Você sabe, as conversas mediadas por aparelhos eletrônicos não são a melhor maneira de a gente encontrar as pessoas. Não foi diferente com Maureen Bisilliat. Nossa conversa se deu por telefone, em setembro do ano passado; ela, de sua casa em São Paulo; eu, da redação da revista Continente. Até que a gente conseguisse entabular um fluxo contínuo de diálogo, Maureen pediu para interrompermos a ligação duas vezes.
No final das contas, esse diálogo telefônico foi auspicioso e até combinamos de nos encontrar pessoalmente no Recife, quando ela vier à cidade. Isso possivelmente acontecerá neste começo de 2020, quando ela pretende dar continuidade ao projeto de, finalmente, realizar um livro em coautoria com Ariano Suassuna, agora organizado junto à editora Nova Fronteira – que publica o autor – e seus herdeiros, assunto em que nos concentramos logo no início da nossa conversa, como se observará a seguir.
Pode parecer um detalhe de pouca relevância contar a você, leitor, o modo como se deu a conversa com essa fotógrafa que nos oferece tantas imagens inesquecíveis do Brasil e sua gente. Mas, não. Porque o corpo a corpo, o presencial nas relações, tem sido o motivo da própria obra de Maureen, que já disse em vários momentos não saber “fotografar paisagens”, o que certamente não indica uma deficiência, mas uma preferência pela paisagem humana, em detrimento da natural e construída.
Nascida na Inglaterra, Maureen Bisilliat é filha de um diplomata argentino e de uma pintora inglesa e, por causa da profissão paterna, viveu em muitos lugares, o que a levou a duas circunstâncias de vida: a busca por raízes – ou sedentarização e pertencimento – e a comunicação estabelecida por outros meios que não a língua materna, já que era frequente estar em lugares onde não dominava o idioma. Isso forjou seu modo de se relacionar, digamos assim. Uma outra situação, essa profissional, ajudou-a a gostar de pessoas: o fotojornalismo. Quando Maureen se estabeleceu no Brasil, depois de experiências com a pintura e o desenho, passou a trabalhar como fotógrafa para duas revistas que a fizeram circular bastante pelo interior do país: a Quatro Rodas e a Realidade, esta, uma eterna referência para o jornalismo de qualidade no país.
Curioso que foram duas mulheres estrangeiras, depois naturalizadas brasileiras, nascidas no mesmo 1931, Maureen Bisilliat e Claudia Andujar, que tiveram a ousadia de se aventurar pelo Brasil, naqueles anos 1960 e 70, na vigência da ditadura militar, trazendo às populações urbanas e litorâneas histórias de um país – e de uma gente – pouco conhecido e mesmo ignorado. Claro que vários fotógrafos também fizeram um trabalho incrível de documentação do que chamamos de “Brasil profundo”, mas são singulares a obra e o envolvimento de Andujar e Bisilliat no que diz respeito a isso, sobretudo se considerarmos que eram mulheres entrando em ambientes dominados por homens, ou por um modo masculino de pensar e tratar a experiência humana.
E, no que tange a singularidades, a obra fotográfica de Maureen Bisilliat é marcada pelo seu incansável interesse em estabelecer relações entre fotografia e literatura, assunto ao qual também voltamos aqui. Ela chama esse gesto de “equivalências”, e é exatamente essa palavra que intitula documentário de caráter autobiográfico que será lançado pelo IMS em fevereiro (Equivalências/ Aprender vivendo, cuja produção é comentada na nossa conversa).
Desde que foi adquirido pelo Instituto Moreira Salles, em 2003, o acervo de fotografias e vídeos de Maureen tem sido revisto, organizado e revalorizado de diferentes formas, entre as quais através de publicações e exposições. Basta citarmos a esse respeito os livros Fotografias: Maureen Bisilliat (2009), Pele preta (2011, que integra a caixa A forma da luz, organizada por Sérgio Burgi e Samuel Titan Jr., reunindo ensaios de cinco fotógrafos, como Thomaz Farkas e David Drew Zingg) e o recente Sertões – Luz & trevas (2019), relançamento pelo IMS de um livro que teve a primeira edição em 1982.
Como conta Maureen, naquela época, ela tinha pensado em estabelecer equivalências entre suas fotos e trechos de A pedra do reino, de Ariano Suassuna. O escritor se empolgou, e, ao invés de elaborar uma introdução ao livro proposto, escreveu uma história que tem a própria fotógrafa como protagonista, estourando o tamanho de texto pretendido. Quem “socorreu” Maureen na ocasião foram Euclides da Cunha e Os sertões, de onde ela extraiu passagens de A terra e O homem. Um livro belo e evocativo, que hoje – na distância de quando foram captadas as imagens (entre 1967 e 1972), em localidades distintas do Nordeste, em contextos domésticos, de trabalho, religiosidade e festividade – nos coloca diante de realidades que persistem, como a pobreza de recursos e a integridade das pessoas fotografadas.
Nesta conversa, que certamente seria menos lacunar se estivéssemos frente a frente, foi valioso perceber o passar do tempo para esta mulher que se aproxima dos 90 anos e que tem a clareza de que seu trabalho provavelmente não seria o que é, se ela estivesse fotografando agora. E isso não diz respeito apenas à exacerbação das imagens na contemporaneidade, mas ao que poderíamos nomear um mundo hostil, em que as imagens e os aparelhos que as reproduzem não têm servido muito a uma verdadeira aproximação entre as pessoas.
CONTINENTE Você disse em várias entrevistas que esse livro, Sertões – Luz & trevas, é seu livro preferido, eu gostaria de saber por quê?
MAUREEN BISILLIAT Por que a gente gosta de uma coisa mais e de uma coisa menos é difícil de saber, mas eu acho que ele tem um equilíbrio interessante. A primeira parte do livro são todas imagens refotografadas de maneiras diferentes; a partir meio do livro, ele fica na realidade de hoje. Mas eu acho que o que mais gostei foi, sobretudo, a maneira de selecionar o texto de Euclides, porque tentei, em vez de marcar a importância, digamos, histórica ou jornalística da época de como ele era, são textos assim, poéticos…
CONTINENTE (Maureen pede para interromper a conversa, porque quer ir para um lugar mais confortável de casa.)
MAUREEN BISILLIAT Fiquei satisfeita com o texto do Euclides, porque tem momentos de exaltação, em que uma frase diz. Agora, o interessante desse livro é que não ia ser com Euclides, ia ser com Suassuna e começou sendo com Suassuna. É interessante para você saber sobre isso, ou não?
CONTINENTE Sim, muito interessante. Como é que está esse processo? Você tem falado sobre isso com os herdeiros? Porque quem cuida atualmente da obra dele é a família, o filho, Dantas Suassuna.
MAUREEN BISILLIAT Sertões – Luz & trevas foi agora reeditado com algumas modificações pelo Instituto Moreira Salles. Nos anos 1980, fizemos esse livro com o texto de Euclides, mas começou com Suassuna. Naquela época, eu marquei um encontro com Ariano no Recife, levando um feixe de fotos tamanho postal e um pedido de introdução para um mundo de imagens que ele chamava de “o Brasil real”. Todas de certos lugares e, sobretudo, romarias do Nordeste. Então ele olhou, gostou e aceitou. Eu parti e esperei, e o prazo – porque era um livro que tinha um patrocínio, raro naqueles dias, de uma pessoa chamada Seráphico da Rocha – expirou. Mas, um dia, ele me ligou e falou assim: “Endoideci. Sua introdução virou livro, que não acabei, mas já intitulei: A laterna de Maurina e as visagens de Quaderna”. Quaderna sendo ele, justamente o personagem de A Pedra do Reino, que foi o que me inspirou de ir encontrá-lo, porque achei esse livro absurdamente fantástico. Sendo que o texto dele chegava a cerca de 250 páginas, bom, seria impossível usar no Sertões – Luz & trevas, e por isso ele ficou, assim, numa gaveta. E passaram-se quantos anos? Quase 40 anos. E, de repente, a Nova Fronteira está reeditando ou editando os livros dele que nunca foram publicados antes, como o Dom Pantero. Assim, visitei a Nova Fronteira e, com Janaína Serra – uma editora com quem me dei muito bem –, fomos para o Recife para ver a família de Ariano, sobretudo Dantas, que eu já conhecia antes. São coisas muito complexas, e o livro, em si, é muito complexo. Então, estou pensando que teria que fazê-lo conjuntamente e criar uma maneira ilustrativa para torná-lo mais claro a partir da intertextualização. Isso porque ele usa os escritos de muitos outros autores, sobretudo de Euclides. Agora estamos esperando o ano começar (2020), porque o livro deve levar nove meses para ser feito.