Comentário

Cordel, patrimônio cultural do Brasil

TEXTO MARIA ALICE AMORIM

01 de Novembro de 2018

A literatura de cordel é uma poesia de memória longa que conecta fios de antigas tradições poéticas

A literatura de cordel é uma poesia de memória longa que conecta fios de antigas tradições poéticas

Imagem GRAVURA DE 1850/AUTOR NÃO IDENTIFICADO/REPRODUÇÃO

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 215 | novembro de 2018]

Que venham as
Musas e Vênus, o mestre pensamento, Apolo, Dionísio, todas as figuras de retórica e de toda a poesia, o encantamento. Falar sobre cordel não é gesto somente da razão, passa pelos sentidos, pela paixão. Quem é esse livrinho de feira que tanto nos encanta? De onde vem assim tão sedutor, chega mesmo é de fora ou nasceu autóctone no coração do Nordeste do Brasil? Questões desse tipo vêm acompanhando as décadas e décadas de existência do folhetinho e eis que, para alegria de poetas e admiradores, o dia 19 de setembro de 2018 amanhece luminoso, respondendo para o mundo, de maneira digna, afirmativa, a essas e outras tantas indagações. A literatura de cordel é registrada, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, no Livro das Formas de Expressão e recebe o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Para além da visibilidade nacional, da repercussão na mídia internacional, que outras conquistas, estruturantes, poderiam decorrer da vitória é o que os mais atentos se perguntam. Sim, porque o cordel vive muito mais de resistência e teimosia do que de reconhecimento oficial. Vive da jornada contínua de poetas, pesquisadores, professores nos saraus de poesia e eventos literários, nas feiras de livro, nas bibliotecas e escolas, a despeito das consideráveis lacunas em manuais didáticos e livros de historiografia da poesia brasileira, da quase total ausência em cursos de Letras que não conseguem se debruçar sobre a exuberância de tradição constituída de poemas consagrados e continuamente renovada por obras e poetas de talento respeitável. Avançaremos, portanto, com a conquista do título, em direção a um maior discernimento, e consequentes práticas valorativas, acerca deste legado poético, histórico, ancestral, que se move entre nós e é uma das nossas grandes referências culturais?

E de que servem as nossas referências culturais, senão para compreendermos o mundo e poder simbolizar nossas relações com a vida e a morte? Falar de patrimônio cultural significa, portanto, mais que se ufanar, implica refletir sobre os pilares que constituem um patrimônio cultural: diversidade, sensibilidade artística, identidade, história, imaginário coletivo, memória social. Assim, vislumbramos no cordel mais do que desavisados poderiam ver: a polifonia entre nossas vozes e as vozes de tradições poéticas procedentes da Grécia antiga, de Portugal e Espanha, das narrativas do romanceiro ibérico medieval, da poesia árabe, da poesia provençal disseminada no continente europeu a partir do sul da França. As figuras de retórica são algumas das principais companheiras de poetas desse ramo da tradição.

E há mais refinamentos: o sistema estrófico, a contagem silábica e tônica de cada verso, o ritmo, os temas, as modalidades de estrofe e de figuras de retórica escolhidas conforme a classificação temática, a exemplo das pelejas de cordel que, por serem pelejas, adotam procedimentos linguísticos e formais do repente de viola. Augusto de Campos, no livro Verso reverso controverso, analisa a Peleja do cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum, e aponta a semelhança entre os elaborados recursos estilísticos usados pelo autor, Firmino Teixeira do Amaral, e os utilizados pelo poeta provençal Arnaut Daniel, trovador occitano aclamado “o melhor criador”, por Dante, e “o melhor de todos”, por Petrarca.

Cordel, afinal, não é folclore no sentido reducionista, caricato, pejorativo, no qual o conceito às vezes é entendido. Aparentemente fácil de fazer, apreciar e memorizar por conta das rimas e da linguagem coloquial, exige talento e dedicação. Requer não apenas o conhecimento e a prática de quadra, sextilha, setilha, décima. Necessita de entendimento histórico, conhecimento de repertórios para enriquecimento da prática. A respeito da sextilha, inclusive, um equívoco de pesquisa se repetia, atribuindo a invenção da estrofe de seis linhas ao poeta paraibano Silvino Pirauá de Lima (1848-1913). O engano desconsiderava as várias camadas de memórias, de saberes tradicionais. Desconsiderava o fato de a sextilha existir em versos portugueses, inclusive em poemas do século XVI que subsequentemente circularam no Brasil, e também em versos brasileiros, tais como poemas de nosso maior barroco, o baiano Gregório de Matos, que, no século XVII, além de quadras, décimas e outras modalidades de estrofe, praticava o verso de seis linhas.

Recentemente, teorizações sobre a sextilha em cordel ganharam nova luz graças à tenacidade dos pesquisadores Arievaldo Vianna e Stélio Torquato Lima, que conseguiram localizar, no acervo da Biblioteca Nacional, um folheto preservado contendo quatro poemas do potiguar João Sant’Anna de Maria (1827-188?), e publicaram no ano passado, pela Editora Imeph, Santaninha – Um poeta popular na capital do Império, livro biográfico e antológico, em que podemos ler cordéis em sextilhas – O imposto do vintém (1880), A Guerra do Paraguai (187?) – do então célebre poeta Santaninha, publicados no Rio de Janeiro do século XIX, desmontando-se assim suposto pioneirismo de Pirauá. E as pesquisas vão sendo feitas para isso, para melhor conhecermos e preservarmos o nosso patrimônio, para desfazer equívocos e seguirmos adiante com a poesia de cordel, no que ela tenha de melhor em persistência e tradição.

Assim, essa poesia de memória longa conecta fios de antigas tradições poéticas, constrói identidade própria, soma reminiscências. Luís da Câmara Cascudo, em Cinco livros do povo, menciona diversas versões de cinco narrativas antigas, em prosa, que ainda hoje inspiram cordelistas a criar histórias protagonizadas pela Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Princesa Magalona, João de Calais e Roberto do Diabo. No Nordeste, os pioneiros Leandro Gomes de Barros, Silvino Pirauá, Francisco das Chagas Batista, João Martins de Athayde tornaram mais engenhoso o nosso imaginário coletivo.

Nas praças e mercados, feiras livres e arraiais festivos, nos eventos literários, cantam-se, recitam-se, vendem-se histórias de encantamento e sedução. Tanto nas cidades, ambientes rurais, no âmbito reservado do lar, quanto nos espaços de vida comunitária, o folheto conquista corações e continua vibrando porque cultivado nos territórios do afeto e da utopia, da fantasia e da imaginação, nos nichos da memória de quem foi alfabetizado pelos versos do livrinho, nas veias de apaixonados pelas narrativas fantásticas e maravilhosas, na vibração da performance de cantadores e declamadores. Eis a aura mágica que envolve o folheto, conhecido pelo nome de arrecife no tempo em que a capital pernambucana era, no Brasil, o polo mais importante de produção e difusão da literatura de cordel.


Leandro de Barros, Zé Barbosa e João Ferreira Lima estão entre os autores canônicos da literatura de cordel. Imagens: Reprodução

Tempo do editor e poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, que viveu no Recife, e onde morreu em 1918, ou seja, há 100 anos. Nascido em Pombal, a 19 de novembro de 1865, o dia do seu nascimento transformou-se no Dia do Cordelista, justa homenagem criada em Pernambuco mediante lei estadual de 2005. Leandro se dedicou fervorosamente à poesia e foi considerado, pelos contemporâneos, “primeiro sem segundo”. Patrono da cadeira de número um da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), Leandro é autor dos clássicos O cachorro dos mortos, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, A vida de Pedro Cem, Vida e testamento de Cancão de Fogo, A Donzela Teodora e mais duas centenas de títulos. E foi a mesma ABLC – que designou Leandro para o número um – quem tomou a iniciativa de solicitar o registro do cordel, em 2010. O Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CFNCP), órgão do Iphan sediado na cidade do Rio de Janeiro, acolheu a ideia e participou da pesquisa, envolvendo o Nordeste e outros cinco estados do Brasil.

Muito se construiu nessa trajetória centenária. Símbolo de nossa identidade cultural, o cordel atravessa múltiplas linguagens artísticas. E, mais que o cultivo da tradição em si, cordel é invenção. É sensibilidade, pela voz singular de poetas originários de diversos pontos do país, a exemplo de Mestre Zé Barbosa, Francisco Sales Arêda, Delarme Monteiro, Severino Borges Silva, João Ferreira de Lima, João José da Silva, Mestre Azulão, José Camelo de Melo Rezende, José Pacheco, Manoel Monteiro, Marco Haurélio, Braulio Tavares, Rouxinol do Rinaré, Klévisson Viana, Astier Basílio, José Honório, Mariane Bigio, Susana Morais. São os poetas, principalmente os poetas, de tempos passados e do tempo presente, os que abraçam o desafio de manter a expressão poética que nos fortalece e nos conecta ao aqui e agora e às suas virtualidades de passado e futuro.

Hoje, mergulhados na cibercultura, conferem maior complexidade ao universo cordelístico, unindo o oral e o impresso ao digital. Não apenas cultivando as edições em folheto, os cordelistas se valem de ferramentas disponíveis para a produção, edição, impressão e difusão dos poemas. As redes sociais, o mundo virtual da web conectam os fios da tradição com os fios da internet, fazendo a comunidade cordelista permanecer em rede, interagindo e tornando mais dinâmico o bem cultural. Quanto à voz feminina nesse universo que por décadas foi reduto masculino, tal qual outras práticas de escrita contextualizadas numa sociedade machista, a cibercultura agilizou quebra de paradigmas. Em 1997, quando José Honório inaugurou as pelejas virtuais com Américo Gomes, várias poetisas se insurgiram no meio do cordel. Agora, duas décadas depois, mais autoras protagonizam escrevendo, desestabilizando preconceitos. As incessantes adaptações fazem da literatura de cordel uma poesia continuamente sintonizada com o próprio tempo.

Neste ano, 2018, mesmo ano em que a literatura de cordel celebra o centenário de morte de Leandro Gomes de Barros e a conquista do título de patrimônio cultural brasileiro, nós nos perguntamos: o que podemos e devemos desejar para o cordel? Que políticas de salvaguarda precisamos propor a nós mesmos, pesquisadores, poetas, declamadores, professores, editores? Como cultivar essa árvore frondosa, secular, que se ramifica pelo Brasil e nos protege e serve de remanso?

MARIA ALICE AMORIM é jornalista, escritora, pesquisadora de cultura popular e doutora em Comunicação e Semiótica.

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