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Reedição da obra faz compilações

Neste mês, títulos contendo contos e novelas de Hermilo Borba Filho estarão disponíveis. Ainda este ano, peças e trabalho ensaístico serão publicados

TEXTO Luciana Veras

01 de Julho de 2017

Dramaturgo Hermilo Borba Filho

Dramaturgo Hermilo Borba Filho

Foto Acervo de família/cortesia

[conteúdo vinculado ao especial da edição 199 da Revista Continente | julho 2017]

Em uma das primeiras páginas de Os ambulantes de Deus, novela publicada pela editora Civilização Brasileira poucos meses após a morte de Hermilo Borba Filho (1917-1976), o personagem Cipoal filosofa sobre as encruzilhadas que laceiam vida e morte. Ele é o barqueiro-líder de uma nau que, ao longo da narrativa, será povoada por tipos nordestinos em sua essência: a prostituta Dulce-Mil-Homens, o poeta Cachimbinho-de-Coco, o mendigo Nô-dos-Cegos, o bicheiro Amigo-Urso e o caminhoneiro Recombelo. Inquirido por Dulce acerca do medo da morte, Cipoal retruca com a sagacidade típica dos personagens criados pelo dramaturgo, encenador e escritor pernambucano: “Quando a gente nasce, encontra todo mundo rindo, contente, a gente não, a gente chorando, de tristeza deve ser. Quando a gente morre, todo mundo está chorando, triste, então com certeza a gente está rindo, contente, sem querer mais nada com o mundo”.

Decerto se pode inferir, a partir deste livro póstumo, que Hermilo, acossado por problemas cardíacos, poderia não querer mais nada com o mundo quando dele se despediu. No bojo das comemorações do centenário do seu nascimento, contudo, há de se aprofundar as relações com sua obra e seu legado. Os ambulantes de Deus encabeça as novas edições que a Cepe Editora entrega às livrarias já neste mês de julho. O outro título é o volume que compila a produção de contos do autor nascido em Palmares, na Zona da Mata Sul.

O general está pintando (1973), Sete dias a cavalo (1975) e As meninas do sobrado (1976), pela primeira vez reunidos em um único tomo, estão na proa das celebrações que a editora organizou. No dia 8, o Museu do Estado acolhe o lançamento das novas edições que serão, à luz do presente, reinterpretadas, como vislumbra o escritor Fernando Monteiro, no prefácio de Os ambulantes de Deus. Para ele, Hermilo “é daqueles autores cuja ausência mais cumpre ser lamentada, à medida que os tempos tornam-se especialmente difíceis num amplo sentido. Tudo que vivemos no Brasil da hora presente (de confronto político a se refletir fortemente no contexto sociocultural) faz de Hermilo uma grande lacuna entre as consciências despertadas para o significado do momento atual e das quais muito dependerá a conciliação do país”.

Ainda em julho, no 27º Festival de Inverno de Garanhuns, os livros serão debatidos durante a programação da Praça da Palavra. Em setembro, a terceira edição da Feira Nordestina do Livro – Fenelivro, evento realizado pela Companhia Editora de Pernambuco, também homenageará Hermilo. “Nesses eventos, divulgaremos os relançamentos da parte literária dele. Poderemos até relançar outros livros, a depender das negociações com os herdeiros. Ainda no segundo semestre, vamos promover o lançamento de todo o teatro de Hermilo Borba Filho, reunindo sua produção teatral em uma única publicação, e também de um livro sobre o Teatro Popular do Nordeste, importante instituição teatral da qual ele foi o principal encenador”, antecipa Ricardo Leitão, presidente da Cepe.

A tarefa de escrever sobre o TPN coube ao pesquisador e professor Luís Augusto Reis, cuja produção acadêmica investiga as contribuições do dramaturgo para o teatro nacional – vide Fora da cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho (2008), fruto da sua tese de doutorado, atualmente esgotado. Reis encarou o “desafio”, por sentir no convite da editora “uma missão”. “Tenho trabalhado muito na UFPE, onde hoje estou na Diretoria de Cultura da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura, porém, diante dos 100 anos do nascimento dele e de todos os meus estudos, percebi que tinha que escrever. Foi um mergulho intenso em centenas de documentos inéditos. É, aliás, um livro montado em cima de documentos, e talvez essa tinha sido a forma que encontrei para diminuir o efeito do meu envolvimento afetivo. Meus pais foram do TPN, cresci nesse universo”, conta Luís Reis.

Boa parte desses documentos veio do acervo preservado por Leda Alves, viúva de Hermilo. “Ela guardou uma verdadeira fortuna da memória do TPN. Me passou duas malas cheias de itens, como borderôs de bilheteria dos espetáculos, os programas, as críticas, as cartas… É um livro de muita imagem, porque o TPN tinha essa preocupação do registro, mas é também um trabalho ensaístico. Há um pouco de interpretação minha sobre essa que considero a grande obra teatral de Hermilo. O TPN surge quando ele já tinha morado em São Paulo e circulado o mundo. É o grande projeto autoral dele para a cena brasileira”, detalha.

O pesquisador considera o período entre 1966 e 1970 “a fase áurea” do TPN, quando se evidenciava a vanguarda do pensamento de Hermilo: “Ele montava uma Antígona, de Sófocles, com as pessoas vestidas de camisetas de malha e calça de brim. Era um leitor voraz de Artaud e Brecht e, portanto, sua cena era emancipada e seu projeto estético, bastante rigoroso. Quando o TPN abriu sua sede, na Avenida Conde de Boa Vista, os experimentos ficaram mais ousados, como a montagem de O inspetor, de Gogol. Uma outra camada interessante do livro é que, por meio das encenações do TPN, todas as tensões e contradições da cena política eram expostas. Havia muita controvérsia”.

Segundo Luís Reis, as peças e a postura do TPN ofereciam um “conteúdo político inequívoco”. Nos anos 1970, o país vivia sob a égide da ditadura militar e o teatro era via de denúncia e resistência. Quatro décadas depois, os escritos ficcionais e a práxis dramatúrgica de um autor e encenador ressurgem para engrossar o cordão dos que não se envergam aos ventos hostis.  

 

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