês pela escritora de origem mexicana Valeria Luiselli e lançado nos Estados Unidos no início de 2019, é também um romance focado na família, mas com uma questão de fundo contemporânea: a crise da imigração na América do Norte, o estabelecimento de centros de detenção e triagem e a repercussão desse estado de coisas na vida de milhares de crianças.

Os dois livros foram lançados este ano no Brasil, o primeiro com tradução de Sergio Tellaroli e, o segundo, de Renato Marques. Lidos em conjunto, mostram o amadurecimento de uma vertente da literatura contemporânea preocupada em relacionar ética e estética, usando os recursos da ficção para refletir sobre traumas e violências do passado e do presente.

 

O principal ponto de contato das duas autoras está no uso distanciado e diferido da língua e o efeito desse uso sobre o estilo literário. Petrowskaja, que nasceu em Kiev e estudou em Moscou, tem como língua materna o russo, mas usa o alemão como língua de trabalho – ela mora em Berlim desde 1999 e atua como jornalista em publicações russas e alemãs. Luiselli nasceu na Cidade do México, mas com dois anos de idade se mudou para os Estados Unidos por conta do trabalho do pai, que ainda levaria a família para a Costa Rica, Coreia do Sul e África do Sul. Luiselli sempre oscilou entre o espanhol e o inglês ao longo de sua produção literária, e Arquivo das crianças perdidas é o primeiro romance que escreve direta e exclusivamente em inglês.

Talvez Esther é o primeiro romance de Petrowskaja, enquanto Luiselli já publicou outros dois, Rostos na multidão e A história dos meus dentes. Para além do ponto principal de contato, a literatura vista por uma perspectiva bilíngue, os dois romances compartilham uma série de outros elementos: o uso de imagens e de fontes de documentação como jornais, livros e arquivos; a reflexão sobre a infância, a passagem do tempo e o conflito entre gerações; estruturas narrativas que privilegiam seções breves dividindo os capítulos; progressão narrativa que faz uso das convenções do gênero investigativo ou mesmo detetivesco, trabalhando com revelações que se dão pouco a pouco no andamento da história; e, por fim, a intensa e muito bem-refletida mistura da ficção com a política e a história, a Alemanha das leis raciais de Hitler, no caso de Petrowskaja, e os Estados Unidos dos centros de detenção de imigrantes, no caso de Luiselli.

DOCUMENTAÇÃO
A literatura está sempre tensionada pelo real, pelo factual e pelo documental. Trata-se tanto de uma categoria externa e distante quanto de um desejo íntimo, permanente, o tipo de atração pelo fidedigno que levou Balzac, no século XIX, a suavizar a definição de “escritor” e se declarar um “historiador de costumes” (Karl Marx corroborou a autopercepção do autor e declarou que a Comédia humana de Balzac era o melhor documento para se entender o século XIX). Podemos pensar nas meticulosas descrições do ofício de caça às baleias em Moby Dick, nas narrativas protoetnográficas de Jack London (O povo do abismo) até chegar nos romances de “não ficção” de Rodolfo Walsh, Truman Capote, Norman Mailer, entre outros.

Petrowskaja e Luiselli certamente se encaixam nessa linha, fazendo seus próprios ajustes ao campo amplo dessa tendência da literatura contemporânea. Talvez Esther é um romance com imagens, com uma série de fotografias – rostos singularizados, alunos posando em uma sala de aula, a vista aérea de uma cidade –, todas em preto e branco, que vão aos poucos aparecendo na narrativa, comentando indiretamente a história de uma narradora que busca o paradeiro de seus parentes durante e após a Segunda Guerra Mundial. Arquivo das crianças perdidas, que traz a questão da documentação já no título, também utiliza imagens, mas elas estão separadas da narrativa, compondo uma seção independente e final do livro. Trata-se de um conjunto de polaroides tiradas durante a viagem de carro em família que é narrada ao longo do romance: a narradora, o marido, um menino de 10 anos (filho dele) e uma menina de cinco anos (filha dela). Eles saem de Nova York em direção ao oeste do país, o marido para uma pesquisa sobre os apaches, a mulher para uma pesquisa sobre os centros de detenção para crianças imigrantes (e seus frequentes desaparecimentos no deserto que separa o México dos Estados Unidos).

Os dois romances se desenvolvem a partir de questionamentos acerca da possibilidade de escrever um romance. Por onde começar? Quais as condições materiais necessárias para se narrar uma história? “Debrucei-me sobre relatórios e artigos acerca de crianças refugiadas e tentei reunir informações sobre o que estava acontecendo na fronteira, em abrigos e centros de detenção”, escreve a narradora de Luiselli, e continua: “Compilei notas soltas, recortes, fragmentos, citações copiadas em cartões, cartas, mapas, fotografias, listas de palavras, recortes de jornal, depoimentos gravados em fita”. A preparação do romance não é algo que permanece nos bastidores, como na narrativa realista tradicional, pelo contrário – o estabelecimento das circunstâncias de escrita são fundamentais para a narrativa, para sua manifestação como performance e crítica social.

Em Talvez Esther, essa ênfase na preparação é ainda mais intensa por conta de seu tema, denso e carregado historicamente. Antes de começar a escrever, a narradora de Petrowskaja precisa lidar – material e mentalmente – com um vastíssimo arquivo de referências sobre as estratégias de extermínio nazistas. “O passado traía minhas expectativas, escapava-me das mãos e cometia um deslize atrás do outro”, escreve ela, e continua: “No arquivo, encontrei relatos de funcionários públicos austríacos e de americanos que tinham descoberto um campo de concentração desconhecido na floresta (…) a memória da minha alma estava lotada com os mortos na floresta, e comecei a tirar cópias das folhas soltas, porque, como é sabido, os aparelhos existem para suprir nossas incapacidades, ou antes para ampliar nossas capacidades”.

Tanto Petrowskaja quanto Luiselli trazem constantemente à tona essa consciência das dificuldades da narração. Suas histórias só existem porque elas buscam ocupar espaços alheios, de indivíduos silenciados e soterrados pela história e pelo andamento cada vez mais vertiginoso dos fatos e das relações. A “documentação”, em última instância remete, nos dois romances, à própria noção do “documento”, da identidade e da permissão dada ou cancelada para a circulação dos corpos pelas sociedades – a Alemanha nazista, em Talvez Esther, e os Estados Unidos de hoje, em Arquivo das crianças perdidas.


Investigação familiar em torno da Segunda Guerra
enreda a
narrativa de Petrowskaja. Foto: Divulgação

Além disso, a “documentação” é também uma espécie de senha de abertura de um novo campo de investigação do contemporâneo por parte da literatura, recusando categorias como as “invenção”, “criatividade” e “inspiração”. A escrita, portanto, não se dá no vácuo, no isolamento de um artista criador que se basta, e, sim, no trabalho metódico de prospecção, coleta e montagem dos detritos do passado e do presente.

INVESTIGAÇÃO
Os dois romances usam a estrutura narrativa da investigação, contando a história de uma busca que vai se revelando mais e mais complexa. Em primeiro lugar, como visto acima, a busca pelo próprio romance, a construção de um terreno ético que permite a emergência da narração. Em seguida, no caso de Arquivo das crianças perdidas, existe a solicitação infalível à narrativa de viagem: enquanto há movimento, há história. A família entra no carro, sai de Nova York em direção ao interior do país e o romance só se encerra com a conclusão da viagem e a chegada ao destino (os centros de detenção, as crianças desaparecidas). A viagem é um procedimento que gera narrativa, pois cada parada na estrada, cada nova cidade, cada passagem do dia para a noite, e da noite para o dia, produz comentário e interações entre os quatro tripulantes.

Em Talvez Esther o procedimento se repete, embora não de forma tão linear. Também não se trata de uma família em deslocamento, mas uma única pessoa, a narradora – que compartilha o nome “Katja” com a autora, vive na Alemanha e escreve em alemão, mesmo sendo, para ela, uma língua estrangeira. O idioma adquirido tardiamente é também um dispositivo, um procedimento de estranhamento. Ao abandonar o russo e introjetar o alemão, a narradora pode ver a si e aos seus parentes (sua história familiar, ao mesmo tempo traumática e confortadora) com distanciamento, construindo uma espécie de ambiente artificial para sua experiência narrativa. Para abordar o passado, e a partir daí configurar uma narrativa, é preciso primeiro estranhar a língua e o acesso à linguagem, escapar da familiaridade dos gestos e das palavras que vêm facilmente.

Por isso a insistência dos dois romances com a tradução, os jogos de palavras, os comentários sobre termos ambíguos, os relatos, os testemunhos, as entrevistas. A língua nunca é natural, neutra ou acessível. Ela é sempre atravessada pela incompreensão, pelo esforço de fazer sentido, pela tensão de interpretações conflitivas.

Em Luiselli, a família dentro do carro escuta canções e notícias no rádio, aqui e ali pescando termos que não ficam claros para as crianças ou que são interpretados de forma fantasiosa (“Eles moram em um túmulo ou em um cúmulo? pergunta a menina”). Em Petrowskaja, a narradora com frequência desliza pelas variações de sentido de termos em russo, iídiche, alemão e inglês, estranhando anúncios e letreiros nas cidades, nomes e expressões em documentos e anotações (meschugge, “maluco”; heil, “são”, ou Heil, a saudação; kozir, “trunfo”, kozirnaia karta; krzew, “arbusto”, o sobrenome Krzewin). “Pensava em russo, procurava meus parentes judeus e escrevia em alemão”, escreve a narradora de Petrowskaja. “Tinha a sorte de me mover no abismo entre as línguas, na troca, na confusão de papéis e pontos de vista.”

As investigações se desenvolvem no mundo exterior, na sociedade – os rastros dos parentes nos arquivos, as notícias dos imigrantes –, mas são sempre espelhadas em uma ação detetivesca que ocorre no interior da linguagem e da narrativa. Esse duplo registro investigativo explica a razão dos dois romances utilizarem a perspectiva infantil, no caso de Luiselli, com as crianças durante a viagem e, no caso de Petrowskaja, com a constante retomada da informação de que muitos de seus antepassados foram educadores especializados em crianças com deficiência auditiva. A criança parece estar em constante estado de investigação, sempre curiosa pelo mundo, ainda testando as fronteiras entre o exterior e o interior, entre a linguagem e a ação.

LEITURAS
Como parte da estratégia de abertura do romance para a dimensão da preparação do romance, Luiselli e Petrowskaja em vários momentos deixam declaradas as referências a outros livros que tornaram suas narrativas possíveis. Nesse sentido, apontam para a ideia de que toda literatura questiona o literário, ou seja, que toda narrativa é metanarrativa, na medida em que expõe a estrutura intertextual que a sustenta, remetendo a outros textos e vozes espalhados no tempo e no espaço. Daí o uso constante de epígrafes e a inserção de comentários sobre outros livros no interior da narrativa – mostrando que sua documentação primordial é sempre a história literária, a tradição, os cânones e contracânones.

As epígrafes de Talvez Esther, por exemplo, transitam entre Heinrich Heine, Franz Kafka e Ossip Mandelstam, preparando o terreno para análises detidas que a narradora faz de obras obscuras como História da diplomacia soviética (leitura na qual seu pai descobre o nome de um parente envolvido em um atentado na década de 1930) ou um manual educacional polonês intitulado Como se deve amar uma criança. As descobertas do parente e do atentado levam a narradora ao arquivo, em busca da edição de 9 de março de 1932 do jornal Kölnische Zeitung: “esse soviético chamado Judas Stern”, seu parente, “praticou um atentado atirando num diplomata alemão em plena Moscou uma semana antes das eleições para a presidência do Reich”.


Um trajeto de carro entre o Leste e o Oeste dos EUA
estrutura o romance de Luiselli. Foto: Divulgação

As leituras formam um labirinto e as páginas impressas muitas vezes substituem os rastros materiais dos indivíduos desaparecidos. Em alguns casos, as duas situações se combinam, e o rastro material do livro estabelece o marco de sobrevivência de um indivíduo. Petrowskaja apresenta isso de forma muito precisa, quando descobre uma parente distante que mora nos Estados Unidos, Mira Kimmelman, sobrevivente dos extermínios nazistas e autora do livro Life beyond the Holocaust, lançado em 2005 (Mira também é autora de Echoes from the Holocaust: a memoir).

No caso de Arquivo das crianças perdidas, o uso de referências a leituras e textos alheios é ainda mais intenso. Como preparação para a viagem de carro, cada membro da família organizou seus pertences, além da distribuição de um conjunto de sete caixas: “Elas viajariam conosco, como um apêndice nosso, no porta-malas do carro que compraríamos. Eu as numerei cuidadosamente com um marcador preto. As Caixas I a IV eram do meu marido, a Caixa VI era da menina, a Caixa VII era do menino. A minha caixa era a Caixa V”. Os conteúdos das caixas são descritos em capítulos independentes, espalhados ao longo do romance – tanto o marido quanto a esposa levam livros em suas caixas e essas listas de leituras são determinantes para suas trajetórias e investigações.

A lista de leituras da narradora opera de forma ambivalente, pois tanto costura e dá firmeza aos temas principais da narrativa quanto expande seus horizontes, enxertando na experiência de leitura um desejo de interrompê-la para buscar as referências. A lista é composta de cinco livros: Os portões do paraíso, de Jerzy Andrzejewski, A cruzada das crianças, de Marcel Schwob, Belladonna, de Dasa Drndic, O sabor do arquivo, de Arlette Farge, e, por fim, Elegias para crianças perdidas, de Ella Camposanto (livro e autora inventados por Luiselli, bem como os trechos da obra reproduzidos ao longo do romance). Na caixa, junto aos livros, a narradora coloca também dezenas de “Relatórios de Mortalidade de Migrantes”, “impressos de mecanismos de busca online que localizam os desaparecidos, que listavam os corpos encontrados naqueles desertos, a possível causa da morte e sua localização exata”.

As menções a outros registros escritos, alheios aos romances que se desenvolvem, aliadas a uma atenção quase obsessiva aos detalhes, formam uma espécie de perspectiva em direção à história que é compartilhada por Valeria Luiselli e Katja Petrowskaja. A leitura conjunta desses dois romances – feitos na esteira de obras potentes de um passado próximo, como as de W. G. Sebald ou Roberto Bolaño – dá a dimensão de como a literatura pode escapar de um banal registro de representação da realidade e passar a questioná-la, investindo frontalmente contra suas contradições e seus discursos de brutalização dos afetos.

KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).

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