Ensaio visual

Imagens de um ofício

A icônica capista Moema Cavalcanti

TEXTO RENATA GAMELO

04 de Dezembro de 2019

A obra da capista Moema Cavalcanti se inscreve de modo icônico no design brasileiro

A obra da capista Moema Cavalcanti se inscreve de modo icônico no design brasileiro

Ilustração Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 228 | dezembro de 2019]

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Traduzir visualmente
a carga de sentidos de um livro com um convite irresistível à sua leitura passa pelas suas capas, que estão cada vez mais sofisticadas e sedutoras: seja por elementos que levam o potencial leitor a uma percepção intuitiva do conteúdo da publicação, seja pelo estranhamento ou aguçamento da curiosidade que um deslocamento de sentido na linguagem, nos materiais ou na solução sinestésica utilizada na construção da forma possa lhe causar.

Este ensaio visual traz alguns destaques de uma pequena amostra (sim, pequena amostra!) entre as mais de mil de capas de livros concebidas pela inventiva capista pernambucana Moema Cavalcanti, nascida em 1942.

Reunir a obra de Moema – com mais de cinco décadas dedicadas a este fazer que traz materialidade e forma a ideias, e insere camadas de sentido às obras literárias que motivaram sua feitura – por meio de uma exposição e de uma publicação é uma iniciativa mais que necessária. A iniciativa resulta de parceria entre a Cepe Editora, do estado onde a capista nasceu, e a Imprensa Oficial de São Paulo, estado onde construiu seu caminho profissional.

O livro-registro Moema Cavalcanti: livre para voar (organizado por Chico Homem de Melo, Raquel Matsushita e Silvia Massaro, com estruturação da própria Moema) reúne cerca de 200 de suas capas de livros e outros trabalhos relevantes de sua autoria. É dividido em dois blocos: o das capas de livros, categorizadas pela linguagem predominante (Materialidade; Colagem; Ilustrações; Fotografia e Tipografia); e os “presentinhos de domingo”, incursões despretensiosamente afetuosas de Moema no universo literário, direcionada a amigos, e que retrata seu lado contadora de histórias. Essa organização da publicação busca traduzir as trilhas de linguagem que marcaram as fases da obra de Moema ao longo dos anos. Antes de ser um livro de pretensão técnica ou acadêmica, trata-se muito mais de um livro de memórias, que provoca a afetividade de quem o manuseia, graças, principalmente à sua segunda parte, que revela muito da sensibilidade da autora.

Enquanto, para os neófitos desse fazer histórico, hoje mais conhecido como design editorial, a obra de Moema é uma referência a ser desbravada (um dos motivos que tornam essa publicação necessária), para gerações anteriores, ela é uma influência a ser celebrada e revisitada.


Exemplo de técnicas usadas por Moema, como colagem,
fotografia, ilustração e tipografia. Imagens: Reprodução

Seu trabalho como designer editorial trouxe uma marca de modernidade a capas de livros e revistas de editoras importantes como Abril (na qual trabalhou no início da carreira e ao longo de 13 anos), Edusp, Brasilense e Cia das Letras, sendo também resultado de um percurso de influências bem diversas. Esse caminho se construiu na Pedagogia, sua graduação, concluída em 1965 na UFPE; na convivência com a costura, pois vivia imersa no atelier de sua mãe, onde aprendeu a costurar; na biblioteca do pai; no teatro, através da cenografia, da atuação e da contação de histórias. Seus experimentos nesses campos criativos múltiplos a influenciaram em uma retroalimentação de linguagens que conduziram a inovações contundentes e a um arrojo conceitual, estético e técnico no ofício em que mais se reconhece: o de capista de livros.

Quando Moema Cavalcanti passou a atuar na área, ainda estavam sendo criados os primeiros cursos voltados para o setor no Brasil, assim, a maioria dos que optavam pela “comunicação visual”, como a profissão foi inicialmente conhecida, atuava no mercado editorial. O trabalho de capista era construído na práxis diária, por contratos estabelecidos com editoras e gráficas. “O meu conhecimento é empírico: aprendi fazendo”, pontua Moema, evidenciando esse momento histórico da profissão.

A despeito das mudanças na formação e nas nomenclaturas do campo profissional, sua obra se inscreve de modo icônico no design brasileiro, vide registro no livro Linha do tempo do design gráfico no Brasil, considerado a “bíblia” do design gráfico nacional, organizado por Chico Homem de Melo e Elaine Ramos e editado pela editora Cosac Naify. Nesta obra, são destacadas duas séries de capas feitas por Moema para a editora Companhia das Letras.

Consideradas ícones da década de 1980, as soluções dadas para essas duas séries de capas exploram bastante o sentido do tato no objeto livro, reflexo de sua intimidade com o universo da costura e da manipulação de tecidos. Foram feitas incisões na superfície áspera do papel Cartão Duplex, o mais utilizado para encadernações de livros, até então, cuja impressão deixa vazar cor e textura nos desenhos da capa, graças às orelhas largas dobradas, resultando no uso surpreendente do material.

Em Linha do tempo do design gráfico no Brasil, também se registra sua série de cartazes para a Feira do livro de Frankfurt de 1994, na qual Moema destaca fragmentos da obra de Mira Schendel, artista que investigou os limites entre o desenho e o gesto escritural.

***

O entusiasmo de Moema Cavalcanti pelo universo dos livros revela-se no Recife quando, ainda criança, nos anos 1950, encantava-se com exemplares de publicações experimentais da editora pernambucana O Gráfico Amador, presentes na biblioteca do seu pai Paulo Cavalcanti, político, jornalista, historiador e militante de esquerda.

Fundada por um grupo de intelectuais criativos como Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, José Laurênio de Melo e Orlando da Costa Ferreira, e por onde orbitavam os amigos escritores, artistas visuais e entusiastas do grupo de artistas, O Gráfico Amador publicava textos literários, principalmente de poesia, em volumes artesanais de tiragens reduzidas e bastante experimentais. Outras influências que ela afirma ter recebido, ainda nos anos 1960, foram as capas de livros de Eugênio Hirsch, da Editora Civilização Brasileira, e as capas de discos de Cesar Villela, da Gravadora Elenco.

A síntese desse repertório de influências e da sua formação prática podem ser melhor refletidos na ousadia experimental dos trabalhos que desenvolve para as três editoras com as quais construiu seu portfólio de criações mais destacado, e que trazem um panorama estético e técnico das transformações das capas de livros feitas no Brasil.

Aos 25 anos, Moema migra para São Paulo e, logo no início de sua trajetória na cidade, em 1968, atua como diretora de arte do Grupo Abril e, a partir de 1973, dedica-se mais especificamente à editora Círculo do Livro, parceria da Abril com a editora alemã Bertelsmann, onde cria as capas de diversas revistas e livros.


Seu trabalho também se revela no exercício da simplicidade. Imagens: Reprodução

O Círculo do Livro era um clube de incentivo à leitura direcionado a jovens, cujo critério para ingressar era a indicação feita por um dos sócios-leitores e cuja permanência se dava mediante a compra mensal de uma das publicações sugeridas, a preços populares. O Círculo do Livro tinha cerca de 50 mil sócios na década de 1970, número que seria multiplicado nos anos seguintes. Em 1982, vendia cerca de 5 milhões de exemplares e, em 1984, 10 milhões, tendo chegado à marca dos 800 mil sócios espalhados por 2.850 municípios brasileiros.

Em 1975, Moema cria o próprio estúdio e passa a trabalhar com vários clientes, destacando-se as editoras: Ateliê Editorial, Edusp, Unesp e Brasiliense, considerada uma das responsáveis pela renovação editorial e gráfica do livro brasileiro na década de 1980. A aposta da Brasiliense foi a oferta de livros mais compatíveis com a sensibilidade dos jovens da época. A editora buscou designers e artistas que também respirassem esse ar de renovação cultural e a estética de Moema evocava esse espírito do tempo.

De 1987 às décadas seguintes, Moema, já bastante reconhecida como capista no meio editorial, trabalha para diversas editoras universitárias, com a Câmara Brasileira do Livro e colabora mais fortemente com a editora Companhia das Letras, para a qual produz suas capas mais conhecidas. Nos anos 1990, Moema passa a integrar o primeiro elenco de capistas da editora, junto com Hélio de Almeida e João Baptista da Costa Aguiar, protagonizando a mudança de percepção da importância das capas de livros no Brasil.

Alguns exemplos de capas icônicas feitas por ela para a Cia das Letras são aquelas mais experimentais e desafiadoras, criadas para produção editorial de grande escala, com cortes e impressão no papel pardo e áspero da capa. Moema inova ao criar delicados grafismos coloridos que flutuam num grande plano vazio, ou a partir de texturas e efeitos construídos com dobras, grampos, ilhoses e recortes nas capas. Além de mesclar formas de impressão, estabelecendo um contraponto entre materiais que marcaram época.

Seu trabalho também se revela no exercício da simplicidade, com grandes áreas de respiro, fotografias ou texturas contínuas e uma elegante tipografia. Ainda, naquelas propostas que partem de colagens ou ilustrações. Na editora paulista, Moema pôde ativar seu arsenal criativo já amplamente reconhecido, uma empresa de grande porte que levou adiante o processo de renovação iniciado pela Editora Brasiliense, isso devendo ser atribuído ao editor Luiz Schwarcz, que começara sua carreira na Brasiliense, fundando depois a Cia das Letras.

Em 1994, quando o Brasil foi o país tema da Feira do Livro de Frankfurt, Moema Cavalcanti desenvolveu livros e cartazes sobre a cultura do país para o evento, divulgando seu trabalho também no exterior. Na primeira metade da década de 1990, cinco de suas capas recebem os prêmios Jabuti e Classic. A partir de 1997, ela se associa a Silvia Massaro e o escritório dá sequência à atuação no campo do design editorial, mantendo-se ativo até hoje.

Moema entra nos anos 2000 com a exposição Moema Cavalcanti – Oitocentas capas, montada na galeria da ADG – Associação dos Designers Gráficos, em São Paulo. Uma primeira compilação de sua produção, que é agora revisitada, duas décadas depois, com este Moema Cavalcanti: livre para voar.

Extra: Trecho do diário de Moema Cavalcanti


RENATA GAMELO é designer, cenógrafa e articuladora de setores criativos.

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