“O cinema é um instrumento de luta política”
No documentário 'Central Airport THF', o cineasta brasileiro Karim Aïnouz reflete sobre a crise dos refugiados no mundo
TEXTO E ENTREVISTA LUCIANA VERAS, DE BERLIM
01 de Setembro de 2018
Aeroporto reformado por Hitler vira abrigo de refugiados e é retratado em novo filme de Karim
Foto Henrique Kardozo
[conteúdo na íntegra (desgustação) | ed. 213 | setembro 2018]
BERLIM - Em uma tarde de terça-feira de fevereiro de 2018, a temperatura no relógio/termômetro da Potsdamer Platz, na capital alemã, girava em torno de 4 graus negativos. Dois pisos abaixo, diversas salas do complexo CineStar exibiam filmes da Panorama, uma das mostras da 68o Festival Internacional de Cinema de Berlim. Um cartaz amarelo chamava a atenção: Central Airport THF, uma coprodução entre Alemanha, Brasil e França dirigida por Karim Aïnouz, realizador que, ele próprio, espelha a condição de cidadão do mundo.
De origem francoargelina por parte de pai, Karim cresceu em Fortaleza, estudou em Nova York, já residia no Rio de Janeiro quando lançou seu primeiro longa-metragem de ficção, Madame Satã (2002), percorreu o interior de Pernambuco quando fazia Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), ao lado de Marcelo Gomes, e hoje mora em Berlim. Mas ainda coordena o laboratório da audiovisual e cinema do Porto Iracema das Artes, escola ligada ao Centro Dragão do Mar, na capital cearense. “Tenho ido muito ao Brasil, mas moro em Neukölln, bairro supermisturado em Berlim, e me sinto muito em casa aqui”, resume o cineasta.
Talvez venha desse lugar, desse enclave ao qual se aderem a sensação de lar que encontra na Alemanha e a inquietação para retratar os contínuos chamados à reinvenção (motor da sua gema preciosa O céu de Suely, de 2006), a motivação que o levou a rodar Central Airport THF. Durante a Berlinale, Zentralflughafen THF, o título original, era repetido à exaustão nos sites e jornais e comentado em diversas listas dos “filmes imperdíveis” do festival. “Tenho falado muito com a imprensa alemã também e fiquei com a sensação de que eles estranharam um pouco que esse filme não tenha sido feito por um alemão”, contava Karim à Continente.
Para que o público desembarcasse em Central Airport THF, ele passou um ano visitando o abrigo de refugiados erguido no Tempelhof, aeroporto construído em 1923 no meio de Berlim e reformado por Adolf Hitler para refletir a grandeza do III Reich. Tempelhof virou um enorme parque urbano, porém as instalações outrora destinadas a receber militares do regime nazista, hoje acolhem centenas de imigrantes a fugir de guerras e da morte – gente como Ibrahim, da Síria, e Qutaiba, do Iraque, que ao longo de 12 meses foram se descortinando diante da câmera.
Em Central Airport THF, percebe-se o mesmo olhar delicado para com Ibrahim e Qutaiba, a mesma mirada com a qual Karim Aïnouz observa seus personagens ficcionais, seja na angulação do feminino em O abismo prateado (2011), seja na perspectiva masculina em Praia do futuro (2014). Feito originalmente para a televisão, o documentário expandiu seu horizonte e, por conseguinte, sua capacidade de atingir um maior número de espectadores com o convite para a Berlinale. “Deveria ter ido para a televisão em outubro, mas foi convidado para o festival. Será lançado nos cinemas da Alemanha pela Piffl e depois volta em horário nobre para a TV”, comentou o diretor.
Abrigo de refugiados que funciona no antigo aeroporto de Tempelhof. Foto: Juan Sarmiento/Dilvulgação
Muito se passou desde aquela tarde em fevereiro. Central Airport THF foi a festivais na Suíça, Turquia e Croácia e também ao Art of Real Film Festival, organizado pelo Lincoln Center, em Nova York. Em novembro, entra em cartaz no Brasil, com produção da Mar Filmes. Em maio, Karim Aïnouz veio ao Rio de Janeiro rodar A vida invisível, baseado em um romance da escritora pernambucana Marta Batalha. “É a história de duas irmãs da década de 1950, em que uma vira mãe solteira, a outra vira dona de casa, e é uma tentativa de criar uma micro-história da mulher brasileira através do cinema. O que era a experiência feminina e o quanto a sociedade patriarcal abafava e afogava tudo isso”, adianta. Porque, afinal, seja nas veredas da ficção ou na busca pela apreensão do real no documentário, ele reconhece: “O cinema é um instrumento essencial de luta política”.
CONTINENTE Quando conversamos em junho de 2016, você me contou que havia pego uma câmera na mão, montado uma equipe reduzida e ido filmar em Tempelhof Park. Na coletiva depois da primeira exibição na Berlinale, no começo deste ano, você revelou que demorou seis meses para abrir câmera. Como foi essa aclimatação lá? Como conciliou esse sentimento estrangeiro com a necessidade de atrair a confiança das pessoas?
KARIM AÏNOUZ Foi bem complicado. Quando cheguei lá da primeira vez, esse abrigo, que foi praticamente criado de um dia para o outro, estava cheio de pessoas chegando, que tinham que ser registradas. Um dia, quando todas as quadras da cidade estavam ocupadas de imigrantes, decidiu-se que iam usar o Tempelhof para recebê-los. Só que era um lugar gigante, que tinha que aquecer, colocar toaletes… Depois de dois meses, começaram a construir as cabines para as pessoas morarem e isso atraiu muito a imprensa. Tinha outro aspecto delicado: a pessoa saía da sua cabine, ia ao banheiro e lá tinha uma câmera. Então, nesse primeiro momento, nem me deixaram abrir a câmera. Mas, tudo bem, eu entendia que também aquilo precisava ser documentado e fui gravando. Ia toda semana, conversava, observava… Esse ritual foi me permitindo identificar quem poderia ser personagem. Porque eu queria tentar entender um pouco essa espera, que não era só uma espera minha, de ter uma permissão para efetivamente filmar, mas aquela espera que eles estavam vivendo. Isso impregnou o filme de maneira positiva.
CONTINENTE Um outro sentido para essa sua espera então?
KARIM AÏNOUZ Sim, a minha espera como um espelho da espera deles. O filme fala muito disso – desse processo de você esperar chegar uma carta para ter residência, por exemplo. Tudo parecia frustrante, naquele momento, pois eu estava ansioso para abrir a câmera, óbvio, mas terminou sendo bom.
CONTINENTE E tem uma coisa de mudança de status, como acontece com o Ibrahim, não é? Até aquele momento, ele estava sob proteção do Estado, mas não era refugiado ainda?
KARIM AÏNOUZ Não, até aquele momento, ele não estava sob proteção. Ele era um cara que chegou aqui, botou um número no peito e estava esperando ser julgado. Ele podia ser deportado a qualquer hora.
CONTINENTE Na abertura da 41a Mostra Internacional de São Paulo do ano passado, vi o filme do artista chinês Ai Weiwei, The human flow – Não existe lar se não há para onde ir, que retrata a onda migratória do mundo e pessoas tratadas como gado em condições muito mais precárias do que as que se vê em Tempelhof. Não sei se por causa da organização germânica…
KARIM AÏNOUZ Odeio esse filme do Weiwei. Odeio, odeio.
CONTINENTE Por quê?
KARIM AÏNOUZ Não ia nem fazer a comparação porque sinto que não cabe, mas a razão pela qual eu acho o filme dele muito complicado é que me parece uma enciclopédia da pobreza dos refugiados. É óbvio que um campo de refugiados no Sudão é diferente de um campo de refugiados na Alemanha. Óbvio, evidente, mas continua sendo um campo de refugiados. O que me incomoda no filme do Weiwei é que, em nenhum momento, você tem uma perspectiva humana daquilo ali. Realmente, fico muito cansado de ver The Jungle, em Calais (um campo de refugiados que existia até 2016 na cidade portuária de Calais, no noroeste da França, última parada antes da travessia do Canal da Mancha), porque os franceses poderiam ter transformado aquela jungle em alguma outra coisa, mas quiseram deixar uma selva mesmo. Poderiam ter feito algo ali onde as pessoas pudessem dormir, no mínimo. Daí, fico vendo The human flow e acho que corrobora com a imagem de um imigrante selvagem. Acho que existe de fato uma rota complicada e as condições dos campos na Europa são completamente diferentes das da África, por exemplo. A organização do abrigo em Tempelhof é, de fato, muito fascinante e meu filme fala disso com uma certa ironia. É tudo tão organizado, tão burocrático, que chega a ser desesperador, no entanto, é um campo sem desespero.
CONTINENTE Mas aquela organização é uma âncora. Quando os refugiados chegam ao Brasil, como pudemos mostrar em uma reportagem publicada na edição de novembro de 2016 da Continente, muitas vezes são recebidos por pessoas que nem sabem falar inglês. Em Berlim, é impressionante a estrutura, a organização.
KARIM AÏNOUZ Sim, também acho muito impressionante e não é à toa que é aqui. Esse foi um dos aspectos que mais me interessaram, sabe? Porque acredito que tem um acerto de contas histórico. Da mesma maneira que os alemães exterminaram sistematicamente, vejo a vontade de um acerto de contas. A mesma organização que eles usaram para fazer um crematório portátil foi empregada para fazer isso, para criar um campo de refugiados de uma hora para outra. Estão usando agora para fazer uma coisa de outra ordem. Sempre achei muito interessante que isso estava sendo feito dentro de um espaço de guerra. Aqueles hangares não foram pensados ou construídos para aviões comerciais, e, sim, para aviões militares.
CONTINENTE Aproveitando esse mote, queria logo comentar algo que me capturou a atenção: Central Airport THF começa fazendo uso de uma trilha sonora portentosa, que me lembrou muito Arquitetura da destruição.
KARIM AÏNOUZ Porque é Wagner (risos)!
CONTINENTE Pois é, eu pensei que você estava logo querendo dar um recado, como Leni Riefenstahl, abrindo aquele tour com a pessoa explicando que se tratava do aeroporto de Hitler e, a partir dali, como se aqueles turistas estivessem entrando nos resquícios de uma era gloriosa.
KARIM AÏNOUZ É isso. Eu queria que esse fantasma fosse presente, pois ele causa uma fricção. Seria muito diferente se eu estivesse fazendo o documentário em um outro campo qualquer que fosse. Me interessava falar um pouco de uma arquitetura e de uma ocupação recicladas, até porque isso é muito a cara dessa cidade, que teve que se reinventar inteira depois da Segunda Guerra. Não só a guerra: a divisão da Guerra Fria, a construção do Muro de Berlim, a queda do muro… Em Berlim, tem sangue nas calçadas o tempo inteiro, mas tem a vontade de limpar esse sangue.
CONTINENTE Você acredita que essa sua vivência aqui lhe cacifa para dar esse olhar? Pois você não é um cineasta que chegou agora para filmar…
KARIM AÏNOUZ Mas acho que no filme tem mais a ver com o fato de eu ter ficado seis meses indo àquele lugar quase todo dia. Não é mais o olhar da rotina, tem a ver com o meu olhar para a cidade e para aquele lugar, sabe? Porque eu poderia estar morando aqui, como estou, e não me interessar por aqui. Engraçado que não teve nenhum cineasta alemão que tenha pensado em fazer um filme sobre o abrigo no Tempelhof.
CONTINENTE Você sentiu isso na Berlinale? Como se os alemães achassem que poderiam ter feito esse filme mas não fizeram?
KARIM AÏNOUZ Senti. Isso está o tempo inteiro nas entrelinhas.
CONTINENTE De volta ao filme: como o sírio Ibrahim e Qutaiba, o cirurgião iraquiano doido para trabalhar, surgiram para você? Demorou para defini-los como seus condutores?
KARIM AÏNOUZ Foi assim: eu fiquei muito impressionado com a clínica que eles construíram dentro do aeroporto. Eu olhava para aqueles enfermeiros, para as pessoas tomando conta, e pensava “nossa, que coisa incrível, tão organizada rapidamente com as pessoas que moram lá”. Mas descobri que o Qutaiba não morava lá. Ele tinha morado, começou a trabalhar, mas não morava mais lá. Agora veja que era um cara que não falava alemão, trabalhava o dia inteiro se comunicando em inglês, e, quando a clínica foi fechada, lá estava ele pensando em aprender, finalmente, alemão para procurar um trabalho. Me pareceu bonito porque era uma experiência de um homem de meia-idade para recomeçar a vida, uma vida que, dentro dos hangares, era muito complicada. Porque, na verdade, não se sabia quem sairia no dia seguinte. Desde o início, portanto, decidi que queria filmar um ano porque era importante.
CONTINENTE Então, o marco seria de um ano?
KARIM AÏNOUZ Sim, porque eu queria filmar a rotina do lugar, entende? É como se estivesse fazendo a crônica de uma cidade. Queria que o filme tivesse a ver com a arquitetura e o modo como as estações, o tempo e o clima reverberam dentro do espaço. Aí você vai acompanhando alguns personagens e, no final, vai ficando com quem tem a história mais interessante, com quem é mais generoso, com quem fica mais à vontade na frente da câmera. Por outro lado, eu queria também que o filme tivesse um personagem que expressasse o pesadelo do europeu: o jovem árabe imigrante, o demônio que só presta para ser barrado. Que é o Ibrahim.
CONTINENTE Em nenhum momento o documentário assume uma postura didática excessiva para explicar a vida de Ibrahim. Num primeiro instante, não fica claro por que a família não está com ele, o que me levou a pensar se os familiares já teriam morrido. Mas aí depois ele aparece falando com a família pelo telefone. Ou seja, não é muito a questão de onde ele veio e de sua origem, mas o que ele vai fazer agora, como irá se reinventar.
KARIM AÏNOUZ É isso. E isso tem a ver com o medo que tenho do filme de Ai Weiwei, com o pavor que tenho do que o filme produz como ressonância. Sim, essas pessoas que estão vindo de todos os lugares estão desesperadas. São 35 milhões nas estatísticas da ONU, mas então me conte quem são essas pessoas. Não é apenas porque elas estão famintas. Existem milhões de razões. No caso do Ibrahim, por exemplo, era muito importante isso. Porque havíamos passado por um intenso momento de cobertura, de representação dessa experiência da migração, em que só se viam os refugiados pulando dos trens ou entrando nos barcos. E eu achava que era importante, sim, que a gente tivesse a guerra no filme, mas que deslocasse, também, o olhar para um outro momento histórico, que é um momento de interação política e cultural, mas nunca de integração, pois eu não acredito em integração. Então lá estava Ibrahim, que não tinha vindo de Moscou, e, sim, de um país que estava em guerra, e a família dele não estava ali, mas o que me interessava mais era ver como seria a negociação dele com o presente. Tanto que eu acho que gostaria de poder continuar filmando esses dois caras de cinco em cinco anos, sabe? Porque acho que é mais importante entender como essas pessoas estão vivendo juntas do que como estão sendo atacadas. O grande argumento da extrema direita é que estamos sendo atacados pelos imigrantes que estão vindo. Isso é muito perigoso. Ao olhar para o presente, eu queria muito mais falar de solidariedade do que falar de medo. E, ao deixar de olhar para o passado, também tinha uma escolha muito clara: meu filme seria sobre esse planeta chamado Tempelhof.
CONTINENTE Por que não acredita em integração, e, sim, em interação? Qualquer integração é um mito?
KARIM AÏNOUZ A integração é que você vai se integrar à minha cultura em uma relação de poder que não é produtiva. Acho importante que o imigrante que chega ensine a comida do lugar de onde veio e é importante que você aprenda com ele e ele aprenda com você. Mas não acho que ele tenha que se transformar em você.
CONTINENTE Mas tem uma coisa que fica evidente em Central Airport THF: aquelas pessoas estão querendo se redescobrir, ou melhor, precisando se reinventar, já despidas das suas identidades. Ibrahim não é mais aquele menino da Síria.
KARIM AÏNOUZ Mas acho que o filme inteiro é sobre reinvenção. É um espaço que se reinventa, com personagens que se reinventam, uma cidade que se reinventa. Um lugar que se reinventa não como pista de pouso, mas como um parque. O filme vai sempre colocando matizes no que é aquela reinvenção, nos lugares de privilégio de que você fala quando se reinventa. Independentemente disso, a questão da reinvenção é sobre se reciclar. E talvez eu tenha ficado muito encantando com isso, com o campo, com esse lugar, porque o tempo inteiro isso estava marcado na arquitetura. Quando o espaço está passando pelo mesmo dilema do humano, quando a arquitetura está passando pelo mesmo dilema do personagem, aí, sim, você consegue compor diferentes camadas de significados.
CONTINENTE Imaginemos se a Segunda Guerra Mundial tivesse tomado outro rumo. Tempelhof, um sonho de Hitler, seria hoje outro lugar. E Berlim, que atravessou a destruição, a Guerra Fria e a divisão por um muro? São várias camadas que a cidade traz e aquelas pessoas, por sua vez, chegam a Berlim nunca como uma tela em branco. Elas também têm suas camadas. Você falou em reinvenção e isso é algo recorrente na sua obra: os personagens estão ali, sempre na iminência, na beira de uma mudança. Como você pensa esse documentário com relação aos seus filmes anteriores? Claro que é diferente, nas ficções essa reinvenção pode ser trabalhada mais livremente, mas no documentário, como diz a canção de Caetano Veloso, a vida é real e de viés.
KARIM AÏNOUZ Acho que eu não tinha entendido isso. Na verdade, tem algo ali, no filme, que meio que escapa a tudo: a urgência de viver, de fugir da guerra, de continuar vivo. E isso era o motor. Mas, na verdade, existem coisas que estão no inconsciente, não é? Sou um cara muito otimista. Apesar de tudo, acredito muito no ser humano, acho que somos incríveis, adoro viver e acho uma pena ter que acabar com essa brincadeira (risos). E, sim, acredito que isso está presente em todos os meus filmes. Mas tem uma coisa de que eu me lembro quando filmei Madame Satã, que é essa reinvenção a partir do ponto de vista de algo proativo. Madame Satã derrubou a porta para entrar na boate, esse daqui tem que escrever para ficar vivo, o outro está fazendo um trabalho de tradução… E eu estou sempre tentando olhar para um lugar onde existe resistência.
CONTINENTE Mas os seus personagens vicejam, como as plantas que insistem em crescer nas frestas da calçada.
KARIM AÏNOUZ Tem um plano que eu adoro nesse filme, que inclusive é meio sutil. No meio da pista de pouso, tem uma árvore crescendo. Na primavera, ela está amarela, depois fica verde… Uma pista de pouso cheia de fissuras, de falhas, e há uma árvore nascendo ali no meio. Aquilo me interessa muito. É uma imagem emblemática do documentário. Me emociona.
CONTINENTE O filme tem momentos emocionantes, costurados por uma trilha instrumental que me lembrou Philip Glass e, também, aquela sequência final de O céu de Suely, que considero um dos mais bonitos filmes produzidos na última década no Brasil. Seus filmes sempre trazem emoção.
KARIM AÏNOUZ É, é verdade, mas isso foi muito louco, porque era um documentário de observação e aí, quando você vai lá nas convenções do Dogma, né? (risos) Não poderíamos interferir com o real, não poderíamos usar música se não fosse diegética… Quando estávamos montando, colocamos uma música, afinal, não custava nada apertar o botão e ver como ficava. E ficou emocionante. Acho que, quando você tem uma prática, vai navegando, passando de um lugar para outro, hibridizando-a de algum jeito. É um pouco como traduzir. No fim, quebramos o Dogma não só com a música, mas também com a montagem de som, que é toda falsa.
CONTINENTE É mesmo?
KARIM AÏNOUZ Sim, claro, usamos muito foley (a construção, em estúdio, de efeitos sonoros que emulam o som captado nas imagens). Por duas razões. A primeira é que não acho que fazer um documentário é capturar o real. Isso não existe. É interpretar o real a partir dos elementos que você pode usar para, de fato, fazer a melhor interpretação com o seu olhar. E aquele lugar, para mim, tinha algo de muito estranho, de códigos de ficção científica, sabe? A música elevava essa sensação que a imagem já trazia, mas que, quando você coloca efeito e som, eleva para um outro lugar. É exatamente como O céu de Suely: tem uma magia que você não controla. Quando você vê, o filme faz zummmmm e te escapa. Entendeu? E acho que tinha uma outra vontade, e não é no campo da música e, sim, no som, que era de mascarar o ruído de viver em Tempelhof. Acho que deve ser uma experiência complicada de morar ali dentro, além de dividir banheiro e não poder andar de cueca, que é viver o tempo inteiro com aquela barulheira. Parece que você está em uma estação de trem, com aquela altura, sem teto, com muito eco. Porém, bem ou mal, e mesmo com aquela barulheira, você está protegido. As pessoas ficam sem querer sair de lá, o que é compreensível.
Documentário Central Airport THF. Foto: Lupa Film/Divulgação
CONTINENTE Por isso que você também decidiu filmar a virada do ano?
KARIM AÏNOUZ Eu nem tinha pensado muito nisso. Queria filmar a chegada do ano-novo, mas achava que os caras sairiam para a festa nas ruas, não iriam querer ficar no campo. Quando cheguei lá, a gerência tinha organizado a compra dos fogos justamente porque muitos dos refugiados já haviam decidido não sair. Porque, no ano anterior, no carnaval de Colônia, vários homens árabes tinha sido acusados de molestar as mulheres. Foi uma loucura. Deve ter tido alguma coisa nesse sentido, óbvio que os relatos não seriam inventados, mas também teve muito exagero. E eles ficaram com medo de sair para não serem atacados. Então, tinha essa ambiguidade: eles queriam sair, não aguentavam mais ficar ali dentro, mas também tinham esse receio.
CONTINENTE Uma pergunta que se impõe: você acha que a grande questão atual da humanidade é a crise dos refugiados?
KARIM AÏNOUZ Não, eu acho que a grande crise da humanidade é o neoliberalismo, que está nos matando, e os refugiados são uma consequência disso. A concentração de renda, o fechamento das fronteiras, todos os frutos do neoliberalismo são a grande crise do nosso mundo. E tudo isso é resultado de uma política econômica que não permite que algumas regiões tenham mais dinheiro do que as outras. Não acho que é a crise dos refugiados, e, sim, a necessidade do neoliberalismo de criar fronteiras, de ter o maior lucro possível. Uma outra crise grave é a destruição do planeta. A falta de recursos naturais e a extrema concentração de renda nos levaram a um lugar de crise, de fascismo, onde sentimos os efeitos de um modelo econômico que cria raiva, intolerância e medo num contexto de superpopulação.
CONTINENTE Quando se fala em crise econômica, e no fascismo que gera intolerância, medo e raiva, constatamos que, na verdade, isso se vê em todos os países, não apenas na Alemanha ou no Brasil.
KARIM AÏNOUZ Sim, em todos. Por que alguém votou no Donald Trump? Porque estava com raiva, porque queria votar em alguém que ele queria ser. O voto na extrema direita é um voto contra o estado de coisas em que nós vivemos. Para que alguém precisa ter 30 bilhões de dólares para viver? Não entendo.
CONTINENTE Você pensa o cinema como uma ferramenta para se contrapor a tudo isso?
KARIM AÏNOUZ Acho que o cinema nunca teve uma oportunidade tão potente de se reinventar. Essas são questões urgentes que precisam ser faladas e eu acredito que tudo que é urgente e dramático é bom para o cinema. Porque é boa matéria para se contar histórias e vivemos um momento com milhões de histórias que precisam ser contadas. Quis fazer isso nesse filme e deu certo, ou seja, o cinema conseguiu quebrar muros que certamente eu não poderia quebrar sozinho.
CONTINENTE Como o quê, por exemplo?
KARIM AÏNOUZ Tipo assim: ninguém poderia entrar no abrigo do Tempelhof por questões de segurança. Mas aí eu entro com o cinema, passo aquele muro, tiro aquela parede e mostro aquela história. E essa é uma história que tem tudo a ver com o mundo de hoje. O cinema é um instrumento essencial de luta política.
CONTINENTE Mas há quem defenda que o cinema não pode ser político ou panfletário.
KARIM AÏNOUZ Eu penso que o cinema não deve ser panfletário. Deve, sim, ser político, mas acho que, em 2018, se o cinema quiser ser panfletário, que seja. É ótimo. O que não dá é não existir, ainda mais quando se está diante de uma sala com 300 pessoas sentadas. Você viu o que o menino que dirigiu Corra! (o cineasta norte-americano Jordan Peele) fez? Ele disse que uma história é a melhor maneira de você convencer uma pessoa de uma outra ideia. A melhor arma de conhecimento e convencimento é você narrar uma história. Isso é um instrumento político e você não precisa ser frontalmente panfletário. Mas perceba que Corra! é um filme de terror sobre o racismo. Não é por acaso que esse filme tenha sido feito num momento aterrorizante do mundo.
CONTINENTE Central Airport THF trabalha de maneira poética esse cruzamento de vidas, histórias, tempos e espaços diante desse abismo do mundo. Vejo o filme como um alento, um respiro, talvez um vislumbre do que pode ser construído em oposição a esse estado de coisas.
KARIM AÏNOUZ A palavra alento é muito bonita. E o cinema é muito potente, com ele podemos fazer muito. Agora não dá, em 2018, com a situação política em que o mundo está mergulhado, para alguém fazer cinema neutro. Infelizmente, tem muitos realizadores talentosos que pensam nisso, nessa ideia de neutralidade da arte. Não é hora para isso. Precisamos lutar com as nossas armas, com todas as que temos. O cinema é uma delas. É a minha. E é uma arma incrível.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e viajou para cobrir a 68ª Berlinale com o apoio do Centro Cultural Brasil Alemanha – CCBA.