FOTOS MÁRIO DE ANDRADE*
07 de Março de 2019
Imagem Arte sobre acervo da Biblioteca Nacional/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 219 | março de 2019]
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Brasil...
Mastigado na gostosura quente do amendoim…
Falado numa língua curumim
De palavras incertas num remelexo melado melancólico…
(…) Brasil amado não porque seja minha pátria,
Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der…
Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas amores e danças.
(O poeta come amendoim, 1927)
MÁRIO, NO PLURAL
Um intelectual de diversas facetas, a figura de Mário de Andrade, teórico da música, crítico da arte, folclorista, escritor e funcionário público carrega, em conjunto com visionárias e polêmicas ideias, a autoria de uma extensa bibliografia que reúne ao redor de 70 publicações entre livros de antologias, poemários, contos, novelas, ópera cômica, estudos, ensaios, crônicas e outros escritos sobre música e folclore, e uma substancial lista de narrativa miscelânea. A pluralidade de interesses que o motivou a empreender ousados projetos como a concepção de uma (nunca terminada) “gramatiquinha da fala brasileira” acarretou, muitas vezes, um profundo processo de autoavaliação por parte do escritor. No entanto, ao questionar sua capacidade de finalizar os distintos programas que concebia, Mário de Andrade também dava lugar a uma produtiva pergunta sobre os fundamentos da criação artística, rompendo com padrões preconcebidos e estabelecendo que o procedimento estético nunca está plenamente acabado.
Apesar da diversidade e extensão do que compõe sua trajetória intelectual, é sentido comum entre os estudiosos da obra andradiana o reconhecimento de um profundo processo de meditação estética que conta com dois pontos de referência constantes: a análise do fenômeno musical e do processo criador do “populário” – como observa Gilda de Mello e Souza, em O tupi e o alaúde (1979), estudo sobre a composição estrutural de Macunaíma (1928). Ao mesmo tempo, como fundador e diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo (onde atuou entre 1934-1937), Mário teve a breve chance de transmitir seu entendimento sobre a educação e as tradições brasileiras desde o âmbito público, confirmando, durante seu peculiar desempenho, que a permeabilidade entre o popular e erudito era um tema de interesse primordial em sua agenda, como indica Carlos Sandroni, em Mário contra Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade (1988).
AS VIAGENS DO TURISTA APRENDIZ
Motivado por um inabalável entusiasmo pela materialidade da música nacional e, mais especificamente, por uma enorme admiração pela consistência de formas animadas do populário sonoro persistentes no Norte e Nordeste do país, Mário de Andrade empreendeu duas longas viagens que se converteram, quase 50 anos depois, em dois cadernos-manuscritos de notas, crônicas e rascunhos do autodenominado turista aprendiz. A obra póstuma, compilada pela primeira vez em 1976 e que passou 32 anos sem ser republicada, recebeu uma reedição em 2015, graças a uma parceria entre o IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da USP) e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), conservando um dos aspectos centrais de seu texto, o de manter perguntas implícitas como sinal de uma obra aberta, como observa Telê Ancona Lopes, uma das realizadoras desse projeto.
Seria o caráter fragmentário e inconcluso desse livro um dos fatores do seu relativo esquecimento? Ou, muito pelo contrário, a heterogeneidade do seu conteúdo e processo narrativo lhe asseguram uma vitalidade que teria contribuído à atualidade dessa obra? O manuscrito das Notas de viagem ao Nordeste: diário 1928-1929, que contém os 70 registros, folhetins ou crônicas da série O turista aprendiz recortados do Diário Nacional de São Paulo, revela uma hibridez de temas e formas narrativas que chega a desorientar o leitor. Originalmente publicados entre 14 de dezembro de 1928 e 29 de março de 1929, o único objetivo claro desses escritos é disseminar a diversidade de cantos, danças, ritos e performances dramáticos presenciados pelo escritor durante suas viagens pelo Nordeste.
No decorrer desses anos, em uma nota de abertura ao seu Ensaio sobre a música brasileira (1928), texto em que, literalmente, esboçava um programa de composição para os músicos nacionais, Mário declarava que as melodias coletadas durante essas viagens expressavam o seu desejo de “colher canções diretamente da boca dos cantadores”. Esse fator empírico, de fundamental importância para o escritor, revestia O turista aprendiz de um contorno distinto de suas demais obras, fato que também provoca uma série de interrogações: o que levaria Mário a perseguir tão obstinadamente a autenticidade das performances sonoras do Nordeste? Até que ponto os inusitados escritos do turista aprendiz reforçavam suas hipóteses sobre a construção de um nacionalismo sui-generis através de modos de identificação musical? O que queria dizer o escritor paulistano quando evocava a capacidade misteriosa da música de “fortificar estados de alma sabidos de antemão”?
Abrolhos, 13 de maio, 1927. Foto: Arquivo Mário de Andrade/IEB-USP
PROMOVENDO CULTURA POLÍTICA
Ao criticar a situação brasileira como a de um “país de povo desleixado onde o conceito de pátria é quase uma quimera” e que o mais franco movimento de progresso “desumaniza os seus homens na vaidade dos separatismos”, ao mesmo tempo, assegurando que a nacionalidade, “unanimidade psicológica, uniforme e comovente”, independeu, até esse momento, da ação dos homens que tudo fazem para desvirtuá-la e estragá-la (Ensaio), Mário de Andrade constatava que o difícil processo de construção de uma identidade nacional superava a capacidade intelectual das palavras. Para atingir o ousado objetivo de colaborar com um nacionalismo alternativo, o escritor apostava no potencial da música de produzir dinamogenia, conceito que sugere a “exaltação funcional de um órgão sob o influxo de uma excitação”.
Aspectos centrais dessa elaborada teoria sobre os valores e poderes da expressão musical e, mais especificamente, da música popular, aparecem não só no Ensaio. Sua convicção sobre a possibilidade da música provocar um reconhecimento afetivo comum é a base de muitas das importantes reflexões e atos impulsados pelo escritor durante a primeira metade do século XX. Entre essas, é relevante mencionar: a polifonia poética de Pauliceia desvairada, o processo de composição de Macunaíma, as moções do Primeiro Congresso de Língua Nacional Cantada, realizado em 1937 (que estabeleceu o padrão da pronúncia do teatro dramático e canto do país), e diversas outras importantes iniciativas realizadas no plano literário, musicológico, folclórico e, até mesmo, do funcionalismo público.
Muitas vezes interpretadas como abstratas e utópicas, as ideias de Mário tiveram alcance e, simultaneamente, causaram sequelas para sua profissão. Esse duplo efeito se nota, por exemplo, no caso das Missões de Pesquisas Folclóricas, realizadas em 1938, que promoveram a viagem de quatro pesquisadores com a tarefa de anotar, desenhar, fotografar, filmar e gravar manifestações culturais do Norte-Nordeste, além de recolher objetos, instrumentos e artefatos. Como se reconhece na compilação das “cadernetas de campo” publicadas em 2010, caro e inovador, o projeto de enciclopédia folclórica ilustrada que motivou essa expedição sofreu toda sorte de incompreensões, que culminou na suspensão da iniciativa e na demissão do escritor do Departamento de Cultura, acusado de perdulário. Sobre esse material abundante e que continua provocando desafios de leitura, Mário não pôde prever que teria mais que consequências culturais ao beneficiar o reconhecimento da presença de comunidades indígenas em Tacaratu, na mesorregião do São Francisco pernambucano, ajudando a favorecer, contemporaneamente, uma legítima possessão de terras pelos pancararus.
Esse evento específico ilustra como a extensa habilidade de transitar por diferentes meios e níveis de linguagem oferece uma ferramenta a favor de uma postura intelectual que, como indica Francini Venâncio de Oliveira – na abertura da compilação de crônicas andradianas Sejamos todos musicais (2013) –, se mostrava consciente de seu ofício, envolvida com questões políticas do seu tempo e militante em prol de uma concepção de arte muito particular, definida pelo escritor como “engajada ou de combate”. Como parte dessa concepção mais ampla, os textos de e sobre literatura, as reflexões musicológicas, as investigações folclóricas e os programas desenvolvidos no Departamento de Cultura se voltavam para o propósito de desconstruir as enormes discrepâncias entre o “erudito” e o “popular”, fator determinante de formas de hierarquia cultural e social que prevalecem no país.
Assacaio, 17 julho, 1927. Foto: Arquivo Mário de Andrade/IEB-USP
LÍNGUA ESCRITA E LÍNGUA FALADA
Para desativar o status privilegiado de certas categorias artísticas – e suas repercussões culturais e sociais –, Mário de Andrade se apoiava em uma arma fundamental, a língua falada, como deixa claro em Aspectos da música brasileira: “A fala dum povo é, porventura, mais que a própria linguagem, a melhor característica, a mais íntima realidade senão da sua maneira de pensar, pelo menos da sua maneira de expressão verbal. É a luta perene entre o chamado ‘erro de gramática’ e a verdade. No pape, um pronome poderá estar malcolocado, na fala nunca. As próprias deficiências de expressão verbal da gente iletrada, são mais que discutíveis. Elas não derivam da ignorância gramatical ou vocabular, mas afundam as suas raízes num estádio psíquico diverso que as justifica e lhes tira totalmente o carácter de ‘deficiências’”.
Ao tomar partido pela fala, o escritor não só ponderava a autoridade do saber erudito sobre formas de conhecimento populares, mas também instituía que as alterações gramaticais eram, assim como elementos como a doçura, a ferocidade, a melancolia e a fadiga, expressão de uma língua viva que se experimentava com o corpo, irredutível a normas ortográficas e convenções. Ao mesmo tempo, ao insistir no valor da musicalidade produzida pelos cantadores do Nordeste que, baseada no “método” da improvisação era sempre imprevisível, Mário rediscutia a importância de princípios como a “medida injusta do compasso” e sopesava a relevância de normas e padrões estabelecidos pela musicologia europeia ocidental.
Desde a perspectiva do escritor, durante o complexo processo de sobrevivência e proliferação da música popular do Nordeste, as linguagens musical e literária transgrediam seus respectivos limites. Ao contribuir à desconstrução dos lugares-comuns da arte “elevada” e transmitir novos valores (que não eram meramente estéticos), o debate em torno a música popular ganhava importância no pensamento de Mário de Andrade.
O excepcional processo documentação e narração de O turista aprendiz revela o papel fundamental do empirismo na construção desse ponto de vista. Ao combinar, desde a experiência, a defesa de competências afetivas da linguagem com o desenvolvimento de uma posição política contestatária sobre a cultura e a sociedade, Mário colocava em marcha uma série de reflexões de enorme vigência na conjuntura brasileira atual.
EXPERIÊNCIA E NARRAÇÃO
Em sintonia com a ampla liberdade de criação que concedia aos cantadores que encontrava durante sua atividade de coletor, Mário conjugava a vivência dos costumes dos “homens do povo” do Nordeste com uma maneira singular de contar. Ao colocar em cena seu corpo-narrador e absorto por uma espécie de “metafísica da paisagem” que considerava “mais objetiva que a vida no sul”, o escritor se abstraía de “descrever bem”. Paralelamente, dava lugar a uma experiência estética e sensorial baseada na experiência.
Ao assumir esse modo narrativo, Mário de Andrade negava rotundamente o caráter científico dos seus escritos e desarmava qualquer preconcepção etnográfica dessas viagens devido, entre outros fatores, à dissolução de distâncias entre ele (observador) e os cantadores, canções e bailes (observados).
Esse posicionamento se expressa reiteradamente por meio da superposição de cenas artísticas à situações vivenciadas, como durante o extenso (e singular) relato do aparecimento de variadas e sucessivas vozes, gestualidades, músicas, danças, bois e instrumentos na municipalidade de Redinha, balneário de Natal: “Chega um choro. Clarineta, violões, ganzá numa série deliciosa de sambas, maxixes, varsas de origem pura, eu na rede, tempo passando sem dizer nada. Modinhas de Ferreira Itajubá e Auta de Sousa… A boca da noite abriu sem a gente sentir. O choro foi lá embaixo se instalar no Redinha-Clube, casarão chato no meio da praia, pras meninas dançarem. Estamos por ali gozando a ventania. Se acendem as luzes. O Redinha-Clube é um guaiamum escuro com as pernas luminosas sobre a areia. Pântam – parapântam – pântam – pântam – tchique – tchique… Êh… Lá no alto: – Êh viradô!…/ – A barca do má!../. – Êh viradô!… / – A barca gira no virá do má… /– Êh viradô!… (…)” (O turista).
FUGAS CULTURAIS
Impregnadas dos rastros da sua experiência, as imagens produzidas por esses textos expressam um vínculo entre princípios estéticos e posições políticas sobre aspectos socioeconômicos dos lugares visitados. Os comentários sobre a capital do Rio Grande do Norte exemplificam esses entrecruzamentos. Nessa cidade, além conseguir extraordinárias exposições de coco – ritmo musical que o cativava especialmente pela capacidade dos compositores de “fazer muita música com a entonação” – Mário se sentia muito feliz pelas novas sensações que experimentava, o que concordava com seu posicionamento político sobre as dinâmicas sociais da cidade.
Assim, ao abordar a polêmica sobre a conservação ou demolição da catedral da Sé (XVII-1933), na Bahia, assegurava que Natal, cidade “jovenzinha como São Paulo”, podia progredir como desejava sem ter coisas que “doem destruir”. Argumentava mais especificamente sobre as controvérsias geradas pela histórica construção de Salvador: “Natal não possui problema desse. O que é velho não é… antigo, pouco ou nenhum valor tem. (…) As tradições dela são todas móveis, danças, cantorias. Essa felicidade americana de Natal está se objetivando neste momento como a inauguração do Aeroclube. (…) Os aeroplanos estão pintando o sete no ar. As natalenses são bonitas, bem-vestidas, os homens de branco, venta o vento, calor sem garra mas verdadeiro, nenhuma Europa tradicional, te dana! um bem-estar de agora” (O turista).
A constante crítica à imitação dos valores europeus e a convicção na importância do agora que contribuía a relativizar as dessemelhanças entre a modernidade de São Paulo e da cidade nordestina também inspiravam um comentário chamativo sobre as tradições móveis e imóveis. Ao garantir que as primeiras são úteis, têm importância enorme e devem ser conservadas como estão porque se transformam pela mobilidade que têm – como acontece com a poesia, a cantiga e as danças populares –, o escritor também assegurava que as segundas, na maioria dos casos, são prejudiciais. Ao recordar o exemplo de “uma tradição perfeitamente ridícula como a carroça do rei da Inglaterra”, o turista aprendiz a comparava com o “disparate básico” da arquitetura neocolonial brasileira em que só se aproveitaram as formas decorativas que, reduzidas a fórmulas, e combinadas com o “espírito arrivista das partes progressistas do país”, resultaram em um 89% de obras mal realizadas.
VIVÊNCIAS POÉTICAS DO POLÍTICO
Expressando desacordo com a prática de elitismos culturais, Mário de Andrade enfatizava a importância dos modos de composição da poesia popular nordestina e sua habilidade de criar tradição. Assim, por exemplo, criticava a “transformação da miséria em epopeia” na literatura de Os sertões, de Euclides da Cunha, e defendia, em contraste, a legitimidade da escrita de Jorge Fernandes, capaz de materializar o problema da seca no alto sertão do Rio Grande do Norte e grande parte do Ceará. Desde seu ponto de vista, esse quase anônimo escritor natalense, ao falar dos milhares de homens que da noite pro dia partiam para o Sudeste sem se despedir nem contar a ninguém em busca de um “El Dorado falso” que nenhum deles sabia o que era, disseminava, com seu Livro de poemas, “escritos de dor como esta marcha”.
Ao fortalecer a liberdade criativa e os efeitos pioneiros dessa literatura, Mário de Andrade ressignificava o conceito de tradição, que deixava de ser uma série de dogmas transmitidos de geração a geração e passava a ser uma memória guardada nos músculos, nos nervos, no estômago, nos olhos das coisas vividas por “Manuel Suplício”, personagem desse (quase) desconhecido poemário: “São os poemas, como falei, em que a memória do corpo abandonou a memória literalista da inteligência. Então Jorge Fernandes apresenta coisas puras, fortes, apenas a vida essencial, coincidindo com o lirismo popular (…)” (O turista).
MAPAS DE UMA ARTE ENGAJADA
Experimentando, como “o poeta (que) come amendoim”, o balanço das canções, amores e danças que tanto estimava, Mário defendia que o conhecimento técnico devia revelar um “equilíbrio justo” entre a expressão subjetiva e a coletiva.
Nesse sentido, em uma polêmica entrevista à Revista Diretrizes (1944), acusava boa parte da inteligência brasileira de ter se vendido “aos donos da vida” – referindo-se à ditadura de Getúlio Vargas – e declarava que o artista que pensava fazer arte de maneira “desinteressada”, e com isso não servir a ninguém, convertia-se em instrumento dos poderosos: “A arte tem de servir. Venho dizendo isso há muitos anos. É certo que tenho cometido muitos erros na minha vida. Mas com a minha ‘arte interessada’ eu sei que não errei. Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Essa noção proletária da arte, da qual nunca me afastei, foi que me levou, desde o início às pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes, com sacrifício da própria obra de arte”.
Em Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia (Vol.1, Duas Cidades, 2000), Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmam que um livro existe fora e para fora de si mesmo. Capaz de superar a delimitação a um sujeito (que escreve) e a um objeto (de que se escreve), um livro que produz multiplicidades pode ser considerado uma máquina literária que mantém uma relação com uma máquina de guerra, de amor, revolucionária e uma máquina abstrata que as arrasta. Em diálogo com essas ideias, mais como agenciamento que como ideologia, os escritos de Mário de Andrade perduram horizontalidades que desarmam hierarquias sociais. Ao traçar novos mapas da musicalidade popular e, simultaneamente, inspirar sua literatura nesses procedimentos, os textos do turista aprendiz contribuíam a dar lugar a uma linguagem que surgia da boca e expressividade dos cantadores para fomentar que o processo criador é incessante e produtivamente inacabado.
Praia de Boa Viagem/Recife, 15 maio, 1927.
Foto: Arquivo Mário de Andrade/IEB-USP
FUNÇÃO DA MÚSICA POPULAR
Plenamente imerso em uma (muitas vezes feroz) disputa sobre os sentidos da arte nacional e defendendo, como última solução, o compromisso da música e da literatura com a formação de uma consciência coletiva, Mário de Andrade dedicava especial atenção a como se dava a produção artística. Inspirado em um desejo de democratização cultural que o levava a superestimar tanto a composição como realização musical “anônimas”, Mário exaltava, na crônica O salão da Escola Nacional de Música regurgitava de ouvintes, a comoção gerada pela apresentação de uma multidão de estudantes: “Foi realmente um momento esplêndido de solidariedade humana; e a verdadeira felicidade, sem ambições, sem egoísmos pessoais, (que) arrebatara todos, tanto ouvintes como executantes, para não sei que mundos apenas sonhados de igualdade e desprendimento. E colaboração” (Sejamos).
Assim como aos aprendizes nessa crônica, o escritor concedia uma igualdade de condições criativas a Marim, “cabloco adorável dum pitoresco de fala que jamais não vi”, facilitando a exposição de uma “ramita” de “pinhão” que ele “levava no peito” e usando um texto que roçava o ininteligível como desfecho de seu livro de viagens pelo Nordeste: “– Lá im Pèrnambucu minha outra mulé sabia di Catimbó, era muito! Era ũa moçota dècenti, grandi cumu o sinhô mesmu. Morreu di pirão di carangueju guaiamum. Cumeu, bebeu água i morreu inturidu… ũa moça boa morrê assim porque bebeu água muita, digu “Vôte”!… Sinti bem… Qui eu ficassi lá, murria. Então pensei: vô-mimbora, vô vê minha felicidade (…)” (O turista).
O mesmo espírito de reinvenção do que pode ser arte o inspirava a escrever, em janeiro de 1940, Agora eu vou fazer um elogio da canção popular, uma crônica que prolongava uma radical inversão de valores entre o popular e o erudito. Convencido da vocação coletiva da música popular, Mário fortalecia sua habilidade de ativar uma repetição aparentemente monótona ligada aos ritmos da função social que tem – nos gestos dos homens nos cantos de trabalho, na valorização da palavra nos romances e desafios e nos efeitos extasiantes para a excitação sexual ou mística em danças, catimbós e candomblés. “Essa é a grandeza principal da canção popular, a sua necessidade. Inseparável da palavra, unida a ela numa fusão indissolúvel que não permite distinguir nem poesia nem música, ela floresce como a solução única e indispensável de numerosos problemas do homem e da sociedade, tão necessária como respirar. Ela é o respiro. O homem aspira o pesado ar dos seus cuidados, desejos e mistérios, e os expira em canção. Ela é ar gasto e usado que traz no seu sopro vivido o que não pôde se esquecer lá dentro do homem: a experiência (Sejamos).”
Ao defender uma relação intransigente entre a arte e a vida, Mário de Andrade ressaltava a importância de relacionar modos de expressão artística com a experiência dos setores populares (majoritariamente indígenas, mestiços e negros) para que se realize o necessário e urgente processo de democratização artístico-cultural com claros efeitos sociais-políticos. No controverso cenário brasileiro, a revalorização desses saberes e suas formas de transmissão se refere à pergunta sobre como é possível contribuir às forças e esperanças de melhoramento social.
Extra:
Leia o livro O turista aprendiz na íntegra
RENATA PONTES DE QUEIROZ, doutora em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e mestre em Literatura Latino-Americana pela Universidade de Buenos Aires. Atualmente, estuda e ensina no Departamento de Espanhol e Português de Temple University, na Filadélfia.
*As imagens aqui reproduzidas integram o caderno Os diários do fotógrafo, publicado na forma de CD-ROM como encarte à edição de 2015 de O turista aprendiz, realizada pelo Iphan.