Reportagem

O Brasil cantado (parte 1)

Uma viagem histórica que começa no final do século XIX e chega aos dias atuais observando os modos como a música nacional expressa a crítica à política e aos costumes da República vigente

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES NELSON PROVAZI

01 de Janeiro de 2019

Ilustração Nelson Provazi

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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Quando Pero Vaz de Caminha
Descobriu que as terras brasileiras
Eram férteis e verdejantes,
Escreveu uma carta ao rei:
Tudo que nela se planta,
Tudo cresce e floresce

A abertura de Tropicália, de Caetano Veloso, faz referência à frase atribuída ao escrivão português na famosa carta ao rei Dom Manuel, escrita em 1o de maio de 1500: “Em se plantando, tudo dá”. O que se lê no documento, no entanto, é: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Doiro-e-Minho (província da região norte de Portugal), porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. A história do Brasil estava apenas começando…

Após 468 anos do envio da correspondência de Pero Vaz, a composição do artista baiano descreve o Brasil de meados do século XX, desta vez em imagens desconexas que parecem sem sentido, mas que formam um caleidoscópio do que seria o país. O compositor mistura, em sua letra, símbolos culturais, como o Carnaval e Carmen Miranda, a cultura de massas, representada por Roberto Carlos (“Que tudo mais vá pro inferno”) e programas de TV (Fino da Bossa), o urbano e o rural (“bossa” e “palhoça”), a distante e nova capital federal Brasília (“inauguro monumento no planalto central do país”). Se, na carta, encontramos a narração de um paraíso inexplorado, na música revelam-se imagens do chamado progresso (“aviões” e “caminhões”), a violência, a miséria e a opressão (“bang, bang”, “criança morta”, “urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”).

Tropicália, faixa que abre o segundo disco de Caetano Veloso, é uma das canções que atestam a índole da composição brasileira para a crônica musical, para o registro, em música, dos acontecimentos – veia cronista que surgiu no país, bem antes das gravações, como comprova uma canção de domínio público que ironizava Dom João VI pela venda de títulos de nobreza, subterfúgio para abastecer os cofres da monarquia: “Quem furta pouco é ladrão/ Quem furta muito é barão/ Quem mais furta e esconde/ Passa de barão a visconde”.

“Tal tendência” de relatar e satirizar os fatos em músicas, escreve o jornalista e pesquisador Franklin Martins, no livro Quem foi que inventou o Brasil? (2015), “se consolidaria definitivamente com o advento da cançoneta, filha direta da chansonette francesa, que por aqui aportou em meados do século XIX, ao serem abertos os primeiros cafés-cantantes e, logo depois, seus primos pobres, os chopes berrantes. Canção curta que explorava, em clima de chacota, os fatos da atualidade, geralmente com letra maliciosa e de duplo sentido, a cançoneta logo caiu no gosto do público — melhor seria dizer: encaixou-se com a natural inclinação jocosa que já existia no público”.

Em História social da música popular brasileira, o crítico musical e pesquisador José Ramos Tinhorão explica mais: “Transformada por força do gosto do público carioca quase que exclusivamente como canção humorística, a cançoneta — que não chegaria a constituir gênero musical determinado, mas teria o nome usado para qualquer cantiga engraçada ou maliciosa pelo duplo sentido — permaneceu por mais de meio século como especialidade de artistas-cantores, não apenas daqueles cafés-cantantes e cafés-concerto (e logo das revistas do ano), mas dos novos locais de diversão que se abriram para atender às camadas mais baixas da população”.

Nas revistas do ano ou teatro de revista, diversão trazida de Portugal, as apresentações revisitavam os acontecimentos do ano anterior. Essa peculiaridade da cultura nacional de abordar os fatos e, se possível, de forma irônica, manteve-se quando surgiu a indústria fonográfica no país, a cargo de um tcheco que aportou em Belém, do Pará, em 1891. Frederico Figner passou por Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Salvador antes de chegar ao Rio de Janeiro. Trazia consigo uma novidade, um aparelho que registrava e reproduzia sons por intermédio de cilindros giratórios, inventado por Thomas Edison. No Rio, abriu a primeira loja que importava e comercializava fonógrafos, a Casa Edison.

Em 1899, um ano depois que o alemão Emil Berliner inventara o gramofone, aparelho que reproduzia som gravado utilizando um disco plano, ao invés do cilindro do fonógrafo de Thomas Edison, a pianista Chiquinha Gonzaga promovia uma revolução. Compositora, maestrina, abolicionista, republicana e feminista, compôs a primeira marcha carnavalesca. Inaugurava a canção popular brasileira com o primeiro grande hit musical do Brasil no século XX, Ó, abre-alas, que foi sucesso ininterrupto dos carnavais de 1901 a 1910. Apesar de Chiquinha ter demarcado essa posição histórica na nossa música, a figura feminina, no começo da indústria fonográfica, teria papel secundário, basicamente o de musa inspiradora.

É o que comprova Isto é bom (Xisto da Bahia), a primeira música gravada no Brasil, em 1902, no primeiro estúdio de gravação do país, a já citada Casa Edison. A letra, interpretada pelo cantor Bahiano, ousava: “A renda de tua saia / Vale bem cinco mil reis / Arrasta, mulata, a saia / Que eu te dou cinco e não dez / Isso é bom, isso é bom, isso é bom que dói / Oh, São Bento, buraco véio tem cobra dentro”. A estrofe do lundu demonstra o machismo da época e que vem se estendendo por diversas épocas e gêneros musicais.

Com o sistema de gravação, a música brasileira pôde perpetuar os acontecimentos políticos, econômicos e comportamentais da sociedade. Naquele mesmo 1902, também foi lançada As laranjas da Sabina, sucesso musical do final do século XIX. Composta por Artur Azevedo, maior nome do teatro de revista, para a peça A república, narrava um episódio prosaico ocorrido em 25 de julho de 1889. Sabina, uma mulher negra que vendia laranjas em frente à Escola de Medicina no Rio de Janeiro, teve seu pequeno comércio informal proibido por um subdelegado. Indignados com a decisão autoritária, os universitários fizeram uma passeata irreverente pelas ruas da cidade. Passaram por redações de jornais e chegaram até a delegacia, onde depositaram uma coroa de bananas e chuchus com os dizeres “Ao eliminador de laranjas”. No dia seguinte, o protesto saiu na imprensa e a polícia acabou revogando a ordem. Sabina voltou a vender suas laranjas. E a reivindicação foi considerada a primeira manifestação republicana, quatro meses antes do início da República.

REVOLTA NA CANÇONETA



Entre o fim do século XIX e início do XX, o Rio estava longe de ser “A cidade maravilhosa”. Era uma das mais insalubres do mundo, reflexo de um crescimento urbano desordenado, após o final da escravidão. Estima-se que, de 1897 a 1904, quatro mil imigrantes tenham morrido vítimas de febre amarela. No entanto, em 1881, o médico cubano Carlos Juan Finlay de Barres já havia identificado o transmissor: o mosquito Aedes aegypti. A descoberta só foi aceita em 1900, mediante atestado de uma comissão liderada pelo médico norte-americano Walter Reed. Quase 20 anos fizeram a diferença nos números. Em 1903, o médico Oswaldo Cruz começou uma reforma sanitária na capital da República, que envolvia a erradicação da febre amarela, peste bubônica e varíola. Devido a essas campanhas, foram feitas músicas, que ganharam a boca do povo. Não eram jingles, mas crônicas do comportamento da população.

Um delas, A vacina obrigatória, relata a resistência do povo em tomar a medicação com seringa. “E os doutores da higiene vão deitando logo a mão / Sem saberem se o sujeito quer levar o ferro ou não.” A teimosia desaguou na Revolta da Vacina, motim ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904, que acabou se estendendo para mais críticas ao governo e pretexto para uma tentativa de golpe militar com o intuito de derrubar o presidente Rodrigues Alves, do Partido Republicano Paulista.

O projeto da vacina obrigatória exigia comprovantes de vacinação para a realização de matrículas nas escolas, obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos. Previa-se também multas para quem resistisse à aplicação – que muitas vezes acontecia a contragosto. Embora a vacinação obrigatória tenha sido o deflagrador da revolta, logo os protestos passaram a se dirigir aos serviços públicos em geral e ao governo. No dia 16 de novembro, foi decretado o estado de sítio e a suspensão da vacinação obrigatória. O confronto terminou num saldo de 23 mortos, dezenas de feridos, quase mil presos.

Um compositor e cantor proeminente do início da indústria fonográfica despontou nos cafés cantantes e nos chopes berrantes, Eduardo das Neves, também conhecido como Dudu das Neves, Crioulo Dudu, Nego Dudu ou Palhaço Negro. Ex-palhaço de circo, ex-soldado do Corpo de Bombeiros (foi demitido porque bebia fardado), ex-funcionário da Central do Brasil (foi demitido por participar de uma greve), compôs diversas músicas, muitas delas de temática política. Fazia tanto sucesso, que ganhou menção em Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) e numa crônica de João do Rio: “Hei de lembrar-me sempre certa vez em que, passando pelo café-cantante, ouvi o barulho da apoteose e entrei. Estava o Dudu das Neves, suado, com a cara de piche a evidenciar 32 dentes de uma alvura admirável, no meio da roda e em todas as outras dependências do teatro a turba o aclamava. O negro já estava sem voz”.

Uma das canções expressivas do seu repertório era a cançoneta Os reclamantes, que narrou a Revolta da Chibata. Revoltados com os castigos físicos que sofriam na Marinha, ocorridos mesmo com duas décadas da Lei Áurea, marinheiros negros e pardos rebelaram-se contra seus superiores brancos, no dia 22 de novembro de 1910. O estopim se deu após a punição com 250 chibatadas (o número frequente era de 25) no marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes. Diante da crueldade, os marujos, liderados por João Cândido Felisberto, conhecido como “Almirante Negro”, promoveram um motim, mataram o comandante e outros tripulantes brancos, dominaram o navio Minas Gerais. Deram um tiro de canhão, ouvido pelo recém-empossado presidente Hermes da Fonseca, que se encontrava no recém-inaugurado Teatro Municipal. “Houve grande correria / Todo o povo no receio / Por toda parte dizia/ Vai haver um bombardeio.”

Os amotinados enviaram uma carta ao marechal exigindo o fim da violência na Marinha. “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e os navios que não se revoltarem.” Mais seis outras embarcações aderiram ao motim. O desfecho aconteceu após o Congresso Nacional, liderado por Rui Barbosa, aprovar uma anistia aos rebelados. O perdão oficial, no entanto, durou apenas dois dias. Logo, foram expulsos da Marinha. E, um motim no Batalhão Naval, que não tinha a ver com o movimento anterior, serviu ao governo para decretar o estado de sítio e prender centenas de marinheiros. João Cândido foi internado como louco no Hospital de Alienados. Dezesseis detidos morreram asfixiados com a cal jogada nas celas. João Cândido escapou da morte, mas foi processado. Sua absolvição, junto com outros companheiros, ocorreu em 1912.

Eduardo das Neves interpretou também uma composição que satirizava o sistema eleitoral da República Velha, As eleições de Piancó (cidade da Paraíba). Na época, o voto não era secreto e deveria ter a assinatura do eleitor. Ao final, os eleitos eram avaliados por comissões formadas por políticos. Podiam ser aceitos ou reprovados. Das Neves ainda criticou a oligarquia que existia nos estados brasileiros, através de O pai de toda gente, referindo-se a Antônio Pinto de Nogueira Accioly, que comandou a política no Ceará por mais de 30 anos, de 1878 a 1912.

CRÍTICA AOS POLÍTICOS
Em 1912, a morte do Barão do Rio Branco provocou comoção. O patrono da diplomacia brasileira foi o responsável pela fixação da demarcação das fronteiras, que deu ao Brasil o contorno que tem até hoje. Contribuiu para manter no país boa parte do território do Amapá (em disputa com a Guiana Francesa); do Acre (disputa com a Bolívia), cuja capital o homenageia; Paraná e Santa Catarina (em disputa com a Argentina, na qual foi chamado de imperialista). Com o falecimento do barão, Hermes da Fonseca adiou o Carnaval daquele ano para o Sábado de Aleluia. Além das músicas em homenagem ao diplomata, foi criada pelo povo uma quadrinha: “Com a morte do barão/ Tivemos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso!/ Se morresse o marechá”. O rosto do Barão foi parar nas notas de cinco mil réis (1913 e 1924), cinco cruzeiros (1950), mil cruzeiros (1978) – por isto, “barão” virou gíria para “mil” (“um barão”) e “rico”. Sua imagem hoje está marcada nas atuais moedas de 50 centavos.

Os políticos eram os alvos principais dessas crônicas em forma de música. O samba Desabafo carnavalesco (1917), de Freire Júnior, interpretado por Eduardo das Neves, critica a economia brasileira durante o governo de Venceslau Braz, que sofria os efeitos da Primeira Guerra Mundial. O samba Fala, meu louro (1920), de Sinhô, interpretado pelo então novato Francisco Alves, satirizava a segunda derrota de Rui Barbosa numa eleição presidencial (na primeira perdeu para Hermes da Fonseca; na segunda, para Epitácio Pessoa). “Papagaio louro / Do bico dourado / Tu falavas tanto / Qual a razão que vives calado?”. Pelo fato de Barbosa ser baiano e culto, o samba fazia referência ao coco (música e gíria para cabeça).

A marcha Fala baixo (1921), de Sinhô, narra a sucessão de Epitácio Pessoa, com a acirrada disputa entre o mineiro Arthur Bernardes e o fluminense Nilo Peçanha. Foi o maior sucesso do carnaval de 1922, mas levou Sinhô a se esconder na casa de sua mãe, porque estava sendo procurado pela polícia, devido à irreverência da letra de duplo sentido envolvendo o presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá!/ Não é assim, não é assim / Não é assim que se maltrata uma mulher”. “Rolinha” era o apelido de Arthur Bernardes.

Ainda nessa acirrada eleição, os compositores Freire Júnior e Luiz Nunes Sampaio (Careca) fizeram a marcha Ai, seu Mé (outro apelido de Arthur Bernardes). Com a vitória de seu Mé, eles creditaram a canção sob o pseudônimo Canalha das Ruas — termo usado pelo político para explicar de onde vinham as críticas que recebia. Assim que assumiu, mandou prender Freire Júnior. Careca fugiu da cidade e os discos foram recolhidos, sendo um dos primeiros casos de censura na música popular brasileira. Durante seu mandato, Bernardes manteve o país em estado de sítio.

O movimento tenentista – que reivindicava o afastamento do rígido presidente, o voto secreto, a independência do poder legislativo e a modernização do país – também despertou algumas músicas, como Moda da revolução, composta em 1924 e gravada em 1929, interpretada por Cornélio Pires e Arlindo Santana. A composição marca a presença da música caipira na crônica musical política. Ao bancar suas próprias gravações, Cornélio realizou a primeira produção independente do país. A boa repercussão despertou o interesse da indústria fonográfica para as duplas caipiras.

A cansativa alternância entre Minas Gerais e São Paulo na presidência do país foi satirizada no maxixe Café com leite (1926), de Freire Júnior. Naquele ano, o indicado do mineiro Arthur Bernardes, o paulista Washington Luís, venceu o último sufrágio dessa combinação. Após deixar o cargo, Bernardes, o Rolinha, ganhou em 1927 outra canção, Passarinho do má, de Antônio Lopes de Amorim Diniz. Interpretada por Francisco Alves, a música tem o curioso fato de ser a primeira gravação brasileira do sistema elétrico, que representaria uma significativa melhora na captação do som dos discos.

Até 1927, a Casa Edison detinha o monopólio das gravações no país. Com o sistema elétrico, passou a ter concorrência de novas empresas, como a Odeon, de quem a Casa Edison antes era representante, a Victor, a Columbia e a Brunswick. Algumas delas abriram escritórios em São Paulo, aumentando o alcance da indústria fonográfica e a possibilidade de registrar outros gêneros musicais. Isso teve um impacto no lançamento de discos. Se, em 1927, foram lançados 454 títulos, em 1930, eles chegaram ao número de 1.696.

Após o alívio provocado pela saída de Bernardes, não demorou muito para o novo ocupante do Palácio do Catete ser alvo de zombaria, O cavanhaque do bode (1927), de Nabor Pires de Camargo e Dieno Castanho, interpretada por Artur Castro. O governo de Washington Luís sofreu com os efeitos da queda do preço do café no exterior e da Grande Depressão de 1929. Ao sair, o “Bode” quebrou a política do café com leite. Em vez de indicar um mineiro, recomendou outro paulista, Júlio Prestes, o que incitou o governador de Minas Gerais, Antônio Carlos de Andrada, a apoiar o gaúcho Getúlio Vargas.

Contestando o resultado da eleição, Vargas ocupou à força o palácio, acabando com a República Velha ou Primeira República, e implantando, com apoio popular, a Revolução de 1930. Nomeou interventores em cada estado. A popularidade do político e a esperança depositada nele se refletiram no surgimento de diversas músicas, Revolução de Getúlio Vargas (Zico Dias e Ferrinho), Ode à Revolução (Alvinho), Taí, seu Getúlio foi (Paraguassu), Gê-e-Gé (Seu Getúlio), de Almirante e o Bando de Tangarás.

Ex-integrante de O Bando de Tangarás, Noel Rosa fez uma das músicas mais conhecidas do período. Mas ela não exaltava Getúlio, criticava a situação de penúria econômica na qual vivia boa parte da população desde o estouro da Grande Depressão de 29: Com que roupa? (30) “Agora eu não ando mais fagueiro / Pois o dinheiro não é fácil de ganhar / Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro / Não consigo ter nem pra gastar / Eu já corri de vento em popa / Mas agora com que roupa? / Com que roupa eu vou / Pro samba que você me convidou?”. Outra composição desesperançosa dele foi Samba da boa vontade (1932): “Comparo o meu Brasil / A uma criança perdulária / Que anda sem vintém / Mas tem a mãe que é milionária”.

No Recife, o maestro Nelson Ferreira pôs nas ruas duas marchinhas cobrando ao interventor pernambucano Lima Cavalcanti punho forte com a oposição, A canoa virou (1931) e a A canoa afundou (1932). “Afunde essa canoa, seu Lima / Vosmicê está de cima / Não solte a cambada à toa”. A “cambada” era formada pelos “prestistas”, mencionados na letra da segunda canção: “Atualmente não há mais prestista / Tudo brigou, tudo mudou! / E aquelezinho de botão vermelho / É adesista, é adesista!”. Júlio Prestes, concorrente de Getúlio na eleição desprezada, havia sido exilado após a tomada de poder pelo gaúcho.

A figura do interventor também foi destacada em mais duas músicas: na irônica Se eu fosse interventô (1933), composição de outro pernambucano, o simpático cantor Manezinho Araújo, que teve seu talento descoberto quando cantava num navio que transportava a tropa nordestina para combater a Revolução Constitucionalista de 1932; e em um dos maiores sucessos da época, a marchinha O teu cabelo não nega (1931), dos Irmãos Valença e Lamartine Babo. “Mulata, mulatinha, meu amor / Fui nomeado teu tenente interventor”. A música desfila o racismo arraigado no país, tratado como normalidade: “O teu cabelo não nega, mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega /Mulata, eu quero teu amor”.

AQUARELA DO BRASIL



A produção de músicas para o Carnaval era responsável, nos anos 1930, por 40% dos títulos lançados anualmente pelas gravadoras e também pela maioria das crônicas musicais do período. “A década de 1930 foi uma época de ouro da música popular brasileira, tamanha a quantidade e a qualidade de talentos que vieram à tona e a diversidade de gêneros que caíram no gosto popular, na esteira da massificação proporcionada pela disseminação do rádio por todo o país. Contudo, em matéria de música sobre política, os anos 1930 podem ser considerados dos mais ralos da história da República. A explicação para a contradição está nas próprias condições da luta política no período. Essa espetacular efervescência na cena musical, contudo, não foi acompanhada, como seria de se esperar, pelo crescimento da produção de músicas sobre temas políticos. A Revolução de 1930 não só acarretou uma intensa modernização do país, como também provocou forte centralização da vida política nacional, com crescente glorificação da figura de Getúlio Vargas. Esse processo tornou-se mais nítido a partir de 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo, que aboliu toda forma de oposição política legal no país”, analisa o jornalista Franklin Martins.

Um dos destaques da década de 1930 e que dialogava com o intento nacionalista de Getúlio Vargas foi a composição Aquarela do Brasil. “A gravação de Francisco Alves, considerado o Rei da Voz, naquele contexto, caiu como uma luva para os intentos da ditadura varguista. Ary Barroso não apenas inventou o samba-exaltação, como definiu seu paradigma. Enquanto a letra enaltecia o Brasil, seu povo, suas cores, tradições e riquezas naturais, a melodia sincopada dava o tom de grandiosidade da introdução ao final apoteótico. O resultado foi a popularização de uma visão romântica e grandiloquente do país, ratificada pela voz empostada de Francisco Alves com um acompanhamento de orquestra, com regência de Radamés Gnattali, que reforçava ainda mais o tom de monumentalidade da composição”, avalia o pesquisador Bruno Viveiros Martins, doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.

No final de 1939, Vargas criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o intuito de fortalecer a sua imagem através de manobras como manipular a relação com os jornais e as rádios, fazer propaganda oficial, censurar espetáculos e a imprensa, promover campanhas. Uma das primeiras foi a da valorização da imagem do trabalhador. Para acabar de vez com a figura mítica do malandro, compositores e intérpretes foram estimulados a glorificar o trabalho. O bonde de São Januário, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, surgiu nessa época: “Quem trabalha é que tem razão / Eu digo e não tenho medo de errar / O bonde São Januário leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar / Antigamente eu não tinha juízo / Mas resolvi garantir meu futuro”. Afinal, “a boemia não dá camisa a ninguém”. Segundo Mário Lago, a letra original era: “O bonde de São Januário / leva mais um sócio otário / só eu não vou trabalhar”.

Em 1942, Mário Lago e Ataulfo Alves compuseram um samba lento que, apesar disso, tornou-se um dos grandes sucessos daquele carnaval, Ai que saudade da Amélia. A origem da personagem ainda é um mistério. Há uma versão de que foi inspirada na empregada da casa da cantora Aracy de Almeida. Quando a composição estava pronta para ser gravada, nenhum cantor quis interpretá-la, por ser um samba vagaroso e por sua letra incomum, com três personagens, o homem, a atual e a ex. Então, o próprio Ataulfo gravou. E estourou nas ruas. A primeira-dama, Darcy Vargas, mandou executar a música no Baile de Gala do Municipal, que tinha a presença ilustre do diretor de Cidadão Kane (1941), em sua visita ao Brasil como política de boa vizinhança promovida pelo governo norte-americano. “O cinematografista americano Orson Welles, encarregado de dirigir a filmagem de aspectos da festa, fez questão de conhecer a letra de Amélia em versão para o inglês, cantarolando a música durante todo o Carnaval”, garante o pesquisador Luizito Pereira, no livro Ataulpho Alves — Um bamba do samba (2004).

A música, que transformou o nome Amélia em gíria para mulher submissa, ganhando até verbete no Aurélio, foi campeã do carnaval daquele ano, empatando com Praça Onze, de Grande Othelo e Herivelto Martins. Essa era uma crítica ao fim do logradouro para a construção da Avenida Presidente Vargas. Existente há 150 anos, a Praça Onze, com o fim da escravidão, virou um reduto de sambistas e local dos primeiros desfiles das escolas de samba. Trabalhando nos cassinos da Urca e Icaraí, Herivelto e Grande Othelo atravessavam a Baía da Guanabara numa lancha. Foi numa dessas travessias que aconteceu a inusitada parceria.

GRITOS DE GUERRA
No mesmo 1942 em que cantava Ai que saudade da Amélia e Praça Onze, o Brasil estava em suspensão por conta da Segunda Guerra. Em janeiro, rompeu com as potências do Eixo e, em março, assinou com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha os Acordos de Washington. Comprometeu-se a fornecer matérias-primas para os aliados em troca de apoio financeiro e técnico para seu desenvolvimento, inclusive na siderurgia. Em retaliação, os alemães afundaram, na nossa costa, cinco navios mercantes brasileiros, matando 652 pessoas. Pressionado pela imprensa e pelo povo, o presidente anunciou o ingresso na guerra.

Com a temática bélica circulando nas ruas, foram feitas mais de 20 canções abordando o conflito, convocando à luta, satirizando Hitler e Mussolini. O frevo de Nelson Ferreira daquele carnaval, Qué matá papai, oião?, exalava o clima de vitória dos aliados: “E foi assim, e foi assim / Que prepararam a invasão de Berlim / Começou na Sicília, a história diz / Entraram em Roma e, depois, Paris / Seu Bigodinho, isso é que é façanha!/ Com mais um salto, nós entramos na Alemanha / Fazendo meu passo com satisfação / E tratando de acabar com a goga do alemão / Qué matá papai, oião?”

E, no começo de 1945, estimulado pela expectativa da vitória aliada, Vargas passou a promover uma gradual abertura, anunciou o retorno dos partidos, a anistia a presos políticos, como Luís Carlos Prestes, e a eleição para dezembro. Nesse mesmo ano, no contexto do enfraquecimento do seu governo e das arrumações para o sufrágio, fez sucesso a marchinha Cordão dos puxa-sacos, cuja frase final popularizou a expressão “E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais”.

O início dessa música faz uma alusão à polca No bico da chaleira, que abordava os aduladores do respeitado senador gaúcho Pinheiro Machado, que vivia às voltas com um chimarrão. Quando acabava o líquido, seus assessores disputavam para encher a cuia do homem com água quente. Na ânsia de chegar primeiro, um deles queimou a mão no bico da chaleira. A música popularizou o verbo “chaleirar”, sinônimo para bajular. Assassinado em 1915, a rua onde morava o senador em Laranjeiras ganhou o seu nome.

Em outubro de 1945, um mês após a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, Getúlio Vargas foi deposto. A oposição adorou quando Herivelto Martins lançou, no Carnaval de 1946, o samba Palhaço: “Eu assisti de camarote o teu fracasso, Palhaço / Quem gargalha demais, sem pensar no que faz / Quase nunca termina em paz / No livro de registros desta vida / Numa página perdida / O teu nome há de ficar / Registram-se os fracassos / Esquecem-se os palhaços / E o mundo continua a gargalhar”. Segundo ele, não tinha a ver com o ex-presidente, mas com um músico rival.

Instituído por Getúlio Vargas em 1936, o salário-mínimo não era reajustado desde 1943, apesar da inflação. Somente em 1º de janeiro de 1952 houve aumento. No Rio de Janeiro, por exemplo, passou de 380 para 1.200 cruzeiros – o valor não era igual em todos os estados. Para criticar a penúria que existia no país, foram lançadas algumas músicas, como o samba Falta um zero no meu ordenado (1948), de Benedito Lacerda e Ari Barroso, interpretado por Francisco Alves.

Esse arrocho salarial enfraqueceu o governo Dutra, pavimentando o caminho para a volta de Getúlio ao poder, agora referendado pelo voto. Jingles ou não, diversas músicas foram compostas pedindo o retorno de Gegê. Com sua vitória, o Carnaval de 1951 estava cheio de alegria e esperança. A Império Serrano compôs 61 anos de república, relembrando alguns presidentes e destacando a figura de Vargas.

Nesse mesmo ano, fizeram sucesso no Carnaval marchinhas que satirizavam os empresários que abocanhavam boa parte do salário dos mais pobres, aumentando os preços dos produtos: Tubarão, de Norival Reis e Alberto Rego, interpretada pelos Os Boêmios; e O tubarão, frevo-canção do compositor pernambucano Levino Ferreira, 50 anos antes de começarem os ataques dos verdadeiros tubarões na Praia de Boa Viagem. O termo tubarão era uma junção de “és tu, barão”. A gíria pegou.

Em 1953, na toada Vozes da seca, Zé Dantas e Luiz Gonzaga chamavam a atenção para a Região Nordeste, que era castigada com uma das maiores estiagens do século XX. A canção, destinada a Getúlio, criticava o assistencialismo, pedindo redução do preço dos alimentos, a construção de barragens e açudes: “Seu doutô, os nordestino têm muita gratidão / Pelo auxílio dos sulista nessa seca do Sertão / Mas doutô uma esmola a um homem qui é são / Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. Em 1947, Luiz Gonzaga já havia feito sucesso com Asa branca (em parceria com Humberto Teixeira), canção que abordava a migração dos nordestinos para o Sudeste por conta da fome, sede, falta de trabalho, gerados pela estiagem.

No dia 3 de outubro daquele mesmo ano, Getúlio Vargas sancionou a lei que criava a Petrobras e instituía o monopólio estatal do petróleo no Brasil. Mas o texto deixava brechas para a presença de capital estrangeiro. Por conta disso, virou alvo dos setores nacionalistas, que relançaram a campanha “O petróleo é nosso”. O governo acabou descartando as multinacionais. A Epopeia do petróleo, samba-enredo da União da Ilha, de 1956, de Aurinho e Didi, celebra o desfecho e homenageia Arthur Bernardes e o escritor Monteiro Lobato, que, na década de 1930, foi preso por defender o monopólio do Brasil na extração. Em 1958, foi feita também a Marcha da Petrobras (1958), de J. Augusto, Luiz Gonzaga e Nelson Barbalho, interpretada por Luiz Gonzaga. Hoje, as multinacionais ocupam 75% da extração do pré-sal, descoberto pelo governo Lula em 2005, e a privatização da Petrobras é assunto corrente na imprensa.

Em 1954, a marcha Se eu fosse o Getúlio, de Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior, interpretada por Nelson Gonçalves, dava conselhos bem-humorados ao presidente para resolver a crise política e econômica. Mas a solução era bem mais complexa, pois Getúlio enfrentava a fuga da base aliada, abaixo-assinado das Forças Armadas pedindo mais recursos e críticas à proposta do ministro do Trabalho, João Goulart, de aumento de 100% para o salário-mínimo, reajuste anunciado no 1o de maio. A oposição, a imprensa e as entidades patronais bateram às portas do Supremo Tribunal Federal. Em junho, a UDN pediu a abertura de processo de impeachment de Vargas, mas a proposta foi recusada pela maioria da Câmara. Os militares ensaiavam um golpe, quando se ouviu um tiro no Palácio do Catete, no dia 24 de agosto de 1954. Trechos da carta-testamento foram citados no samba A carta (1955), cantada por Moreira da Silva, e no rojão Ele disse (1956), interpretado por Jackson do Pandeiro.

NOVA CAPITAL FEDERAL
Após um período conturbado de transição, o presidente eleito Juscelino Kubitschek, ex-governador de Minas Gerais, assume a presidência. Uma de suas ações mais polêmicas e certamente grandiosa foi a construção de Brasília, colocando em prática, em 1956, o que indicava a primeira Constituição da República, de 1891 – que a região do Planalto Central deveria abrigar a nova capital.

O anúncio inspirou mais de 70 composições. Eram sambas, guarânias, baiões, rojões, cocos, chorinhos, valsas, marchinhas. “Dizem, é voz corrente / em Goiás será a nova capital / Leve tudo pra lá, seu presidente / Mas deixe aqui nosso Carnaval”, cantou Linda Batista na marchinha Nova capital (Aldacir Louro, Sebastião Mota e Edgard Cavalcanti). O compositor Billy Blanco foi mais antipático no samba Não vou para Brasília: “Não vou pra Brasília / Não vou, não vou / Eu não sou índio nem nada / Nem uso a argola pendurada no nariz / Não uso tanga de pena / E a minha pele é morena / Do sol da praia / Onde nasci e me criei”. A construção da cidade, além do intento de ocupar o interior do país, atendia aos planos estratégicos de o presidente não estar tão vulnerável em casos de guerra e de convulsão social.

Uma das canções que se destacaram no período foi Presidente Bossa Nova (1957), de Juca Chaves: “Bossa nova mesmo é ser presidente / Desta terra descoberta por Cabral / Para tanto basta ser tão simplesmente / Simpático, risonho, original / Depois desfrutar da maravilha / De ser o presidente do Brasil / Voar da Velhacap (velha capital) pra Brasília / Ver a alvorada e voar de volta ao Rio”. Após a repercussão, Juca foi até o Palácio da Alvorada cantá-la para JK – um dos apelidos que pegou na época em que os cariocas criticavam o presidente, chamando-o de “Seu presidente”, “o home” e “Nonô”. Mesmo assim, o Departamento de Censura foi mobilizado para que a canção “fosse evitada” em radiodifusão.

Embora as músicas de protesto fizessem relativo sucesso desde o princípio da indústria fonográfica, e tivessem sua importância no contexto, eram as canções românticas que protagonizavam e lucravam nesse mercado. “Em todas as épocas, a música romântica esteve na frente comercialmente. Os outros gêneros podem ter mais prestígio ou presença, mas, se você for ver, quem vende disco mesmo é o cantor romântico. Até hoje é assim – veja a breguice desses sertanejos e sofrências. A música romântica exige a melodia, e o ser humano não pode ficar sem a melodia, assim como não dispensa a história com começo, meio e fim, vide as novelas”, avalia o biógrafo Ruy Castro, autor dos livros Chega de Saudade (1990) e A noite do meu bem (2015), respectivamente sobre a bossa nova e o samba-canção, cujo auge ocorreu nas décadas de 1940 e 1950.

Em 1957, quando Juca Chaves lançou Presidente Bossa Nova, João Gilberto ainda não havia lançado o LP Chega de saudade (1959). Mas a expressão já existia por causa do samba São coisas nossas (1932), de Noel Rosa: “O samba, a prontidão /e outras bossas, /são nossas coisas”. Em 1957, um grupo se reunia para fazer e ouvir música: Billy Blanco, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, Chico Feitosa, João Gilberto, Luiz Carlos Vinhas, Ronaldo Bôscoli. Como os primeiros shows foram realizados em faculdades, pode-se dizer que foi o primeiro movimento musical brasileiro saído das faculdades. Eram chamados de “turma bossa nova”, “grupo bossa nova”. A expressão vingou.

Esses jovens não estavam muito interessados em política ou crítica social nas canções. Mas no amor, o sorriso e a flor, um banquinho, um violão, o barquinho, o mar e o sol. Uma das exceções é A felicidade (1958), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro / Por um momento de sonho / Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira / Pra tudo se acabar na quarta-feira”.

SOB O GOLPE MILITAR



A despeito da bossa nova, as letras da música popular sobre política abordariam as tentativas de golpe de Estado nas décadas de 1950 e 1960, a eleição e a renúncia de Jânio, a campanha da legalidade, o plebiscito do parlamentarismo, a luta pelas reformas de base do governo de João Goulart e o golpe militar de 1964, que ganhou uma única canção celebrativa, a do compositor Nelson Ferreira: O bloco da vitória voltou.

O renomado maestro pernambucano ficou sozinho nesse entusiasmo. O restante dos artistas disparava petardos contra os militares: apenas em um mês, em setembro de 1968, no Festival Internacional da Canção, foram lançadas as emblemáticas Sabiá (Chico Buarque e Tom Jobim), Pra não dizer que não falei das flores (Geraldo Vandré), É proibido proibir (Caetano Veloso), cujas vaias renderam o mais famoso discurso feito em um palco no Brasil, que começou com “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”

Em 27 de dezembro de 1968, 14 dias após o decreto do Ato Institucional Nº5, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos. “Nós nos sentíamos como vítimas de um sequestro comum, embora de certo modo soubéssemos que estávamos exatamente inaugurando um período em que, no Brasil, cada vez mais pessoas sentiriam medo das autoridades e não dos delinquentes, culminando com o refrão de Chico Buarque nos anos 70: ‘Chame o ladrão!’”, relatou Caetano Veloso, no livro Verdade Tropical (1997).

Após seis meses detidos, foram soltos sob a condição de saírem do país. Em julho de 1969, Gilberto Gil compôs Aquele abraço – música que alegrou a parte do país que não entendeu que a composição era uma despedida. Ali, ele e o amigo não tinham a menor ideia de quando poderiam retornar. Era um adeus estranho a música, porque mais parecia um samba-exaltação moderno, no estilo País tropical, que também foi lançado em agosto daquele ano: “O Rio de Janeiro continua lindo / O Rio de Janeiro continua sendo / O Rio de Janeiro, fevereiro e março / Alô, alô, Realengo / Aquele abraço! / Alô torcida do Flamengo / Aquele abraço”. “Era assim que os soldados me saudavam no quartel, com a expressão usada no programa do Lilico, humorista em voga na época, que tinha esse bordão. Ele até ficou aborrecido com a música, achava que deveria ter direito à canção”, explicou o autor, no livro Gil – Todas as letras (1996).

Em dezembro de 1968, depois de Chico Buarque ter sido intimado a depor, resolveu partir para um autoexílio na Itália em janeiro de 1969, onde ficou até março de 1970 – retornou porque André Midani, presidente da sua gravadora, a Philips, pediu que ele voltasse, garantindo-lhe que “as coisas tinham melhorado…”. Em janeiro de 1971, lançou o disco Construção, cuja faixa-título fala do descaso da elite e da sociedade com os trabalhadores mais vulneráveis. O artista fez diversas canções emblemáticas no período, como Cálice (com Gilberto Gil, em 1978) e Apesar de você (1978), o maior drible já dado na censura, que lhe valeu uma perseguição implacável dos censores, provocando a criação do pseudônimo Julinho de Adelaide, que chegou a ter carteira de identidade e a dar entrevista em jornal. E, em 1981, já no processo de abertura, compôs Angélica.

A música foi feita em homenagem à estilista Zuzu Angel – que virou persona non grata da ditadura após denunciar a tortura e a morte do filho Stuart Angel, preso em 14 de junho de 1971. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade confirmou a participação dos agentes da repressão na morte da estilista. Em 14 de abril de 1976, um carro fechou o seu automóvel, que capotou na saída do Túnel Dois Irmãos, hoje Túnel Zuzu Angel. Uma semana antes, ela havia deixado uma declaração com Chico Buarque, na qual afirmava: “Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho”.

Nos anos 1970, a indústria fonográfica brasileira, repleta de compositores e artistas de alto quilate da chamada MPB, também abrigava um universo paralelo, o do brega, que tinha um grande público no Brasil. O compositor e cantor Odair José era uma dessas estrelas. Em 1973, lançou Pare de tomar a pílula. O que ele não esperava era que essa canção fosse mexer com a ditadura militar.

Nesse mesmo ano, o regime estava fazendo uma campanha de controle da natalidade nas camadas mais pobres do país. A canção parecia um gesto de desobediência civil. Outras composições bregas também foram vítimas da ditadura, muitas vezes por mal-entendidos, como a clássica Tortura de amor, de Waldick Soriano, porque o seu título continha uma palavra altamente proibida pela censura.

Outras foram feitas com intenção de criticar o governo militar, como O divórcio, cujo título fazia menção à Lei do Divórcio, que tinha sido aprovada em 1977. Mas o título original, e que foi censurado, era Treze anos. O compositor Luiz Ayrão tinha composto a música por conta da longa duração da ditadura. “Treze anos eu te aturo / Eu não aguento mais / Não há Cristo que suporte / Eu não suporto mais / Treze anos me seguro / E agora não dá mais / Se treze é minha sorte / Vai, me deixa em paz / Um dia eu perco a timidez, e falo sério / E faço as minhas leis com meu critério / Eu vou para o xadrez ou cemitério / Mas findo de uma vez com seu império”.

Apesar de terem sofrido com a censura, esses cantores não costumavam ter apoio do público, da esquerda ou da crítica, não viraram heróis da resistência como os nomes da MPB. “Esses artistas foram tratados pelos formadores de opinião como alienados e adesistas. Mas eles estavam protestando contra a repressão moral. O meu livro tirou aquela capa preta sobre eles. Iluminou aquilo que tinha acontecido. A coisa era mais complexa do que a crítica pensava. A simplificação foi esclarecida”, explica o pesquisador Paulo César de Araújo, conhecido como o biógrafo censurado de Roberto Carlos e autor do livro Eu não sou cachorro não (2012), sobre a relação entre a música popular cafona e a ditadura militar.

O ANO QUE NÃO TERMINOU
Em 1974, setenta anos depois da Revolta da Chibata, a rebelião voltou a inspirar compositores. Aldir Blanc e João Bosco compuseram O mestre-sala dos mares, que fez sucesso na voz de Elis Regina, em seu disco de 1974, Elis. “Há muito tempo nas águas da Guanabara…”. Mas a censura não aceitou que um negro e rebelde fosse tratado como herói. Então o Almirante Negro virou “Navegante Negro” e “figura de um bravo marinheiro” virou “figura de um bravo feiticeiro”, o que dá à música um certo ar nonsense. Feiticeiro no mar.

João Cândido Felisberto, que era um marinheiro competente, responsável por averiguar a qualidade dos navios, libertou companheiros negros de castigos racistas, mas ainda é um nome raro nas aulas de história. Nunca recebeu uma patente ou aposentadoria. Morreu pobre em dezembro de 1969. No entanto, desde 2007, não tem apenas como “monumento as pedras pisadas do cais”. Além de duas músicas, ganhou uma imponente estátua de bronze em frente à Baía da Guanabara. Com um leme na mão.

Nesse mesmo disco, Elis Regina interpretou uma das mais belas canções da dupla Milton Nascimento e Fernando Brant: Conversando no bar (Saudade dos aviões da Panair). A letra é bastante rica em imagens poéticas: “Lá vinha o bonde no sobe desce ladeira / E o motorneiro parava a orquestra um minuto / para me contar casos da campanha da Itália / e do tiro que ele não levou / levei um susto imenso nas asas da Panair / Descobri que as coisas mudam / E que tudo é pequeno nas asas da Panair”.

Entre 1930 e 1950, a Panair do Brasil era a principal empresa aérea do país. Mas teve suas operações aéreas abruptamente encerradas em 10 de fevereiro de 1965, por um decreto. No mesmo dia, um avião da Varig estava a postos para substituir o voo. Após diversas manobras judiciais, o governo conseguiu fechar definitivamente a empresa em 1969, por meio de um ato inédito no Direito Empresarial, um “decreto de falência” imposto pelo Poder Executivo. Um dos donos da empresa era Mário Wallace Simonsen, também proprietário da TV Excelsior, preterida pelos militares em prol da TV Globo, inaugurada em 1965. O motivo: o empresário era contra o golpe militar.

Elis Regina, que havia sido coagida a cantar nas Olimpíadas do Exército em 1973, recebendo um dura crítica em forma de charge assinada por Henfil, gravou algumas das músicas mais contundentes contra a ditadura. Uma delas é a emblemática Como nossos pais, de Belchior, lançada em seu disco Falso brilhante, de 1976 – o show mais elogiado e assistido daquela década.

Ainda em 1976, Milton Nascimento lançou, em Geraes, a música Menino. “Quem cala sobre teu corpo / Consente na tua morte”. A letra refere-se ao estudante Edson Luís de Lima Souto, morto pela polícia, aos 17 anos, com um tiro no peito, em 28 de março de 1968, porque estava no protesto contra o aumento do preço da comida do restaurante estudantil Calabouço. Edson também inspirou a letra de Coração de estudante (1984), tema do filme Jango, de Silvio Tendler. Em 1985, por conta da cobertura midiática da morte de Tancredo Neves, o país passou a associar a música ao político mineiro, que ocuparia a presidência, promovendo a transição democrática.

Nascido em uma família pobre, em Belém (PA), Edson Luís mudou-se para a capital carioca para cursar o segundo grau. O assassinato gerou indignação e diversos protestos, que culminaram por motivar o decreto do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), estabelecendo a fase mais severa da ditadura, com perseguições, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e censura. “Pode-se dizer que tudo começou ali – se é que se pode determinar o começo ou o fim de algum processo histórico. Foi o primeiro acontecimento que sensibilizou a opinião pública para o movimento estudantil”, afirmou Zuenir Ventura, no livro 1968 – O ano que não terminou.

No curso da abertura política, uma música virou o tema dos exilados que regressavam após a assinatura da lei da anistia, O bêbado e a equilibrista, de Aldir Blanc e João Bosco, 1979. Mais uma vez, Elis Regina seria responsável por dar voz a um hino, numa interpretação definitiva. O Brasil tem na memória toda a sua interpretação, com as modulações, as ênfases de uma letra que faz referências a diversos acontecimentos do período. “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos…”. O viaduto era o Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, que desabou em 1971 deixando 29 mortos. “Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”. As Marias e Clarices eram as viúvas dos presos políticos, representadas por Maria, esposa do metalúrgico Manoel Fiel Filho, e Clarice, do jornalista Vladimir Herzog: mortos nos porões da ditadura. “A volta do irmão do Henfil” era o retorno do sociólogo exilado Herbert de Souza, Betinho, que organizaria, em 1993, a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. O intuito original da dupla de compositores era o de homenagear Charlie Chaplin, que havia morrido no natal de 1977.

Em 1977, Caetano Veloso lançou, no LP Bicho, a canção Um índio, trazendo uma temática pouquíssimo explorada na música popular brasileira. “Depois de exterminada a última nação indígena / E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida”. Na época, raramente se fazia referência à situação dos povos indígenas na ditadura militar. No entanto, eles foram as vítimas mais vulneráveis e em maior número que os mortos políticos (434). A Comissão da Verdade revelou que, na época da ditadura militar, mais de 8 mil índios foram assassinados durante a construção de quatro rodovias pertencentes ao Plano Nacional de Integração (PIN), sendo a mais conhecida a Transamazônica, que, entre 1968 e 1974, vitimou 29 grupos indígenas, 11 deles viviam completamente isolados. Durante as obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, aconteceu o massacre dos paracanãs, e da rodovia Perimetral Norte ocorreu a morte de, pelo menos, 2 mil ianomâmis.

Em 1981, o tema retorna na voz de Jorge Ben com Todo dia era dia de índio, que virou sucesso radiofônico, e em 1993, no álbum inteiro de Milton Nascimento, Txai. Uma das faixas, Benke, foi feita em homenagem ao curumim Benki Piyãko, quando o artista o conheceu durante a visita à aldeia Apiwtxa, em 1989. Hoje, Benki é um ativista da causa indígena, dedicado a um trabalho, premiado internacionalmente, de reflorestamento e assistência ao seu povo. Em março de 2018, após denunciar à Polícia Federal do Acre que estava sendo ameaçado de morte, a autoridade policial surpreendentemente o indiciou e pediu a abertura de ação penal por denúncia caluniosa. Em maio, ele foi absolvido.

RETRATO PESSIMISTA



Nos anos 1980, a posição de cronista que a MPB ocupou nas décadas anteriores foi transferida, com o fim gradual da ditadura, para as bandas do rock nacional. “A visão do Brasil contida nas letras do rock brasileiro dos anos 80 não pode ser rotulada de nacionalista ou patriótica. Elas montam um retrato pessimista, sem nenhuma sutileza, da nação: ‘nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado’ (Que país é este, 1987, Legião Urbana); ‘e agora você quer um retrato do país, mas queimaram o filme, e enquanto isso na enfermaria todos os doentes cantam sucessos populares e todos os índios foram mortos’ (Mais do mesmo, 1987, Legião Urbana); ‘desempregado, despejado, sem ter onde cair morto, endividado sem ter mais com que pagar, esse país, esse país que alguém disse que era nosso’ (Perplexo, 1989, Paralamas do Sucesso); ‘sinto um imenso vazio e o Brasil, que herda o costume servil, não serviu pra mim – terra linda, sofre ainda a vinda de piratas, mercenários sem direção, que até eu mesmo sei quem são’ (Juvenília, 1985, RPM); ‘mais uma briga de torcidas, acaba tudo em confusão, a multidão enfurecida queimou os carros da polícia, os presos fogem do controle, mas que loucura essa nação’ (Desordem, 1987, Titãs)”, aponta o sociólogo e pesquisador Hermano Viana, no livro O mistério do samba (1995).

A situação prisional do país, que guarda uma forte herança dos maus tratos da escravidão e da ditadura militar, foi narrada com maestria em duas letras de rap da década de 1990. Uma assinada por Caetano e Gil, Haiti (1993), que aborda o Massacre do Carandiru: “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo / Diante da chacina / 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos / Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres / E pobres são como podres / E todos sabem como se tratam os pretos”. A outra é Diário de um detento (1997), dos Racionais MC’s, que relata o dia anterior ao trágico evento. “Cada sentença um motivo, uma história de lágrima / sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio / Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo / Misture bem essa química / Pronto: eis um novo detento”, diz um trecho da longa e incisiva letra.

No início da década de 1990, o manguebeat, capitaneado pelas bandas recifenses Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, fez críticas importantes em suas músicas. “Ô Josué / eu nunca vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”, referiu-se Chico Science ao sociólogo pernambucano Josué de Castro, autor de Geografia da fome (1946), livro por conta do qual teve que se exilar do país, pressionado pela ditadura militar. O estudioso cunhou a marcante frase: “Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come”, traduzida por Science em “Com a barriga vazia não consigo dormir”, em Da lama ao caos

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