Reportagem

O Brasil cantado (parte 2)

Uma viagem histórica que começa no final do século XIX e chega aos dias atuais observando os modos como a música nacional expressa a crítica à política e aos costumes da República vigente

TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
ILUSTRAÇÕES NELSON PROVAZI

01 de Janeiro de 2019

Ilustração Nelson Provazi

[conteúdo na íntegra | ed. 217 | janeiro de 2019]

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continuação da parte 1

“Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela / A polícia atrás deles e eles no rabo dela / Acontece hoje e acontecia no sertão / quando um bando de macaco perseguia Lampião / E o que ele falava outros hoje ainda falam / ‘Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala’ / Em cada morro uma história diferente / Que a polícia mata gente inocente / E quem era inocente hoje já virou bandido / Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido”, cantou Chico Science, em Banditismo por uma questão de classe (1994), uma embolada, gênero musical que seria um pré-rap. Nela, menciona o período em que Lampião era mote para diversas canções, como a toada Acorda, Maria Bonita (1931-1932), por conta da qual o autor e intérprete Antônio dos Santos (Volta Seca) foi preso pela polícia.

A violência policial, que vitima jovens negros da periferia (anualmente são assassinadas no país 30 mil pessoas, 23 mil delas são jovens negros), tornou-se um tema recorrente na música brasileira, mas, em 2008, ganhou uma resposta na “versão proibidão” do Rap das Armas, feita pela dupla Cidinho & Doca (os mesmos do Rap da Felicidade) e que se tornou um hit internacional naquele ano (44 milhões de visualizações no YouTube), após o lançamento do filme Tropa de elite: “Morro do Dendê é ruim de invadir / Nóis, com os alemão, vamo se divertir / Porque no Dendê vô te dizer como é que é / Aqui não tem mole nem pra DRE / Pra subir aqui no morro até a BOPE treme / Não tem mole pro exército, civil, nem pra PM / Eu dou o maior conceito para os amigos meus/ Mas Morro do Dendê também é terra de Deus”.


Porém, a música original do filme é a da dupla MC Júnior e Leonardo, lançada em 1995. “Nesse país todo mundo sabe falar / Que favela é perigosa, lugar ruim de se morar / é muito criticada por toda a sociedade / Mas existe violência em todo canto da cidade / Por falta de ensino falta de informação / pessoas compram armas, cartuchos de munição / mas se metendo em qualquer briga ou em qualquer confusão / se sentindo protegidas com a arma na mão”. Treze anos após o referendo da proibição das armas de fogo, o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, pretende liberar o uso por toda a população.

RAP E FUNK
A partir dessa década, o rap e também o funk tomaram a dianteira da discussão política na música, mas principalmente no que se refere à política racial no país. Uma das composições que serviram de base para esse fortalecimento dessa questão foi o samba Zumbi, de Jorge Ben, do disco Tábua de esmeraldas (1974). “Aqui onde estão os homens / Dum lado cana-de-açúcar / Do outro lado o cafezal / Ao centro senhores sentados / Vendo a colheita do algodão branco / Sendo colhidos por mãos negras / Eu quero ver / Eu quero ver / Eu quero ver / Quando Zumbi chegar / O que vai acontecer / Zumbi é senhor das guerras / É senhor das demandas / Quando Zumbi chega / É Zumbi é quem manda”.

A música brasileira, no século XXI, canta da velha à nova escravidão: “E os camburão o que são? / Negreiros a retraficar / Favela ainda é senzala, Jão! / Bomba relógio prestes a estourar / O tempero do mar foi lágrima de preto / Sério, és tema da faculdade em que não pode pôr os pés”, escreve Emicida, em Boa Esperança, de 2015. Em Triunfo (2008), o rapper cantou o descolamento do destino do garoto pobre da favela para ser um artista: “Eu podia e se eu quisesse vendia / Mas sou tudo aquilo que pensaram que ninguém seria / Se o rap se entregar, a favela vai tê o quê? / Se o general fraquejar, o soldado vai ser o quê? / Tem mais de mil moleque aí querendo ser eu / Imitando o que eu faço / Tio, se eu errar, fodeu! / Ser MC é consegui ser H ponto aço / No fim das conta, fazer rima é a parte mais fácil / Já escrevi rap com as ratazana passeando em volta, tio / Goteira na telha tremendo de frio / Quantos morreu assim e no fim quem viu? Meu! / ‘Cês ainda quer mermo ser mais rua que eu? / Na pista pela vitória pelo triunfo / Conquista se é pela glória uso meu trunfo, tio / A rua é nóis, é nóis, é nóis (onde de nóis brigamos por nóis)”.

A partir dos anos 1970, começa a haver uma movimentação, que se fortaleceu até os dias atuais, de trazer à crônica musical o aprofundamento das discussões políticas, ampliando a noção de democracia também para questões identitárias, como a luta pelo direito dos negros (Cabeça de nego, Sabotage, 2002; Caravanas, Chico Buarque, 2017), dos sem-teto (Alagados, Paralamas do Sucesso, 1986, Correspondente de Guerra, Rodrigo Ogi, 2015), dos índios (Eju oridenvi, Bro MCs, 2010), das mulheres (Maria da Vila Matilde, Elza Soares, 2015, e Sou mais eu, Gaby Amarantos, 2018), dos LGBTs (Masculino e feminino, Pepeu Gomes, 1981).

Se, em 1961, na canção Ilusão à toa, Johnny Alf escondia de forma triste sua homossexualidade em expressões como “certo alguém” e “amor discreto”, em 2017, Johnny Hooker, em meio a uma sociedade que flerta com o retrocesso, canta politicamente o amor em Flutua: “Um novo tempo há de vencer / Pra que a gente possa florescer / E, baby, amar, amar, sem temer / Eles não vão vencer / Baby, nada há de ser, em vão / Antes dessa noite acabar / Baby, escute, é a nossa canção / E flutua, flutua / Ninguém vai poder, querer nos dizer como amar”.

Será que apenas os hermetismos pascoais
Os tons, os miltons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão dessas trevas
E nada mais?

DÉBORA NASCIMENTO é jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.
NELSON PROVAZI é ilustrador e infografista.

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