Crítica

A instrução e a fábula

Sobre o 'Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores', de Ariano Suassuna

TEXTO Cristhiano Aguiar

01 de Fevereiro de 2018

OI escritor Ariano Suassuna (1927-2014)

OI escritor Ariano Suassuna (1927-2014)

Ilustração Karina Freitas/Arquivo

[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 206 | fevereiro 2018]

O TESTAMENTO

Não é incomum chamarmos de “testamento literário” a última obra de um grande escritor, publicada pouco antes ou após o seu falecimento. No caso do Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores, de Ariano Suassuna, lançado no final de 2017, em dois volumes, pela editora Nova Fronteira, a ideia de “testamento” é mais do que adequada, pois nos ajuda a entender essa obra, sem dúvidas a mais inclassificável e desafiadora de tudo que Ariano Suassuna publicou. Acho plausível pensar que os dois volumes que agora vieram à luz teriam se desdobrado ainda mais, caso a caprichosa Caetana – esse é o nome com o qual a morte é frequentemente nomeada na obra do escritor paraibano – não tivesse decidido chamar o seu autor para si. Apesar disso, Dom Pantero é o necessário fechamento de uma carreira literária que, ao longo das décadas, foi cercada de polêmicas e de merecidos reconhecimentos e aplausos.

Sim, todo escritor e escritora, mesmo ao elaborar a obra mais realista e contida possível, cria um mundo, um universo ao redor da própria palavra criativa. O afeto que sentimos diante de um livro diz respeito inclusive a isso, ao quanto estaremos dispostos a viver esse outro mundo, a apagar nossa própria vida e, em caráter temporário, misturá-la com a ficção. Mas de quantos escritores, em especial brasileiros, podemos dizer terem criado um mundo imaginário tão rico e vívido quanto o de Ariano Suassuna? Dom Pantero não apenas se apresenta como a síntese desse universo, como também consolida o diálogo que as obras de Suassuna travam umas com as outras. Não é à toa que o livro finaliza suas quase mil páginas posicionando seu narrador em um palco.

Há décadas, falava-se que Ariano estaria escrevendo um novo romance, mas as informações muitas vezes se contradiziam. Eu próprio, por exemplo, aguardava com ansiedade aquilo que esperava poderia ainda ser a continuação do Romance d’A Pedra do Reino, publicado pela primeira vez em 1971. Embora, há anos, Suassuna explicasse em entrevistas que seu novo romance não seria a tão sonhada continuação dA Pedra do Reino, ainda me perguntava: quais seriam as futuras aventuras de Quaderna? O que seria feito de Sinésio, o Alumioso, assim como de outros tantos personagens daquele livro? Ariano chegou a publicar, entre 1976 e 1977, primeiro em fascículos de jornal, o que viria a ser o romance O rei degolado – ao Sol da Onça Caetana (lançado em livro ainda em 1977, após sair primeiro na imprensa) e também As infâncias de Quaderna, inexplicavelmente inédito, até onde sei, em livro. Essas duas obras, cujo relançamento é urgente, de alguma maneira expandiam o que fora narrado primeiro nA Pedra do Reino e comporiam o segundo volume de uma trilogia (que agora sabemos) abandonada em definitivo pelo seu autor.

Dom Pantero não segue por esse caminho. Embora alguns personagens dos romances e peças anteriores, entre eles Quaderna, João Grilo e Chicó, façam ilustres aparições ao longo do livro. Dividido em dois volumes, chamados O jumento sedutor e O palhaço tetrafônico, Dom Pantero tem como subtítulo Autobiografia musical, dançarina, poética, teatral e vídeo-cinematográfica. O livro não pretende ser somente uma obra ficcional, mas um ponto de convergência de diferentes linguagens, uma súmula dos experimentos estéticos do seu autor ao longo das décadas. Experimento é uma palavra-chave, já que é possível afirmar com segurança, não sem certa surpresa, que Ariano Suassuna criou com Dom Pantero uma das obras mais radicalmente experimentais da literatura brasileira contemporânea.

Intensa intertextualidade com diferentes tradições e épocas da literatura, diálogo entre literatura, artes visuais, culturas populares e música, neologismos, experimentos tipográficos, mistura de gêneros (há, nesse romance, cartas, peças de teatro, ensaios, crítica literária, formas poéticas eruditas e populares etc.), borramento das fronteiras entre a prosa e a poesia, citações reescritas e/ou ressignificadas ao serem deslocadas do seu contexto original… Há, inclusive, um suplemento audiovisual, já que nas primeiras páginas o leitor é informado da existência de um link, acessível por navegadores ou por celulares com aplicativos capazes de ler QR Code, que nos remete a um filme de 1h40 com trechos de aulas-espetáculo, músicas inspiradas na sua obra e referências ao próprio Dom Pantero.

Mas do que se trata, afinal de contas, esse livro? O enredo, se assim podemos chamá-lo, é tênue. Embora existam dezenas de narradores, no fim, todos são controlados por um único narrador, Antero Schabino, que usa como um dos seus pseudônimos o nome de “Dom Pantero”. Cada um dos dois volumes possui quatro capítulos, chamados por Antero de “epístolas”, supostamente publicadas no jornal Sibila, da cidade pernambucana de Igarassu. Antero compartilha com Suassuna uma série de afinidades biográficas: morou na cidade paraibana de Taperoá e, após as complicações políticas causadas pela morte do seu pai em 1930, se exila no Recife, vindo a participar da cena cultural da cidade com, entre outras atividades, o Movimento Armorial.

Um tio e três irmãos de Schabino se dedicam às artes, assim como o narrador. Cada um desses personagens é uma máscara do próprio Ariano Suassuna, pois os homens da família Schabino se dedicam às vertentes literárias que o autor de O santo e a porca praticou: poesia, ensaio, romance, teatro, artes visuais. Ao longo da leitura do romance, descobrimos que Antero Schabino, ou Dom Pantero, é, de todos os seus parentes, aquele que menos aflorou artisticamente, ao menos no seu próprio julgamento. Apenas quando seu tio e seus irmãos estão falecidos, é que Pantero sente a necessidade e a liberdade de finalmente criar, ele também, a sua obra-prima, síntese de tudo aquilo ao qual os seus parentes se dedicaram. Essa grande obra se materializa, no romance, no Simpósio Quaterna, realizado na cidade paraibana de Taperoá. Basicamente, ao longo dos dois volumes, é isso que acompanhamos: a preparação intelectual, emocional e espiritual para a realização do Simpósio, uma alegoria das próprias aulas-espetáculo às quais Ariano Suassuna se dedicou nos seus últimos anos de vida.

A morte dos parentes de Antero, portanto, significa a progressiva “morte” na arena pública da vida literária, do Ariano-romancista, do Ariano-ensaísta, do Ariano-poeta e do Ariano-dramaturgo. Não por acaso, quando Suassuna decide oficialmente se retirar, em 1981, da vida literária (embora, como o próprio Dom Pantero comprove, não da escrita) é que “nasce” em definitivo, anos depois da sua saída de cena, a sua última fase, a do intelectual-Pantero, que percorre o Nordeste e o Brasil com suas aulas-espetáculo. Antero Schabino é a persona que melhor representa a própria carreira de Ariano nessas últimas décadas; o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores, o testamento-testemunho dessa jornada.

ENTRE O ARMORIAL E A ILUMIARA
Embora seja incorreto afirmar que o Movimento Armorial, lançado oficialmente em Pernambuco no ano de 1970, tenha existido apenas com a obra de Ariano Suassuna, é fato que ele sempre foi o protagonista do movimento, ao menos na literatura. A partir de uma junção de elementos da cultura popular nordestina e erudita, em especial de matriz ibérica e barroca, os armoriais buscavam criar uma arte erudita que tivesse fortes bases “brasileiras”.

Desde a sua origem, portanto, o Movimento Armorial contempla um rico diálogo entre diferentes linguagens – seus desdobramentos incluem não apenas o teatro, a poesia e a ficção, e, sim, a dança, o cinema, as artes visuais, entre outras formas de expressão artística. Nesse sentido, o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores dá continuidade, como foi apontado, a essa pluralidade estética. Antes, eu dizia do experimentalismo do romance. De que maneira ele se realiza?

O circo, como inspiração e metáfora, percorre grande parte da obra de Suassuna e isso pode ser verificado no próprio Auto da Compadecida, por exemplo. Assim, não é de surpreender que a estrutura do romance tenha inspiração performática, até mesmo circense. A dramaturgia de um espetáculo de circo é menos cerrada do que aquela à qual estamos acostumados, ao menos na sua forma tradicional. Muitos espetáculos de circo possuem personagens, temas e um fio da meada narrativo, porém todos os ingredientes se apresentam mais difusos, porque dessa maneira há espaço para os diferentes números – os bichos, as proezas dos acrobatas, as estripulias dos palhaços, os shows musicais – se sucederem e comporem o mosaico de encantamento que um bom circo cria para nós, seus visitantes.

Uma lógica circense, espetaculosa, lógica de performance escrita, porém ainda performance, permeia a própria estruturação do Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores. O romance sugere essa ideia, embora não com os mesmos termos utilizados aqui. Temos um conjunto de personagens, um fio da meada, e uma sucessão de “números” entremeados. Por “números”, entendam-se as digressões, as ilustrações, os poemas, as pequenas peças teatrais, o mistério policial do segundo volume, as caminhadas alegóricas, permeadas de sentidos sexuais ocultos, feitas por Quaderna e Dom Pantero… Palavras, imagens e ideias dançam e se comunicam no picadeiro. E o romance alcança belos momentos quando isso está em equilíbrio; porém, o interesse diminui consideravelmente quando o equilíbrio se perde, como mais adiante tentarei deixar mais claro.

É o circo o ponto estrutural básico desse livro, que, a partir disso, incorpora, com fome antropofágica, uma série de influências e referências. Chama a atenção a constante interrupção do fluxo narrativo por poemas em prosa, escritos pelo pseudônimo Albano Cervonegro. Os versos, cuja forma pode seguir estruturas da poesia popular, ou da tradição canônica, são herméticos, alegóricos, construídos em uma peculiar mistura de simbolismo, barroco e da poesia de Augusto dos Anjos, influência citada várias vezes ao longo do próprio romance. Os poemas são das melhores partes do livro, embora seu sabor arcaico talvez não agrade a todos: “A terra cor de vinho, e o Povo – Onça Malhada. Num Campo de batalha – o Mundo, o ouro do Sol – há sangue nas Raízes, há ossos que branquejam: no sol da terra sangra o Sol desde outro Sol”.

Todas as páginas são emolduradas e ilustradas. A maioria das imagens – sempre as melhores – parece ter sido criada pelo próprio Ariano Suassuna. Às vezes, sua relação com o que acompanhamos por escrito é direta e decodificável; outras vezes, o nexo é bem mais difícil de construir entre palavra e imagem. As ilustrações são verdadeiros afrescos, compondo uma paisagem arquitetônica e, ao mesmo tempo, respirando uma vida própria. O segundo componente visual é a tipografia, pois trechos e palavras-chave do romance são escritos numa fonte chamada “Tipografia Armorial”. Complementando essa tipografia, há o constante uso, no texto, de maiúsculas e de hífenes.

A visualidade, para além dos significados que carrega de maneira autônoma, atua a fim de reforçar a principal figura de linguagem do romance, a alegoria. A escolha pela alegoria é aquilo que confere mais força à linguagem de Suassuna, embora seja também o seu irremediável calcanhar de Aquiles. Suas alegorias se enfraquecem, em especial quando se encontram a serviço apenas das visões sobre política e cultura brasileira. Apesar disso, ao longo dos dois volumes, há bonitos trechos, tais como esse: “No momento em que ouvi este Soneto (que me chegava como que recitado, no sonho), os Lajedos pareciam alumiados pelo Sol, mas o resto do Anfiteatro estava mergulhado em trevas. Sobre a Itaquatiara pairava um enorme Pássaro – O Encourado, talvez – com as grandes Asas espalmadas contra o Céu. E, amarrado à Pedra, um Homem, um Velho, chorava desoladamente, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos tapando o rosto. Seria por causa do Abutre? Por causa do Crime, do Pecado e do Sonho perdido?”.

Muitos apontam em seus estudos – entre eles, os da professora Sônia Lúcia Ramalho de Farias, que fundamentam algumas das reflexões deste texto – os fortes vínculos entre a estética armorial e a tradição regionalista nordestina. Considero o Armorial, e a obra de Suassuna em particular, como o último movimento regionalista organizado da literatura brasileira. Regionalista, não no seu sentido mais amplo, de representar a vida do campo e das cidades pequenas, mas, sim, devido ao fato de que na obra de Suassuna existe uma construção cerrada de uma identidade regional, que é inclusive defendida contra uma suposta ameaça homogeneizante que sobre ela paira. Tal identidade, além de ser defendida, deve, segundo essa perspectiva, na verdade ser celebrada, pois ela seria, como tantas vezes vimos nos ensaios, intervenções públicas e no próprio A Pedra do Reino, o Coração do Brasil. Isso, sim, é regionalismo: um projeto estético, político, ideológico.

Nesse sentido, o da visão armorial-regionalista da cultura brasileira e do papel do Nordeste e do Brasil no mundo, Dom Pantero não traz consigo nada de novo. Pelo contrário, revisita, sem repensar uma vírgula, todo o ideário estético e político defendido pelo seu criador, como podemos ver aqui: “(…) faria o que estava ao meu alcance: mostraria no Palco (pelo menos em imagem e para os participantes iniciados do Simpósio) aquele ‘Brasil-que-há-de-vir’, a fim de que pudéssemos manter acessas a dignidade, a altivez, a beleza, a esperança e – quem sabe? – talvez até devolvê-las ao nosso Povo (p.665)”. E, páginas adiante, Dom Pantero, ao criticar os Estados Unidos, chamados pelo narrador, sem muita atenção às nuances, de “Quarto Império da Direita”, tem a esperança de que o nosso país um dia seja um Quinto Império da Esquerda, “este que o Brasil, sobrepondo-se aos traidores que pretendem vendê-lo e aviltá-lo, poderá um dia revelar ao Mundo” (p. 682).

O conceito de ilumiara, neologismo criado por Suassuna, relaciona-se com tudo isso. De acordo com o escritor e professor Carlos Newton Júnior, o autor de Dom Pantero passa a utilizar, nos últimos anos, essa palavra dotando-a de uma diversidade de significados. Se, inicialmente, Ariano a concebe como um termo que diz respeito às pedras esculpidas e pintadas pelas populações pré-históricas brasileiras, em seguida, ilumiara significa tanto o conjunto da própria obra de Suassuna quanto qualquer expressão artística que pudesse ser vista, explica Carlos Newton, como “símbolos da força criadora de um povo ou espaços de celebração da sua cultura”. Assim, ainda segundo o professor, Ariano percebia sua própria obra como uma das ilumiaras da cultura brasileira, um marco que a celebrava, a protegia e a guiava.

Nesse sentido, qual o questionamento aqui posto? O Brasil em Dom Pantero e na obra de Suassuna como um todo é uma invenção simbólica restrita a um sertão imaginado, um sertão que cobre, no máximo, aspectos escolhidos do caldeirão cultural formado pela Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Dom Pantero continua, tanto em 2017 quanto em 1970, a tentar impor uma visão idiossincrática, particular, imaginativa e fascinante do que significaria “Brasil” a uma diversidade social e cultural que lhe é muito mais ampla, complexa e em contínua mudança. Logo, não existe um Brasil oficial versus um Brasil real, mas diferentes realidades em contínua tensão, em mútuo diálogo e conflito. Mas o sertão armorial não é, em si, “errado”. O mundo ressignificado através do Sonho da Ilumiara é uma criação ficcional, enriquecedora enquanto experiência estética e cultural. No entanto, as definições de Brasil habitam muitas e simultâneas moradas para além daquela estipulada pelo armorial e pelo conceito de ilumiara.

Por fim, não podemos saber até que ponto uma obra literária compensa, ou redime, a nossa tragédia social. Isso é papel da política, da qual a literatura pode, sem dúvidas, ser uma engrenagem, ou, ao menos, uma força motriz. A grande obra estética a redimir nosso atraso… ainda é um sonho latino-americano, que esteve elaborado do século XIX até pelo menos o discurso autocelebratório da geração de escritores que, a partir da década de 1960, fez parte do boom latino-americano. Vale a pena pensar quais são, nos últimos 20 anos, as novas expressões desse nosso melancólico sonho, o de, num quixotesco gesto acadêmico-intelectual-ficcional, buscar criar a literatura e/ou o ensaísmo a redimir nossa desigualdade. Dom Pantero é, quem sabe, a última expressão dessa utopia em sua forma tradicional de ser.

A FÁBULA E A INSTRUÇÃO
Nem tudo em Dom Pantero, no entanto, é vinculado a essas questões políticas, pois o romance se preocupa em dar conta de uma série de reflexões pessoais, ligadas à morte, ao desejo sexual, à natureza da arte, da beleza e dos possíveis fundamentos dos valores morais, sem esquecer debates literários, antropológicos e até mesmo teológicos. Ao comentar um importante poema longo medieval, O romance da rosa, C.S. Lewis, em seu livro Alegoria do amor, aponta que uma das características dos poemas longos da Baixa Idade Média era a sua preocupação com a instrução, ou seja, com a veiculação, em seus versos, das mais importantes teorias e conhecimentos da sua época. Sempre senti que a obra de Suassuna se dividia entre dois polos: de um lado, o compromisso com a fábula, ou seja, com os aspectos mais literários da metáfora, alegoria e enredo, por exemplo; do outro, com a instrução, com a preleção e a veiculação de uma série de reflexões sobre cultura e identidade brasileiras.

Em o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores e em outros momentos da sua carreira, Ariano Suassuna afirma que existiam dentro de sua obra os seguintes personagens-vetores: o Palhaço, o Poeta, o Rei e o Profeta. Dom Pantero é um livro do Rei. À medida que nos aprofundamos nas suas quase mil páginas, embora o Poeta e o Palhaço – as melhores facetas de Ariano – também contribuam, é o Rei quem triunfa. E isso explica algumas escolhas do autor para o seu livro. A primeira é o seu caráter epistolar e dialógico. Cada volume é composto por capítulos chamados de Epístolas e a palavra não surge por acaso: a inspiração são mesmo as cartas do apóstolo Paulo compiladas no Novo Testamento (Antero, inclusive, chama a si mesmo, no começo das cartas, de “apóstolo”). A influência é sentida tanto em termos da estrutura quanto em um sutil uso de um vocabulário, ao longo do livro, paulino. O leitor pode comparar, por exemplo, o começo de algumas epístolas de Paulo com as primeiras linhas da epístola O Antagonista Possesso na Estrada do Descaminho: o sabor da linguagem é semelhante.

As cartas e os diálogos do romance nos remetem igualmente aos diálogos filosóficos, aos tratados utópicos e morais e, em especial, aos romances filosóficos do século XVIII. Assim, ao folhear o romance pela primeira vez, o leitor vai perceber, surpreso, que cada uma das epístolas consiste em diálogos entre diferentes personagens. Tais conversas devem menos ao teatro – elas parecem mais monólogos de ideias, justapostos entre si – do que a um romance como O sobrinho de Rameau, de Diderot, também estruturado em diálogos.

Por que Ariano escolheu essa estrutura? Parte da resposta pode ser encontrada em outro romance filosófico do XVIII, Cartas persas, de Montesquieu: “Para cumprir o que me solicitas, não considerei que devesse recorrer aos arrazoados mais abstratos: com certas verdades, não basta persuadir, é preciso, além disso, fazer sentir”. Ao comentar essa passagem, Franklin de Mattos, no seu livro A cadeia secreta, afirma: “A forma da carta, mais livre, permite a multiplicação de digressões filosóficas, políticas e morais, dando ao romance um caráter enciclopédico”.

Em Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores, a arquitetura dá vazão a uma necessidade enciclopédica como nunca antes, nem mesmo n’A Pedra do Reino – romance no qual essa característica já existe – tínhamos encontrado em Suassuna. E os diálogos podem nos conduzir direto às ideias das quais os personagens são porta-vozes, sem tanta preocupação com a articulação e o desenvolvimento de outros aspectos da narrativa, como o enredo, o tempo, o espaço e os conflitos. O caminho do Rei, da Instrução e do Enciclopedismo se justifica. A intencionalidade principal do livro consiste naquilo apontado no começo deste texto: trata-se de um testamento, trata-se de um testemunho. O caráter testamentário explica, assim, outra peculiaridade do romance, as dezenas de agradecimentos, dedicatórias e homenagens que perpassam as páginas dos dois volumes: a cada um, vai o seu quinhão.

Cria-se, entretanto, uma dificuldade, pois Dom Pantero acaba sendo um livro voltado para os iniciados na vida e obra de Ariano Suassuna e isso se torna mais forte no segundo volume, em especial da segunda epístola em diante. O livro adquire, com o correr da leitura, um excessivo caráter autorreferente. As últimas duas epístolas, que relatam vários acontecimentos do Simpósio Quaterna, consistem basicamente na compilação de uma fortuna crítica cheia de elogios à arte dos Schabino, cujas obras são os próprios livros de Ariano Suassuna (mal)disfarçados. O romance, por outro lado, se preocupa em dar voz a algumas críticas. Podemos ouvi-las principalmente ao longo do Simpósio, contudo são todas desmontadas por Schabino através de sua persona Dom Pantero. Embora pontuada por algumas autoironias, por bonitos entremeios dramáticos e poéticos, incluindo uma narrativa de caráter policial cujo significado comporta mais do que inicialmente pensei ao acompanhá-la, a leitura do segundo volume se torna bastante cansativa.

A dificuldade de leitura pode se apresentar também no primeiro volume, pois a primeira epístola dedica suas dezenas de páginas a fazer, quase como se fosse um novo Os lusíadas, uma Proposição. O romance explica a si mesmo em repetitivas minúcias: como será sua linguagem, quais são suas referências e influências, que objetivos deseja alcançar etc. A autoexplicação não se encerra nessa epístola. Parte considerável das digressões do romance diz respeito às tentativas de Ariano Suassuna de definir a sua própria obra, de explicar o que ela significa e de como Dom Pantero e o Simpósio Quaterna serão realizados. Fica a impressão de que o romance nunca começa de verdade, estando sempre em processo.

Por quê? A hipótese, na verdade desdobrada em duas, é a seguinte: a) embora haja muitas referências à sua vida pessoal, o romance não é uma autobiografia, mas uma grafia da formação de uma sensibilidade literária e dos percalços dessa formação; b) a constante retomada, ao longo do texto, do processo compositivo do romance, na verdade, significa uma tentativa de fixar, quem sabe, controlar, as possíveis leituras que se possam fazer de Dom Pantero por parte de nós, seus leitores. Portanto, a hesitação em caminhar adiante, presente nos dois volumes, uniria a dificuldade da linguagem e, em paralelo, uma possível tentativa de domesticar a recepção da mesma por parte do leitor? O tempo e outros leitores poderão testar essas hipóteses.

É preciso entender o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores por aquilo que ele é: um balanço, uma celebração, uma profissão de fé. Não podemos iniciar a sua leitura com as mesmas expectativas que teríamos ao ler um romance contemporâneo. Por outro lado, mesmo tendo em conta os propósitos do livro, saímos de sua leitura em parte fascinados, em parte frustrados.

Seu Sonho, sua Caminhada e seu Castelo permanecem, sem dúvidas, como legado a ser visitado por diferentes gerações. Que os próximos anos possam desenterrar o restante da produção de Suassuna esquecida em gavetas, sebos e arquivos. A despeito dos terríveis caprichos da Caetana, nós, seus leitores, ainda teremos muito sobre o que conversar nos próximos anos.

CRISTHIANO AGUIAR é escritor e professor colaborador do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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